segunda-feira, 15 de maio de 2017

MOTIVAÇÃO POLÍTICA

RIO — O boicote de motivação política de um grupo de cineastas ao Cine PE, anunciado em documento divulgado à imprensa na tarde de quarta-feira, já teve sua primeira consequência imediata: a realização da 21ª edição do evento, que aconteceria entre os dias 23 e 29 deste mês no Recife, foi adiada por tempo indeterminado. "Essa situação implica na substituição dos títulos por outros que também fizeram suas inscrições de modo espontâneo", justificou Sandra Bertini, diretora da mostra pernambucana, em comunicado oficial. "Essa adequação da situação à nova grade de programação, por razões técnicas e burocráticas, demanda um tempo superior ao prazo do período de realização agendado."
Os sete signatários do protesto - seis deles curta-metragistas - pediram a retirada de seus filmes da programação oficial alegando que a seleção deste ano "favorece um discurso partidário alinhado à direita conservadora e grupos que compactuam e financiaram o golpe ao Estado Democrático de Direito ocorrido no Brasil em 2016". Eles se referem ao documentário "O jardim das aflições", de Josias Teófilo, sobre o filósofo conservador Olavo de Carvalho, que integra a competição, e a ficção "Real - O plano por trás da História", de Rodrigo Bittencourt, que dramatiza os bastidores da criação do Plano Real, em 1994.
— Chegamos a esse consenso quando a programação de filmes foi revelada, com pouca antecedência, até para evitar qualquer articulação ou protestos. Sempre houve protestos no Cine PE, pela qualidade da programação, mas isso nunca resolveu muito. Desta vez, em vez de protestar no palco, achamos melhor retirar os filmes — resume o pernambucano Petrônio Lorena, autor do único longa a aderir ao boicote, o documentário "O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras". — O protesto foi conversado intensamente em um grupo de Facebook. Até o lançamento da carta, uns dois outros diretores de longas contatados por nós não haviam respondido.
Lorena confirma que sentiu desconforto de participar de uma competição pelo troféu Calunga com filmes produzidos por "grupos que querem criar uma ditadura no Brasil, e vejo esses grupos representados em 'O jardim das aflições'".
- Não estamos apontando que filme o festival deveria selecionar ou não, o que não queremos é entrar em um jogo disfarçado, que nos leve a ser confundidos com uma posição política de retrocesso no Brasil. Assim como o Cine PE deve se posicionar como quiser em sua seleção, os realizadores devem se posicionar contra um pensamento historicamente vigente de um festival, quando for o caso - argumenta Lorena.
Josias Teófilo enxerga um certa "miopia ideológica" na postura dos realizadores revoltosos:
— A resposta para a acusação desses cineastas está no próprio contexto da situação. Como eles podem acusar um filme de favorecer um discurso partidário sendo que nunca o viram? - pergunta. - Além do mais, não faz sentido acusar o festival de favorecer algum discurso partidário, já que os filmes desses mesmos cineastas, que têm um discurso aparentemente contrário ao que eles imaginam que "O jardim das aflições" tenha, também foram selecionados. Ou seja, é uma ignorância e uma intolerância atroz. De fato, "O jardim das aflições" não é um filme político.
O Cine PE foi criado pelo empresário Alfredo Bertini, que se retirou da mostra para assumir o cargo de Secretário do Audiovisual do governo de Michel Temer, em maio passado, e onde permaneceu até dezembro. Nesse período, envolveu-se em uma série de polêmicas, como a formação da comissão do representante brasileiro no Oscar, que acabou indicando "Pequeno segredo", de David Schürmann, e não "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, o favorito da classe cinematográfica desde sua estreia, no Festival de Cannes do ano passado. Como está oficialmente fora da direção da mostra pernambucana, Bertini não quis comentar o caso.
— A própria imprensa já noticiou polêmicas envolvendo relações partidárias, tanto nos bastidores quanto no conteúdo de alguns dos filmes em questão — defende o cearense Arthur Leite, diretor do curta "Abissal", que coassina o manifesto junto aos curta-metragistas Cíntia Domit Bittar ("A menina só"), Leo Tabosa ("Baunilha"), Sávio Leite ("Vênus — Filó, a fadinha lésbica"), Eva Randolph ("Não me prometa nada"), e Gabi Saegesser ("Iluminadas"). — Neste momento histórico do país, consideramos imprudente difundir obras de certa forma alinhadas ao pensamento conservador de extrema-direita. Sabe-se o quanto o audiovisual já foi, e ainda é, utilizado como propaganda para manobrar as massas, com consequências catastróficas irreparáveis.
Em seu comunicado, Sandra Bertini, mulher de Alfredo, nega qualquer tentativa de "politização" da programação do Cine PE: "Com uma simples pesquisa sobre edições passadas, facilmente será revelado que o festival sempre se pautou em mostrar tendências, linguagens, estéticas e ideologias da forma mais coerente possível, por entender e evidenciar que o conceito da diversidade deve ser de todos e para todos". Visão esta contestada pelos signatários da carta:
— Já houve protestos contra edições do Cine PE que privilegiavam estrelas globais, e uma homenagem a Pelé, por exemplo — lembra Lorena. — A mostra pernambucana sempre foi uma vitrine de famosos e de pouca abertura à inventividade e à criatividade de nosso cinema.
A decisão pelo adiamento também comprometeu a exibição de “Real – O plano por trás da História” como atração de abertura do festival pernambucano. Como sua estreia comercial está agendada para o próximo dia 25, o filme não poderá mais fazer parte da programação do Cine PE. Ricardo Fadel Rihan, produtor do drama dirigido por Rodrigo Bittencourt, lamenta que a polarização política tenha prejudicado tenha contaminado o circuito de festivais brasileiros de cinema.
– Em primeiro lugar, nosso filme não se identifica com rótulos, como o de "direitista". Estamos apenas contando uma história importante de economistas que melhoraram a vida de milhões de pessoas, reflexo que se vê até hoje – entende Rihan. – Quem sai enfraquecido não é o festival, mas a democracia brasileira. Não se pode concebê-la em sua plenitude sem uma produção cultural que congregue vários pontos de vista e que abarque um sem-número de temas. Sou um democrata e aceitarei, sempre, participar de festivais que apresentem produções cujo conteúdo seja divergente das ideias em que acredito. Democracia com censura a um pensamento que seja diferente do nosso não merece esse nome. É fascismo, pura e simplesmente.
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