Artigo de Fernando Gabeira
Pela minha agenda, deveria estar na Serra da Mantiqueira,
visitando agricultores orgânicos cuja lavoura está sendo atacada por javalis.
Mas a notícia de que o Rio decretou calamidade pública, os problemas de segurança
pública que se agravam, tudo isso contribui para que fique por aqui e, por
enquanto, deixe os javalis em paz. Documentar a paisagem depois da batalha é
remexer as cinzas de um sonho em que a roubalheira e a megalomania dominaram o
cenário.
Esta semana ficamos sabendo que a Odebrecht, além de seu
departamento de propina, tinha um servidor na Suíça e um banco em Antígua, um
sofisticado e talvez inédito esquema para uma só empresa. Os rankings
internacionais de corrupção terão de abrir uma nova modalidade para abarcar
essa capacidade de construção de um sistema fechado, um mundo virtual onde
empreiteiros movem fortunas de verdade.
A Olimpíada que se aproxima é uma espécie de herança daquele
período delirante. Um só país decidiu sediar Copa do Mundo e Olimpíada. A ideia
que animava a atração dos eventos era revelar o poder de organização do Brasil,
maravilhar o mundo com nosso crescimento. O primeiro choque se deu em 2013 com
as grandes manifestações do período.
A Olimpíada chega agora com o Brasil em crise profunda e o
estado do Rio quebrado. O decreto de calamidade pública tem um aspecto mítico
porque nos remete a catástrofes naturais, tempestades, terremotos. Remexendo
nas cinzas do delírio vamos encontrar a insistência em ampliar a máquina do
estado, em conceder isenções fiscais generosas, sem um estudo de
custo-benefício dessas medidas. Mas era um tempo alucinado em que os homens do
governo dançavam com um lenço na cabeça num caro restaurante de Paris. E as
mulheres exibiam seus sapatos Christian Louboutin.
Começam a surgir agora novas delações, indícios do processo
de corrupção que envolveu o Comperj e o Maracanã. A visão daqueles tempos fica
mais completa ainda. Calamidade nos remete à ideia de algo inesperado e
repentino. Quase sem intervenção humana. O que acontece agora é resultado de um
longo processo de erros e desvios, de ambições milionárias que arruinaram o
estado.
O esquema de segurança da Olimpíada para o qual foram
destinados R$ 2,9 bilhões deve representar um alívio para a própria polícia, num
momento em que traficantes invadem hospitais ou desfilam armados nas
proximidades do aeroporto. Mas a Olimpíada vai passar, e o Rio estará de novo
confrontado com sua crise. É um corpo ferido por muitas flechas: crise
econômica, petróleo, corrupção, violência. E o governo não é nada estimulante.
Pressionado por repórteres a falar sobre algo além de verbas para a segurança,
Francisco Dornelles limitou-se a dizer para o motorista: “vamos embora,
Ademário”. O Sr Ademário Gonçalves dos Santos deve ser um excelente motorista
profissional. Mas não pode saber sozinho qual o nosso destino. Embora para
onde, Ademário? Que buracos, solavancos, sinistras curvas você prepara para
nós?
O Rio terá de se reinventar. E não será nada fácil. As
cinzas revelam longos períodos de populismo. Haverá choques, frustrações.
Certas medidas, no entanto, podem ser bem recebidas, a julgar por alguns
cartazes que li: rever as isenções fiscais. Está mais do que na hora de
discutir tudo abertamente. Não existem fórmulas acabadas para encarar o
problema do Rio. Era preciso que as pessoas tivessem uma visão bem clara do que
aconteceu e o estrago que o grupo dominante provocou.
Esse conhecimento pode ajudar na reconstrução. Muitos
delírios explodiram por aqui. O último foi o PT: uma supertele nacional, a Oi,
que pediu recuperação judicial. Se toda esse derrocada que nos custou dinheiro
e trabalho representar uma vacina contra o populismo, pelo menos alguma coisa
será ganha.
Eleições com pouco dinheiro e um novo comportamento do
eleitor podem também ser um avanço. Mas são possibilidades futuras. Aqui e
agora, teremos de esperar o Sr. Ademário num posto de gasolina, numa loja de
conveniência, e perguntar de novo o que o governo vai fazer.
O rombo nas contas do estado é de R$ 20 bilhões. Não basta
declarar calamidade. É preciso um mapa para transitar rumo a uma situação mais
calma. Dificilmente o governo fará a coisa certa sem transparência e algum tipo
de adesão racional da sociedade.
Mesmo viajando muito pelo país, tive a oportunidade de
documentar a decadência das cidades ligados ao petróleo, como Campos e Macaé, a
crise financeira e sua consequência nos serviços essenciais e, esta semana,
mais detidamente, os problemas de segurança.
Não me lembro de uma crise tão profunda e tão inquietante
pelas suas possíveis consequências sociais. Uma consciência mais ampla desse
desastre pode evitar que as cinzas do delírio populista tragam consigo os ovos
da serpente.
Artigo publicado no Segundo Caderno de O Globo em 26/06/2016
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