Da ISTOÉ
A morte em um fatídico acidente de avião do ministro Teori
Zavascki, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, acomodou
uma nuvem cinzenta sobre futuro das investigações do maior esquema de corrupção
já descoberto no País. Além de acumular em seu gabinete mais de 50 inquéritos e
ações penais da Lava Jato, o ministro tinha em seu poder a explosiva delação
premiada dos 77 executivos da Odebrecht. E estava prestes a homologá-la. Na
esteira da tragédia, enquanto o meio político não só fazia figa para ganhar um
fôlego, como já se articulava para jogar o fim do mundo para além das festas
momescas, advogados da empreiteira manifestavam preocupação com um adiamento
indefinido dos processos. Os procuradores, por seu turno, manifestavam dúvidas
se o novo ministro relator reuniria condições técnicas e isenção ética para
levar adiante a operação. Em meio a esse mar de incertezas, emerge como voz
altiva da República a presidente do STF, Cármen Lúcia. Na última semana, coube
à ministra avocar para si a condução da Lava Jato, acelerar a chamada “mãe de
todas as delações” e assumir as rédeas do STF nas articulações para escolha dos
novos ministro e relator. Foi como se as placas tectônicas, alvoroçadas em
Brasília, se reacomodassem naturalmente, após o tsunami. A autoridade serena de
Cármen e sua genuína firmeza, a se imporem perante o caos, ou a proximidade
dele, bastaram. Fez-se a calmaria. Durante o velório de Teori, realizado em
Porto Alegre (RS), a presidente do STF daria o primeiro e talvez mais contundente
sinal de que, sim, ela mataria a crise que se avizinhava no peito. Em um dado
momento, o juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato na primeira
instância, cumprimentou a magistrada e comentou esperar que ela decidisse com
serenidade a escolha do novo relator do caso. Ladeada por colegas, a ministra
respondeu a Moro: “Do Supremo cuido eu”.
Como se nota, Cármen Lúcia é uma mulher de poucas palavras e
posições firmes. No início da semana, ela determinou aos juízes auxiliares do
gabinete de Teori que remarcassem as audiências preliminares com os delatores.
Pairavam dúvidas se Cármen aguardaria a indicação do novo relator, a quem, em
tese, caberia a tarefa. A ministra não se fez de rogada. Reuniu-se com o
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na segunda-feira 23 e deu o aval
a uma estratégia para permitir a aprovação dos acordos. No dia seguinte, Janot
apresentou formalmente ao Supremo um pedido para que a delação da Odebrecht
fosse tratada em caráter de urgência. Era o respaldo que ela precisava para
imprimir celeridade ao andamento do processo. Ato contínuo, os funcionários
telefonaram para os advogados da Odebrecht e marcaram dia, horário e local para
as audiências com cada um dos colaboradores – que aconteceram, em sua maioria,
nos Estados de residência deles e com o apoio da estrutura da Justiça Federal.
Previstos em lei, esses depoimentos prévios dos delatores são apenas para
confirmar que assinaram a colaboração espontaneamente e por iniciativa própria,
sem sofrer qualquer tipo de pressão. O trabalho ocorreu com velocidade incomum
e foi aberto o caminho para a homologação, que pode sair a qualquer momento.
“Sobre esse assunto não falo nem sob tortura”, esquivou-se Cármen na última
quinta-feira 26. Não poderia mesmo. A partir desta fase, Janot já terá
condições de solicitar as primeiras aberturas de inquérito contra políticos,
dando prosseguimento a um dos passos mais importantes da Lava Jato.
As articulações para a definição tanto do nome do novo
relator da Lava Jato no Supremo como do ministro substituto de Teori também
tiveram a participação direta da ministra. Se por medo ou respeito, ninguém
sabe. Mas, ao fim da semana, emissários do Planalto faziam circular a versão de
que nada seria feito sem o aval e a aquiescência dela. Inicialmente, havia a
possibilidade de que o ministro indicado para a vaga de Teori pelo presidente
Michel Temer (PMDB) assumisse a relatoria, conforme reza o regimento interno do
Supremo. Temer, no entanto, recebeu a visita da prudência, aquela que
diferencia os homens públicos incautos dos previdentes. O louvável gesto jogou
a responsabilidade nas mãos da presidente Cármen Lúcia e ela agiu como manda o
figurino de magistrada. Reuniu ministros, ouviu mais do que falou e terminou a
semana inclinada a uma decisão. Qual seja: a de indicar um colega do plenário
do STF para herdar a relatoria. Dentre os nomes incluídos nessa possibilidade
largam na frente os dos ministros Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e
Celso de Mello, nesta ordem.
MORO NEGA CONVERSA COM CÁRMEN LÚCIA
Em nota à revista ISTOÉ, o juiz Sergio Moro nega que tenha
conversado sobre relatoria da Lava Jato com a ministra Cármen Lúcia no velório
de Teori Zavascki. “Prezados Senhores, relativamente à matéria “Do Supremo
cuido eu” publicada na r. Revista ISTOÉ é 2459, informo que jamais ocorreu o
diálogo entre mim e a Min. Cármen Lúcia ali relatado. Fui ao velório do Min.
Teori Zavascki para honrar a sua memória e confortar os familiares e não tratei
com ninguém da Operação Lava Jato ou da sucessão do Min. Teori Zavascki. Em meu
breve contato com a Ministra Cármen Lúcia no velório, limitei-me a transmitir
meus pêsames. A fonte da reportagem, no que refere ao suposto diálogo, está
totalmente equivocada. Solicito a gentileza da retificação no site da r.
Revista e na próxima edição escrita.
Atenciosamente, Sergio Fernando Moro”
“CALA A BOCA JÁ MORREU”
O histórico de Cármen Lúcia é alvissareiro para a Lava Jato
e sua postura combativa contra a corrupção indica que ela não vai medir
esforços para fazer a operação continuar a todo vapor. E, sobretudo, sem
ingerência das sempre condenáveis conveniências políticas. Ela, por exemplo,
votou a favor da prisão de condenados em segunda instância e proferiu um duro
voto ao se posicionar favorável à prisão preventiva do então senador Delcídio
do Amaral (ex-PT-MS), em novembro de 2015. “Agora, parece se constatar que o escárnio
venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça”. Outro voto que ganhou
repercussão foi na discussão sobre biografias não autorizadas, que foram
liberadas por decisão unânime do Supremo. Cármen Lúcia se mostrou uma defensora
da liberdade de expressão e alertou: “Cala a boca já morreu, é a Constituição
do Brasil que garante”. Ela chegou a ser relatora dos inquéritos da Operação
Zelotes que subiram para o Supremo por envolverem parlamentares, mas que ainda
estavam em fase inicial. Como assumiu a presidência, as investigações ficaram a
cargo do seu antecessor, o ministro Ricardo Lewandowski.
Segunda mulher a assumir o comando do Supremo, aos 62 anos,
natural de Montes Claros (MG), Cármen Lúcia não se limita a uma atuação
burocrática nos autos processuais do seu gabinete e tem adquirido protagonismo
ao enfrentar questões cruciais para o País. “Justiça não é milagre”,
“Constituição não é utopia”, “cidadania não é aspiração”, costuma dizer. Em
meio à crise nos presídios, tem discutido soluções com o presidente Temer e os
dos tribunais de Justiça estaduais. Desde que assumiu o cargo, em setembro, ela
fez visitas a presídios e articula agora a realização de um censo para a
população carcerária, com o objetivo de traçar um diagnóstico para tentar
propor soluções à situação explosiva das carceragens. A presidente do STF
também tem atuado no sentido de buscar caminhos para solucionar a profunda
crise econômica que acomete os estados brasileiros. A ministra, por exemplo,
concedeu uma liminar desbloqueando R$ 193 milhões das contas do Rio. Graças à
decisão, o governo fluminense conseguiu se programar para pagar os salários
atrasados dos servidores. Seus recentes movimentos têm atiçado especulações das
mais variadas, como as que a colocam como possível nome para concorrer à
Presidência da República em 2018. Claro, sem nenhuma sinalização concreta por
parte dela. Não é nem nunca foi de seu feitio. Como poucos, a ministra consegue
manter a distância regulamentar que separa a magistrada da (eventualmente)
política, condição que muitas vezes precisa assumir enquanto presidente da
Corte Suprema do País.
A ministra monitora com atenção, por exemplo, a investigação
sobre as causas do acidente aéreo que matou Teori na quinta-feira 19, tocadas
pela Aeronáutica, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. As evidências
colhidas até agora pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes
Aeronáuticos (Cenipa) reforçam a hipótese de que foi mesmo um acidente,
provocado pelo mau tempo que assolava a região de Paraty (RJ) no momento do
voo. O Cenipa conseguiu extrair os dados do gravador de voz da cabine do avião
e divulgou que, em uma análise preliminar, “os dados extraídos não apontam
qualquer anormalidade nos sistemas da aeronave”. O equipamento gravou os
últimos 30 minutos de áudio do voo, o que inclui não só as informações de voz,
mas também sons que podem indicar as manobras da aeronave e ajudar a explicar
os motivos da queda. Os técnicos agora se dedicam à análise desse material,
capaz de fornecer uma resposta definitiva à tragédia que chocou o País e
ameaçou paralisar a Lava Jato. Ameaçou. Pois a atmosfera do imponderável que se
abateu sobre o futuro da operação, para o instantâneo deleite de políticos
encalacrados, não contava que no meio do caminho tinha Cármen. No meio do
caminho tinha Cármen Lúcia.
ASSIM É CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, 62 ANOS
> Discreta, de poucas palavras, porém firme em suas
decisões e às vezes dura nos autos, a presidente do STF preza pela
simplicidade. Prefere dirigir o próprio carro e não gosta de ter seguranças à
sua cola
> Gosta de bater longos papos com amigos, mas sente-se um
pouco solitária em Brasília. Ela é mineira, religiosa, mas vota por direitos
liberais, como aborto em caso de feto anencéfalo, união homoafetiva e a Marcha
da Maconha
> Indicada ao STF em 2006 pelo então presidente Lula,
assumiu a presidência do Supremo em setembro de 2016. Ganhou notoriedade com
atuação firme em casos de corrupção e frases de efeito nos julgamentos
>Nos bastidores, é articulada na relação com parte dos ministros
do STF e mantém bom trânsito com o Palácio do Planalto. Proferiu voto pela
prisão do então senador Delcídio do Amaral no qual afirmou que “o escárnio
venceu o cinismo”