Artigo de Fernando Gabeira
Escrevo no avião vindo de Curitiba. Não sei se ganhei ou
perdi meu dia, vagando pela cidade numa quarta-feira cinzenta e com uma garoa
esporádica. Para mim, Curitiba ia viver uma batalha de Itararé, aquela que não
aconteceu, nos anos 30, apesar de alguns choques e escaramuças. É uma cidade
fascinante, sobretudo agora que ganhei um belo livro de Rafael Greca, com quem
convivi em Brasília. Poucos prefeitos conhecem tão bem a história de sua
cidade.
Andei de um lado para outro e trago na lembrança o guardador
de automóveis do Parque Birigui. Disseram que iam soltar mil balões verde e
amarelos às cinco horas da tarde. Fui ver e não havia nada, por causa do mau
tempo. O guardador me consolou dizendo: veja os quero-quero comendo na minha
mão. E deu comida aos pássaros.
O essencial do dia, o depoimento de Lula, não me trouxe
surpresas. Ainda no fim da tarde, gravei algo dizendo que ele ainda estava
sendo interrogado, Moro deveria estar fazendo perguntas e Lula fazendo
campanha. Ao sair para o discurso noturno na Praça Santos Andrade, Lula afirmou
que seria candidato e que a votação popular iria absolvê-lo.
É o núcleo da história. A suposição de que a popularidade
absolve, não importa o que diga a Justiça do país: o número de eleitores define
o grau da inocência de um político. Em casos clássicos, como o de Paulo Maluf,
as sucessivas eleições não o absolveram, mas trouxeram o conforto da lentidão
dos processos no Supremo, uma esperança de impunidade.
Lula não conta com isso. Num dos seus discursos, já afirmou
que vai enquadrar a imprensa e insinuou que prenderia os procuradores que hoje
o denunciam. Entra aí um pouco da minha análise que previa calma em Curitiba,
apesar de toda a sensação de confronto que alguns setores da imprensa
esperavam.
Tenho pensado em aviões e estradas, um pouco aos solavancos.
Nas longas viagens por terra, cochilamos e a fronteira entre a vigília e o sono
constantemente se dissolve. Uma campanha política cujo objetivo é livrar o
candidato da polícia pode ter êxito no Brasil de hoje?
A Justiça será tão lenta a ponto de não julgar o caso de
Lula, em segunda instância, antes das eleições de 2018? São fatores que não
pesam agora porque 2018 está longe. O país vive uma crise de liderança, e
quando olhamos para o universo político não vemos nele capacidade de encontrar
um caminho.
Mas são problemas que podem ser resolvidos com o tempo. A
sociedade mudou, está mais informada, dispõe de instrumentos nunca vistos para
compartilhar suas ideias. Talvez essa mudança na sociedade facilite a aparição
de novos nomes, gente que ouça, de verdade, o que pedem as ruas e, em casos
raros, seja também capaz de, por razões estratégicas, desafiar o senso comum.
No momento, tudo parece difícil e complicado. As últimas
decisões no Supremo indicam resistência ao curso da Lava-Jato e despertam a
ilusão de que nada vai mudar, o velho esquema de corrupção vencerá de novo.
Digo ilusão, porque é impossível dirigir uma sociedade como a brasileira a
partir dos velhos métodos. O próprio Temer, que precisa realizar reformas, tem
percebido como é difícil conduzi-las diante da desconfiança generalizada.
Fala-se tanto em ódio, ressentimento, mas a quarta-feira em
Curitiba foi calma. Houve apenas um incidente na madrugada, um ataque de rojões
a um acampamento dos simpatizantes do PT.
O forte esquema policial, a insistente garoa e um número de
simpatizantes abaixo do esperado contribuíram para a calma. Mas a cidade, com
seu pulsar cotidiano, voltada para o trabalho num dia útil, acabou absorvendo
tudo e transformando o anunciado espetáculo num episódio menor. Na verdade, era
apenas um interrogatório. Outros virão e, talvez, a vantagem do episódio da
semana tenha sido a de desdramatizar, tornar um encontro como o de quarta-feira
mais uma etapa do processo penal.
Quando afirmo a viabilidade das mudanças, muitos contestam
com as pesquisas. Segundo elas, nada de mais profundo aconteceu. No entanto, as
pesquisas têm falhado às vésperas de campanha. Com quase dois anos de
antecedência elas tratam de algo mais imprevisível ainda.
É uma estratégia desesperada buscar a eleição para fugir da
Justiça, ou para anular suas decisões. O Brasil precisa de perspectivas. Boa
parte das pessoas hoje acredita que a capacidade de manipulação política é
infinita e que o povo brasileiro será, nos próximos anos, prisoneiro da demagogia.
São apostas mais amplas que estão em jogo. Mudar ou não, vencer ou não os
populismos de direita e esquerda. Cada um lê o futuro de acordo com suas
possibilidades.
O que vi na calma de Curitiba, na sua imersão na vida
cotidiana enquanto lhe ofereciam o espetáculo do ano, me deu a esperança de
que, no momento certo, o país responderá da mesma maneira. Enganar as pessoas
será tão difícil como enganar a Justiça.
Como escreveu Samuel Beckett, não se passa um dia sem que
algo seja acrescido ao nosso saber, desde que suportemos as dores. Eu diria,
desde que consigamos ver além da cortina de fumaça.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 14/05/2017
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