Artigo de Marina Silva, publicado na Folha de S.Paulo
Meu tio viveu com os índios dos 12 aos 30 anos. Mantinha
seus hábitos e, às vezes, passava semanas sozinho na mata. A família se
preocupava, mas ele voltava satisfeito. Ajudava a todos com os saberes da
floresta e suas plantas medicinais. Parecia prever o futuro, dizia coisas que
me impressionavam. E ia compondo em mim a imagem de um desconhecido íntimo: o
"índio".
Nas ruas de Rio Branco, vi índias com filhos no colo,
pedindo esmola. Era o drama da nova ocupação da Amazônia, gado, madeira e
grandes obras sem cuidados ambientais. O olhar das crianças me mostrava que os
índios não eram entidades míticas, mas gente de carne e osso, parte do povo
pobre e humilhado.
Depois, com Chico Mendes e outros companheiros, acompanhei a
Aliança dos Povos da Floresta e ouvi o discurso forte e diferente dos líderes
indígenas. Já aprendera que não eram "índios", mas caxinauá,
axaninca, apurinã, muitos povos diferentes, iguais no desejo de reconhecimento.
Em sua fala, vestes e adornos, entrevia outros padrões civilizatórios, valores
e visões do mundo.
O "outro" da minha infância me questionou. O que é
ser brasileiro? Quem faz parte, quem está excluído, por quê? Podem coexistir
diferentes narrativas históricas, ideias de justiça e cidadania?
Ontem, uma foto me alegrou. Era uma formatura de professores
indígenas na Universidade do Acre. Não usavam a beca inteira, só a capa nos
ombros, sobre as tradicionais vestes coloridas. Chegam ao "nível
superior" assimilando outros aprendizados sem abdicar de suas culturas.
Em vários Estados, jovens indígenas estão se formando. No
Acre, começaram há 30 anos com um programa da Comissão Pró-Índio. Fundaram
escolas nas aldeias e uma associação de professores. Há alguns anos, o governo
assumiu o programa e buscou parceria na universidade. Os resultados são
excelentes para os índios e para toda a sociedade.
Em muitas aldeias, eles manejam modernas tecnologias para
cuidar da terra e planejar o futuro. Há quem diga que, com isso, deixam de ser
índios, que "índio de verdade não usa celular nem tem conta em
banco". Muitos repetem esse discurso sem perceber aonde ele leva. O passo
seguinte é dizer: eles têm muita terra e o progresso do país precisa delas.
A civilização ocidental vive carente, sentada num tesouro.
Elimina os "outros" que lhe são estranhos e desperdiça sua sabedoria.
Mas nossa fome não é só de comida, é de um sentido para a vida que vá além do
dinheiro e do consumo.
A educação pode ser o diálogo de que necessitamos. Tenho
esperança de que, com ela, os brasileiros de todas as etnias superem o sistema
de apartação e preconceito.
Minha esperança agora tem diploma. Com a cara pintada e as
cores da diversidade.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no
governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na versão
impressa da Folha de S. Paulo.
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