O maior desmatador da história recente da Amazônia é filho
de um rico e tradicional pecuarista de São Paulo. Ele próprio operava sediado
no bairro dos Jardins, na capital. Até ser preso, comandava um esquema
sofisticado de desmatamento, grilagem e falsificação no Pará, que contava até
com profissionais de geoprocessamento para enganar os satélites de
monitoramento. Denunciado por índios, o caso levou a recente operação conjunta
entre o Ibama, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Receita Federal,
revelando detalhes sobre como hoje se organiza o crime na expansão da fronteira
agropecuária amazônica.
Operação Kaypó
Era fevereiro de 2014. Luciano Evaristo, diretor de Proteção
Ambiental do Ibama, chegava à garagem da sede da instituição em Brasília e
conseguia ouvir um burburinho alto vindo do escritório. Dentro de seu gabinete,
pintados para guerra, mais de trinta índios kayapós esperavam por ele com arcos
e flechas. Luciano teve o cuidado de pedir que depositassem as armas antes de
começarem a conversa.
O Plano Básico Ambiental (PBA) do licenciamento da rodovia
BR-163, que liga Cuiabá (Mato Grosso) à Santarém (Pará), dá aos kayapós da
Terra Indígena Mekrãgnoti, o direito a receber recursos do Governo para
compensação de impactos decorrentes da obra. Em 2014, desconfianças do Governo
de que os índios estariam desmatando no entorno da Mekrãgnoti levou a retenção
desta verba. Os índios não eram os culpados pelo desmatamento, mas eles sabiam
quem era. Foram até Brasília a procura de Luciano Evaristo para denunciar um
criminoso.
“A conversa foi dura”, relembra Luciano. Tão logo os kayapós
se foram, ele tratou de levantar as imagens de satélite da região em busca das
áreas alvo das denúncias. “Não achei nada nos satélites que indicasse operação
de desmatamento em larga escala.” Ainda assim, resolveu confiar nos índios.
Luciano desembarcou em Mekrãgnoti em abril de 2014. Lá, um grupo de lideranças
kayapós se uniu à equipe de fiscalização do Ibama. Usando um sistema de
radioamadores para repassar informações entre si - sinal de telefone celular
não pega - os índios já haviam mapeado a localização de acampamentos de
desmatadores na floresta.
Encontraram 18 acampamentos. Somados, foram embargados 14
mil hectares. “A maior área já encontrada pelo IBAMA aberta por empreitada de
um só infrator ambiental na floresta amazônica”, conta Luciano. A ação ficou
conhecida como Operação Kayapó. Presos 40 trabalhadores, logo muitos começaram
a falar. Um mesmo nome, então, se repetia. Começava aí a investigação que uniu
instituições e resultou, pela primeira vez, na prisão de um chefão do crime
operando na floresta.
O milionário das motosserras
O maior desmatador da história recente da Amazônia é filho
de um pecuarista milionário de São Paulo. Antônio José Junqueira Vilela Filho –
o AJJ Vilela, vulgo Jotinha, nasceu e cresceu em um império bovino montado pelo
pai, Antônio José Junqueira Vilela. Junto com a família, Jotinha operava um
esquema sofisticado que envolvia desmatamento em série, grilagem de terras
públicas, lavagem de dinheiro, falsificação e trabalho escravo no Pará.
O nome de Jotinha começou a circular pelas páginas de
embargos do Ibama no Pará nos idos de 2009, embora ligado a áreas desmatadas
menores. Foi entre 2012 e 2014, revelam as investigações, que as motosserras de
Vilela Filho trabalharam sem descanso. Ao serem presos, ele e seus parceiros
acumulavam denúncias de destruição que somavam 30 mil hectares de floresta no
município de Altamira (PA), área equivalente ao território de cidades como
Fortaleza, no Ceará, ou Belo Horizonte, em Minas.
A operação Rios Voadores, que prendeu a quadrilha, foi
deflagrada em 30 de junho de 2016, após dois anos de quebras de sigilo bancário
e interceptações telefônicas. No dia D, contou com um efetivo de 95 policiais
federais, 15 auditores da Receita e 32 servidores do Ibama, distribuídos pelos
estados de Pará, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina. A
Justiça Federal de Altamira expediu 52 medidas judiciais, entre 15 prisões preventivas
e mandados de busca e apreensão.
Jotinha, primeiro considerado foragido, apresentou-se à
Justiça uma semana depois. Dias após a operação, escutas telefônicas
interceptaram Ana Luiza Junqueira Vilela Viacava, irmã de Jotinha, que passava
férias nos Estados Unidos, coordenando de longe a ocultação e destruição de
provas contra o irmão. Ana Luiza foi presa ao desembarcar de viagem. Os três
filhos de Antônio José Junqueira Vilela - Jotinha, Ana Luiza e Ana Paula -
todos acusados de participar do esquema, são figurinhas fáceis da noite
paulistana. A família circula entre celebridades e políticos. Na Internet é
possível achar menções a eles em colunas sociais, frequentando eventos
exclusivos e recebendo vips para festas em mansões no bairro dos Jardins, de
classe média alta em São Paulo. Ana Luiza leva o sobrenome Viacava do marido
Ricardo. A família Viacava é de igual peso na história da pecuária brasileira e
seus patriarcas são amigos de longa data. Ricardo Viacava, além de cunhado, era
o braço direito de Jotinha na operação criminosa.
Vilela Filho é hoje o homem que recebeu o maior valor em
multa aplicada a um só infrator ambiental – R$ 119,8 milhões, somadas em dez
autos de infração referentes à Operação Rios Voadores. Ele é acusado de
movimentar o equivalente a R$ 1,9 bilhão entre 2012 e 2015, em operações
ilegais. Legou à sociedade, segundo os cálculos do Ibama, um prejuízo ambiental
estimado em R$ 420 milhões.
Raio-x de um crime exemplar
O esquema comandado por Vilela Filho chama a atenção pela
sofisticação. A quadrilha tinha núcleos bem definidos. Em campo ficavam os
agenciadores de mão-de-obra ilegal. A etapa de desmatamento era custosa.
Eremilton Lima da Silva, vulgo Marabá, era um dos chamados gatos, responsável
por arregimentar pessoas para trabalharem no campo. Ele aparece na investigação
recebendo valores que superam 170 mil reais em nome de sua esposa, Laura Rosa
Rodrigues de Souza. Os irmãos Jerônimo Braz Garcia e Bruno Garcia, sócios na
empresa Jerônimo Máquinas, também faziam parte do esquema. Chegaram a receber
500 mil reais por um só serviço de “limpeza”, conforme consta no inquérito.
As equipes nos acampamentos eram sempre de dez pessoas, com
funções bem definidas – um cozinheiro, um meloso, responsável pela manutenção
de motosserras, e oito motosserristas. Todos trabalhavam sem dias de folga e
eram pagos apenas ao final do serviço. Caso o Ibama os flagrasse, receberiam
nada. Luciano nunca esqueceu do primeiro acampamento que encontrou: “Chamou a
atenção o trabalho escravo e degradante. Eu lembro que abri um balde que eles
usavam para armazenar carne e o gás metano praticamente voou na minha cara,
parecia que ia explodir. A carne estava podre”.
Os núcleos de desmatadores operavam em todas as fases do
típico processo de abertura de floresta. Primeiro retiravam as árvores maiores
e mais valiosas – o chamado corte seletivo. A venda ilegal de madeira era uma
das atividades com a qual lucrava Jotinha. Na sequência, as áreas eram
completamente desmatadas. Entravam em cena os tratores e “correntões”, cabos de
aço que devastam em série. Em seguida vinha o fogo. Queimadas eram repetidas
até que a área estivesse “limpa”.
Completo o ciclo de devastação, plantava-se capim, muitas
vezes com o uso de aviões agrícolas. Por último chegava o boi. Dependendo da
aptidão do local, algumas destas áreas eram vendidas ou arrendadas para
terceiros, que iriam explorá-la mediante aluguel. Outras permaneciam em posse
da quadrilha, em geral para criação de gado. O processo era otimizado: enquanto
em algumas áreas a mata começava a ser derrubada, outras estavam em plena
produção e umas tantas sendo vendidas ou arrendadas.
Em São Paulo, empresas de fachada serviam para que o
grileiro movimentasse as altas quantias de dinheiro que iam para financiar a
atividade ilegal de desmatamento, ou servir de crédito para atrair compradores
das terras griladas. Entravam em cena as irmãs Ana Luiza e Ana Paula e o
cunhado de Jotinha, Ricardo Viacava, que transferiam as quantias entre si e
entre as empresas. A principal delas era a Sociedade Comercial AJJ, com sede na
alameda Santos, bairro dos Jardins, área rica e tradicional da cidade de São
Paulo.
“O interessante deste caso é que, como existia muito
dinheiro disponível para a operação, o desmatamento acontecia muito rápido. Era
um programa bem organizado, para ser feito no mínimo de tempo possível e evitar
a fiscalização ambiental”, conta Higor Pessoa, Procurador do Ministério Público
Federal no Pará, responsável pelo caso.
Burlar a fiscalização envolvia núcleos ainda mais
aprimorados de atuação. Profissionais de geoprocessamento trabalhavam de
escritórios no Pará e no Mato Grosso analisando imagens de satélite. Eles
acumulavam duas funções. A principal era a de forjar Cadastros Ambientais
Rurais (CAR). O CAR é um cadastramento eletrônico instituído pelo governo que
tem como objetivo auxiliar na gestão das florestas brasileiras dentro de áreas
privadas. Na prática, o CAR é o primeiro cadastro obrigatório a todos os
proprietários rurais do país, salvo as sucessivas prorrogações de prazo que
enfrenta.
A quadrilha de Jotinha sabia ler o sinal dos tempos e, para
facilitar a compra e venda de terras, mantinha o CAR das áreas griladas em dia.
O núcleo de geoprocessamento produzia o recorte perfeito dos perímetros
abertos, que seriam cadastrados em nome de posseiros. Tomavam cuidado para que
nenhuma área aparecesse ao satélite em sobreposição a outras anteriormente
embargadas pelo Ibama.
Vinha então o núcleo dos “laranjas”, pessoas que emprestavam
o nome para constar nos cadastros ambientais declarados pela quadrilha.
Apareceram como proprietários membros da família Vilela Junqueira, seus
cúmplices e funcionários das empresas de fachada. Até mesmo o contador de
Jotinha virou dono de fazenda. “Foi fácil chegar ao Vilela, ele deixava este
tipo de rastro”, comenta Paulo Maués, coordenador da operação Rios Voadores
pelo Ibama.
Havia ainda função mais ousada para os homens por trás dos
computadores: tentar enganar o olho do Governo brasileiro. Para isso, recorriam
às imagens de satélite usadas pelos agentes de fiscalização, as quais qualquer
cidadão tem acesso, para analisar o próprio rastro e orquestrar a operação de
desmatamento. Entre as táticas, deixar em pé árvores de porte alto, capazes de
enganar os sensores dos satélites. O indicativo das queimadas era controlado de
perto, para que nenhum fogo ficasse aparente. Procuravam agir em períodos
nublados, quando os satélites são cegos pelas nuvens, para agirem incólumes.
A sorte de Luciano Evaristo foi ter confiado nos índios.
Crime e castigo
A certeza da impunidade é citada como o motivo que levou um
jovem de família rica de São Paulo a se dedicar com tanto esmero a operar
ilegalmente em plena Amazônia. “É uma questão cultural mesmo", diz Higor
Pessoa. "O pai do Vilela Filho foi um grande desmatador e nunca aconteceu
nada com ele. Mas eram outros tempos”, complementa o Procurador.
Atribui-se ao patriarca da família Junqueira Vilela, Antônio
José, a visão de que seria uma raça de gado recém-chegada da Índia, o Nelore,
que iria melhor se adaptar às condições brasileiras e representar o futuro do
pecuária de corte do país. Ele acertou nesta e em outras empreitadas, como por
exemplo a de melhoramento genético de bois, atividade a qual se dedica nos
últimos anos com muito sucesso. Assim como não lhe faltou visão de negócio,
tampouco careceu de terras para colocá-las em prática. Chegou ao então inóspito
Mato Grosso no final da década de 1970, aos 20 anos de idade. A grilagem de
terras para venda e a criação de boi na Amazônia foram suas principais
atividades desde sempre. Com elas fez fortuna e fama no meio pecuário
brasileiro.
A pecuária também estava no sangue de Jotinha. O grileiro
sabia como usar as regras do jogo para driblar qualquer cerco. Graças a acordos
de mercado, é mais difícil hoje para um frigorífico adquirir carne de gado
criado em áreas embargadas. Difícil, mas longe de ser impossível. Prática
comum, Jotinha lançava mão do chamado "esquentamento de boi" - vendia
o gado como se fosse oriundo de fazendas regularizadas, usando o nome de
terceiros. Entre os acusados de participar deste esquema está Eleotério Garcia,
o Panquinha, que atuava como intermediário no processo fraudulento.
Outras movimentações, no entanto, eram menos cuidadosas. Ao
menos um frigorífico, o Redentor, no Mato Grosso, teve profissionais autuados
na operação por envolvimento na compra de gado de áreas sem procedência
garantida. Estão ainda sob investigação os grupos Amaggi - do atual Ministro da
Agricultura, Blairo Maggi -, Bom Futuro e a JBS, acusados de realizarem
transações financeiras com a quadrilha que somaram R$ 10 milhões entre 2012 e
2015. A JBS é signatária de acordos com o Ministério Público Federal e com o
Greenpeace, no qual se compromete a rastrear toda a carne que adquire da
Amazônia. A investigação sobre o envolvimento destas empresa ainda está em
curso.
Graças ao trabalho conjunto com a Polícia, Receita e
Ministério Público, foi possível acrescentar ao rol de crimes, além do
ambiental, os de falsificação de documentos, formação de quadrilha e trabalho
escravo. Esse conjunto propiciou a prisão de Jotinha. Crime de desmatamento,
sozinho, literalmente não dá cadeia a ninguém. As penas em geral são baixas e,
quando pego o desmatador em flagrante, sai mediante fiança. Jotinha, ele mesmo,
provavelmente nunca encostou a lâmina de uma motosserra em um tronco. Quando
muito, são pegos destruindo a floresta os trabalhadores pobres, vindos de
municípios pequenos do Norte e trabalhando em condições análogas à escravidão.
“Foi a primeira vez que eu vi uma ação conjunta desmembrar todo o aparato de um
grileiro de uma só vez”, afirma Luciano Evaristo. "Esta operação
descortinou como funciona a engrenagem do crime organizado no processo de
ocupação da Amazônia", acrescenta Higor Pessoa. Ele garante que as
investigações sobre o caso continuarão até pelo menos o final deste ano.
"Ainda haverá mais denúncias", antecipa o procurador.
Jotinha segue preso na Penitenciária do Tremembé, em São
Paulo. Um inquérito que apura sua ligação com uma tentativa de assassinato,
arquivado por falta de provas, pode ser reaberto. Ele é acusado de comandar uma
emboscada contra a trabalhadora sem-terra Dezuíta Assis Ribeiro Chagas, em maio
de 2015, na região do interior de São Paulo, conhecida como Pontal do
Paranapanema.
Essa reportagem foi originalmente publicada pelo ((o))eco,
site feito pela ONG Associação O Eco, trabalho de uma rede de jornalistas e
especialistas, muitos voluntários e outros que trabalham em tempo parcial.