De alpargatas, cabelos desalinhados, barba por fazer, o
indefectível bigode de cantor de tango e a simplicidade que o mundo aprendeu a
ver como autêntica, o presidente do Uruguai, José Alberto Mujica Cordano, ou
simplesmente Pepe Mujica, 78 anos, recebeu ontem Zero Hora em sua chácara de
Quincho Varela, distante 20 minutos do centro de Montevidéu. Mujica é amável.
Na entrada de madeira da propriedade, a já famosa cachorrinha perneta Manuela
aproxima-se dos visitantes, aceita os afagos. Há outros dois cães e um gato à
porta da residência, mas só ela acompanha o homem que governa 3,5 milhões de
uruguaios.
A chácara é o seu recanto do ex-guerrilheiro tupamaro, em
meio a livros, flâmulas e recordações. Ali, produz seu próprio Tannat e planta
acelga, beterraba e flores. A única segurança à vista é um carro da polícia. Um
furgão serve de transporte presidencial, em lugar do Fusca azul, ano 1987, que
valeria algo como US$ 900, não fosse o ilustre proprietário.
Na entrevista, de 50 minutos, o presidente uruguaio define
como um "teste social" a legislação que regula a produção e o consumo
de maconha, aprovada pela Câmara dos Deputados e à espera de votação no Senado.
Defende um mundo mais justo e sem preconceitos. Põe fé num Mercosul vitaminado,
critica a Argentina e diz que o mensalão não ocorreria em seu país.
Leia a íntegra da entrevista:
Zero Hora — Que sonhos de guerrilheiro o presidente José
Mujica colocou em prática?
José Mujica — Creio que a motivação da preocupação social,
de tratar de contribuir para conseguir uma sociedade com melhores relações
humanas, mais justa, mais equitativa, onde o "meu" e o
"teu" não separe tanto as pessoas. Essa maravilhosa aventura que é a
vida, que, por ser tão cotidiana, as pessoas não se dão conta. Só valorizam o que
têm. Estar vivo é quase um milagre. Procurar que as pessoas estejam o mais
felizes possível. Essa é uma causa nobre. Naquela época, pertencíamos a um
mundo que tinha seus arsenais de ideias, e entramos em outro mundo. Mas, na
realidade, a causa que nos impulsiona é a mesma. Os caminhos que podemos tentar
são diferentes, mais complexos. Tudo ficou muito mais difícil, sobretudo é tudo
a muito mais longo prazo do que o que poderíamos pensar em nossos tempos de
juventude.
ZH — Por quê?
Mujica — Por causa da realidade. As mudanças culturais são
enormemente difíceis. Existem classes sociais cuja cultura é muito difícil de
mudar, custa muito esforço, muito conhecimento. Necessitam-se recursos difíceis
de conseguir. Acredito que o mundo pode ir construindo uma sociedade mais
justa, mais nobre. Na medida em que exista mais massificação do conhecimento e
da cultura no nível das grandes massas, um país que tem muita gente e que está
escravizado na sociedade de consumo vai ter a construção de uma sociedade
melhor. Então, o que parecia ser impossível vai demorar um pouco mais.
ZH — Quanto o senhor está conseguindo fazer?
Mujica — Algumas coisas. Há menos pobres, de pobreza
material. Há muitos pobres na cultura e nos sentimentos. Creio que fizemos algo
e outros terão de seguir. Sou favorável à existência dos partidos políticos,
das organizações políticas, porque nossas vidas são curtas, e essas causas
necessitam muito tempo. Custa muito fazer uma colheita, e o período da vida
humana é relativamente breve. E as causas não são coletivas, são
intergeracionais. Não se vai conseguir um milagre de um dia para o outro.
Fizemos nossa parte, plantamos, e tratemos que outras pessoas sigam levantando
a bandeira e lutando por isso. Antes, pensávamos que haveria algum dia triunfal,
em que arrancaríamos a revolução. Hoje, pensamos que a marcha é muito mais
lenta e de longo prazo, que compreende nossa vida e a de muitas outras gerações
e que temos que ir contribuindo para essa luta sucessivamente. Talvez os
chineses, quando construíram a Grande Muralha, pensaram que era missão
impossível, de 300, 400 anos. Bem, a fizeram. Temos de fazer uma grande muralha
de corações, de sentimentos e de cultura. Vai durar muito.
ZH — A vida é uma construção?
Mujica — A vida é uma construção permanente, e isso dá
sentido à vida. A vida se pode viver porque se nasceu, como um vegetal ou
qualquer animal. Pode-se dar um conteúdo a esse milagre da vida. Então, nós nos
sentimos felizes de participar dessa luta.
ZH — O senhor gosta que seja assim? Que não seja como o
senhor pensava quando era um tupamaro?
Mujica — Sigo sendo um tupamaro. Não deixei de ser. O
tupamaro se rebelava contra a injustiça. Isso eu tenho muito claro. Há os
caminhos, as circunstâncias, mas a maneira de ver a vida continua a mesma.
ZH — As mudanças de costumes, como o casamento igualitário e
outras, fazem com que a sociedade uruguaia seja mais igualitária?
Mujica — Creio que ajuda, ajuda. Não são a causa essencial.
Colaboram. A causa essencial segue sendo ricos e pobres, as classes sociais. Um
homem de cor discriminado, se é pobre, aí sente a discriminação. Se é rico, não
tem problema. Um heterodoxo sexual, se é pobre, aí tem problema. Se é rico, não
tem problema. Assim, a contradição fundamental segue sendo a das classes
sociais. As outras também existem e ajudam, mas são secundárias. E é mais fácil
resolver o secundário do que o principal.
ZH — Resolvendo-se o secundário, é possível ter o principal
como alvo?
Mujica — O principal é o alvo clássico. Custa muito.
ZH — Quanto custa?
Mujica — Não sei, mas criar um mundo mais igualitário custa
muito. Custa muito. Porque o motor do desenvolvimento de nossa economia é o
lucro, e é o afã de lucro que move a humanidade. Creio que substituir esse motor
pela solidariedade é uma mudança cultural que exige uma verdadeira revolução.
ZH — Tivemos nos anos 1990 na Argentina, com Carlos Menem, e
no Brasil, com Collor, governos que pensam diferente do senhor. Acredita que
nessa década que se considera como de definição do neoliberalismo houve um
retrocesso?
Mujica — O homem é um animal utopista. Há utopismo de
esquerda e há utopismo de direita. Esse utopismo de direita, o neoliberalismo,
é o sonho de acreditar que pela via crônica de mercado se solucionam todos os
problemas. Esse é um utopismo de direita: a parte sagrada é o mercado. Se o
mercado funciona livremente, tudo mais se resolve. Nós acreditamos que isso
seja um absurdo. Não é que o mercado não tenha importância, mas ao lado do
mercado há outras coisas que têm importância. O assunto é mais complicado. O
mercado tem certa participação na sociedade, mas também tem suas limitações.
Precisa-se de políticas, políticas sociais. Deve-se contribuir para que o
Estado trate de compensar aquilo que o mercado não soluciona. O mercado não
distribui igualmente, concentra. Concentra a riqueza. Mesmo que gere muita
riqueza, concentra-a tanto que acaba não distribuindo proporcionalmente a
riqueza que se cria. O mercado também cria diferenças sociais enormes. Se o Estado
não tem políticas que contribuem com eles, não acredito que o mercado... Esse
foi o sonho dos utopistas de direita. Reduzir o Estado ao mínimo, não ter
políticas sociais, e deixar que o mercado, livremente, ajeite tudo. O utopismo
de esquerda é acreditar que o Estado é capaz de fazer tudo e resolver tudo. E
termina criando uma burocracia que também segue sendo terrivelmente injusta.
Qual é o caminho? Bem, aí está a discussão. É preciso um pouco de mercado, é
preciso um pouco de Estado. Mas se precisa, fundamentalmente, que as pessoas
sejam dirigentes de si mesmas. Que tenham capacidade de se autogovernar em tudo
que seja possível. Para mim, esse é o motor essencial da mudança: que as
pessoas não precisem de um Estado que as governe tanto, nem de um mercado cego.
Mas que cada um seja responsável em grande parte por seu destino, que possam se
juntar com outros e conduzir os fenômenos econômicos, dirigir empresas etc, e
não precisem ter de pilotar uns aos outros. Mas isso vai ser um processo...
ZH — Isto não é uma mudança de sua parte, na medida que nos
anos 1970 acreditava na revolução marxista, com a economia no centro?
Mujica — Sim.
ZH — E hoje, pelo que me parece, quer uma revolução mais
cultural, comportamental.
Mujica — Marx foi muito ridicularizado, tanto por alguns de
seus defensores como por alguns de seus detratores. Ele reconheceu a
importância que tem o aspecto econômico, mas que não significa que a história
humana se explica só pelo econômico. A história humana tem muitos componentes.
Acho que, da economia, o mais importante é forja em que se cria a cultura de
uma nação. Nós, hoje, temos uma cultura capitalista. E quem tem essa cultura
não são os grandes donos do capital, que é óbvio que devem tê-la. Quem tem essa
cultura é aquela grande massa que consome e gasta e se move todos os dias. Tem
uma cultura capitalista cada indivíduo que quer melhorar somente o que é seu. A
visão socializante é mais gregária: em vez de se dizer "eu", se diz
"nós". É muito mais social. Uma cultura de caráter social é aquela em
que pensamos como espécie ou no interesse geral. Nós pensamos primeiro nos
nossos próprios interesses. Isso é próprio de uma cultura capitalista. As
relações de produção podem mudar, mas se a cultura não muda, a mudança das
relações de produção não vai ter efeito.
Quando se tentou construir o socialismo e se passou todos os
bens importantes às mãos do Estado, as pessoas que foram trabalhar no Estados
vieram com uma cultura também capitalista e isso acabou na burocracia. Um homem
primitivo, um caçador de uma tribo, tinha um sentido social. Esse caçador de
tribo, quando caçava um animal, sabia que esse animal não era dele, era da
tribo e o levava para servir de comida à tribo. A sua cultura é gregária e
social. Uso essa imagem para ver esse fenômeno, que é bastante difícil. O ser
humano viveu 90% do tempo que está na Terra com uma cultura tribal. A história,
a tecnologia, o comércio nos transformaram nisso que somos, com mentalidade e
cultura capitalistas. Temos uma contradição entre o que somos e nossa herança
histórica e o que acontece hoje. Superar isso vai custar muito à humanidade, e
não sei se superamos isso. É uma espécie de bem perdido.
ZH — Quando o senhor tenta legalizar a produção da maconha,
é uma maneira de fazer com que um aspecto perverso do capitalismo, que é o
narcotraficante, seja afastado do processo?
Mujica — Nós não legalizamos a maconha. Regulamos um mercado
que já existe. Nós não inventamos esse mercado. Ele já existe. Hoje. Aqui.
Tratamos de regular e intervir nesse mercado. Porque o narcotráfico é pior que
a droga. O narcotráfico nos traz outros problemas sociais terríveis. Ele
degrada o mundo delituoso. Arruma tudo com dinheiro ou morte. Há um lema:
dinheiro (plata) ou chumbo (plomo). O mundo delituoso também tinha uma escala
de valores. O narcotráfico significa uma degradação na degradada consciência
delituosa. É, dentro da cultura do delito, agravar o pior do delito. As consequências
sociais vão além do narcotráfico. Toda a delinquência fica violenta,
desproporcionalmente violenta. Nossa sociedade está coberta de uma violência
irracional e estúpida, às vezes, por ser desproporcional. Sou capaz de matar um
homem para tirar-lhe um dinheiro mínimo, de um trabalhador comum. No campo do
delito, sempre houve uma certa proporção entre o que se podia fazer e o que não
valia a pena. Isso se perde com o narcotráfico. Estamos tentando terminar com
esse mercado, legalizando o consumo da maconha, mas controlando-o, dando uma
ração mensal ao viciado. Se a pessoa quiser passar dessa ração, teremos que
tratá-la. Se mantemos essas pessoas no mundo clandestino, não podemos
identificá-las, e as deixamos para o narcotráfico. Queremos combater o narcotráfico
ao roubar-lhe o mercado e o deixando sem negócio. Se conseguiremos, não sei. O
que pedimos é o direito de experimentar, em frente ao evidente fracasso, em
todos os lugares, que a repressão teve. A repressão não chega, acredite.
Queremos fazer política por outro lado. O narcotráfico é um fenômeno
capitalista típico. Como tem alto risco, tem alta taxa de lucro. E por que tem
alta taxa de lucro? Porque é um monopólio, poucos o praticam porque tem alto
risco. Mas é um fenômeno que se alimenta assim mesmo. A repressão asssegura o
monopólio para os poucos que estão no negócio. Não há concorrência, ou há muito
pouca. Esse é apenas um aspecto de tantos. O que queremos fazer é um teste
social.
ZH — Se essa medida uruguaia for um sucesso, pode ser um
modelo para outros países?
Mujica — Pode ser que se aprenda alguma coisa, que outros
países possam aprender alguma coisa. E põe em xeque a ideia de que a única
maneira de combater o narcotráfico é com a repressão. Acreditamos que temos de
combinar. A repressão não é suficiente. Por um lado, é preciso reprimir, mas
por outro, é preciso dar uma alternativa conduzida.
ZH — Nos anos 1970 e 1980, a maconha tinha glamour. O senhor
nunca fumou?
Mujica — Não, nunca fumei. Nesses anos, estava preso.
ZH — Mas conviveu com muitas pessoas...
Mujica — Sim. Não. A verdade é que não. As drogas são tão
velhas quanto o mundo, sempre existiram. A guerra do ópio na China, que sei eu?
A drogas são velhas, o narcotráfico é que é um fenômeno moderno. É muito pior,
degrada toda a sociedade. Não defendo o consumo de maconha, nem nenhum vício.
Mas uma coisa é o que pensamos, e outra é o que a sociedade faz. Sabemos que o
cigarro faz mal, mas quanta gente fuma? Se você toma dois, três, quatro uísques
por dia, é suportável, mas se toma uma garrafa por dia, temos que tratá-lo,
pois é um alcoólatra. Acredito que com a droga é a mesma coisa. Temos que ver a
quantidade que, mesmo que perigosa, pode ser suportável, e quando temos de
tratar álcool. Com o álcool não acontece isso. Uma coisa é uma pessoa
alcoólatra, outra é uma que bebe de vez em quando. Certo?
ZH — A presidente Dilma falou com o senhor alguma vez sobre
essa lei?
Mujica — Ela tem muito medo pelas dimensões do Brasil. Não
vê outro caminho a não ser reprimir, agora.
ZH — Vocês conversaram sobre isso?
Mujica — São países muito diferentes. Brasil tem uma
dimensão colossal. E tem muita experiência nessas coisas. O Uruguai foi um país
em que o Estado, por quase 50 anos, foi o único que produzia álcool: grapa,
cachaça, rum, conhaque, tudo isso era o Estado que produzia. Não era privado. O
Estado vendia para as pessoas. Isso durou 50 anos, terminou por 1918, 1917, por
aí. Tinha o "armazém" estatal. Foi um país que reconheceu a
prostituição e a legalizou lá por 1914. O Uruguai inventou uma universidade
para que as mulheres pudessem ir, nessa década também. Porque as pessoas não
queriam mandar suas filhas para estudar. Com o tempo, o ensino passou a ser
mesmo, mas no início tinha muita resistência. Se estabeleceu o divórcio pela
vontade da mulher. O voto das mulheres... Temos a tradição de sermos muito
abertos. O "armazém" estatal do álcool tinha 15 anos antes da Lei
Seca dos Estados Unidos, que foi horrível. A Lei Seca foi pior do que nunca,
não é? Temos a tradição de reconhecer os problemas. E tratar de legalizá-los e
organizá-los da melhor maneira, e não escondê-los. Não é que a gente goste da
prostituição ou do álcool. É outra coisa. A realidade é de temos que enfrentar
e organizar para que seja o menos prejudicial possível. O que pedimos ao mundo
é a capacidade de fazer um experimento. E ver se, por esse lado, recuperamos
muita gente que estamos perdendo. Se estivermos errados, vamos dizer que
estávamos errados. E aprendemos. E se descobrirmos algum caminho, podemos
oferecê-lo ao mundo como experiência, e que cada um faça o que achar melhor.
ZH — O senhor está certo de que essa medida será um sucesso
ou há um temor?
Mujica — Tem seu perigo, porque temos que criar muitas coisas.
Já se vão cem anos reprimindo as drogas, e estamos fracassando. Não quero dizer
que isso que começamos a experimentar nos dê uma solução. O que sabemos é que o
que foi feito até agora não é suficiente. E como não é suficiente, cada vez
temos mais pessoas presas por envolvimento com drogas, temos de encontrar outro
caminho. Não vamos mudar fazendo sempre o mesmo.
ZH — O Uruguai é um país pequeno que precisa de mais voz. O
senhor tem falado muito com a presidente Dilma Rousseff a respeito do acordo
entre Mercosul e União Europeia. É muito importante para o Uruguai esse acordo?
Mujica — É importante ter diversidade. O mundo se está
organizando em um grande bloco. A comunidade européia tem 20 e tantos países,
com história, idioma, cultura diferentes. Sem dúvida, por mais que se
critiquem, estão se juntando. E criaram uma realidade econômica muito
importante. Os Estados Unidos têm seu acordo com Canadá e com México. Do outro
lado do oceano está a China, que é um estado multinacional milenar. Tem a
Índia. Esse é o mundo em que vivemos. Nesta região, o principal comprador que
temos é a China. É o principal cliente do Brasil, nosso, do Paraguai e da
Argentina. É inteligente não depender de um único país. É inteligente
diversificar o mercado. Precisamos da Europa como uma alternativa que ajude a
equilibrar os pratos da balança. A relação com a Europa é importante pelo que a
Europa significa. Mas também é importante porque nos dá uma alternativa diante
da crescente dependência econômica do mercado chinês. Quanto mais equilíbrio e
diversidade, mais seguros estaremos. Temos de discutir ao máximo com a
comunidade européia, que, por razões culturais, está relativamente perto, muito
da nossa população tem origens lá. Mas isso também depende do que nos pedirem.
ZH — Há uma resistência muito forte da Venezuela, da
Bolívia, do Equador e também da Argentina. Isso é um problema?
Mujica — Entendemos essa resistência, mas acreditamos na
diversidade. No mundo de hoje, não se pode ser independente total — e uso a
palavra entre aspas. Temos de ser interdependentes para termos a maior margem
de independência possível. Se dependemos de um somente, é perigoso. Se
conseguimos diversificar, que nossa orientação exterior dependa de três ou
quatro, e se possível mais, melhor. Então, sou a favor da política de
diversificar.
ZH — Essa resistência da Argentina é o motivo de alguns
desentendimentos?
Mujica — Não. Acredito que a Argentina tem um projeto, e tem
todo o direito de tê-lo, no estilo 1960. Acreditam em solucionar os problemas e
vão se fechando cada vez mais. Posso entender se essa for a política geral de
todo o Mercosul, mas se fechar para os próprios países do Mercosul me parece
que tira o sentido do Mercosul.
ZH — Mas isso é o que vem acontecendo. O que vocês podem
fazer para mudar isso?
Mujica — Isso depende deles. Não podemos intervir. Essa é
uma questão da política argentina.
ZH — O Brasil é um aliado do Uruguai?
Mujica — Sim, muito bom. O Brasil tem uma política federal.
Às vezes, temos uma contraposição, porque, como federação, em algum estado pode
surgir um obstáculo. Mas o governo federal sempre defende a relação. Mateamos
bem.
ZH — A economia do Uruguai é muito parecida com a do Rio
Grande do Sul.
Mujica — É parecida, mas o Brasil é muito grande. O melhor
cliente que temos para a carne de cordeiro é São Paulo. Nosso problema para
entrar no Brasil é produzir com qualidade. Tem um público de grande poder
aquisitivo no Brasil. Pagam muito bem por qualidade.
ZH — O senhor crê no futuro do Mercosul?
Mujica — Creio na necessidade de integração. Mercosul e
mais. Não podemos estar sozinhos. Até países grandes como o Brasil precisam de
aliados. A comunidade econômica europeia tem com seus seiscentos e tantos
milhões, com alto pode aquisitivo. Os Estados Unidos, com Canadá, e o México é
um mercado gigantesco. A China e a Índia, com suas enormes populações. Todos
eles são inalcançáveis se não tivermos a inteligência de juntar-nos.
ZH — Uruguai, Paraguai e países com populações menores
sofrem mais com isso?
Mujica — Sim. E o Mercosul entendeu isso e, por isso, nos
ajudou. Achamos que há projetos interessantes na economia brasileira, que
devemos desenvolver e colaborar. Por exemplo, a conexão elétrica que estamos
fazendo com o Rio Grande é importante. Porque não podíamos trazer energia ou
mandar quando nos sobra. Agora podemos, com uma conexão de 500 megawatts. Vamos
fazer um porto bi-nacional com o Brasil, e não é contra o Brasil, é para
ajudar. Para que possa transportar coisas pelo Rio Paraná, pelo Rio Paraguai,
porque o transporte por água é mais barato que por caminhões. Temos que criar
coisas complementares com o interesse do Brasil, para que essas coisas sejam
nos ajudem mutuamente.
ZH — Agora, no Brasil, o ex-deputado José Genoino, que
esteve na guerrilha, está na prisão. Como o senhor vê isso?
Mujica — Não gosto da prisão por motivos políticos.
Precisamos lutar por uma humanidade que possa superar essa contradição. Mas
sobre esse assunto, não tenho informações para poder opinar.
ZH — No Brasil, há um sistema político no qual, para que o
governo tenha a maioria, há muitas negociações, o que gerou o mensalão. No
Uruguai, há um modelo diferente?
Mujica — Aqui não existe isso. No Uruguai, os partidos são
muito sólidos. As pessoas não mudam de partido. Os partidos tradicionais são
tão velhos quanto o país. E a nossa Frente Ampla, que está no governo, já tem
40 e poucos anos. Não existe essa prática. Aqui, não se compra ninguém nessas
decisões. Estamos muito longe disso.
ZH — Esses partidos que existem há anos, essa raiz fortalece
a ideologia?
Mujica — Acredito que temos de defender os partidos. Porque
os partidos tendem a expressar vontades de caráter coletivo, que vão além das
fraquezas individuais. Os indivíduos têm importância, mas não tanto quanto os
partidos. Sei que o Brasil é muito grande, é um país continental, tem problemas
de integração. E, às vezes, um Estado olha o mundo de maneira independente e
aparecem coisas que podem ser criticadas. Mas é milagroso que um governo com
minoria parlamentar tenha podido fazer as coisas que o governo Lula fez no
Brasil. Não é fácil isso. Sei que lá as pessoas mudam de partido facilmente.