Artigo de Fernando
Haddad, Piauí
VIVI NA PELE O QUE APRENDI NOS LIVROS
Eu já havia trabalhado com Dilma Rousseff por um ano, ao
longo da transição do Ministério da Educação para Aloizio Mercadante. Conhecia
seu estilo tanto como ministra-chefe da Casa Civil quanto como presidenta da
República. E, ao contrário do que se diz dela, que é “democrática” no
tratamento duro que dedica aos subordinados, eu diria até que sempre me tratou
com consideração. Em dezembro de 2012, ainda antes de minha posse no Edifício
Matarazzo, fui a Brasília para aquela que seria a nossa primeira audiência de
trabalho após minha eleição como prefeito de São Paulo.
Em um contato rápido que havíamos tido na manhã seguinte ao
segundo turno, eu já havia insinuado à presidenta que entendia que o governo
federal deveria tratar São Paulo de maneira singular, em função de sua
importância. Ela então me olhou com um sorriso irônico, como quem diz “Não me
venha querer levar vantagem”. Pensando em retrospecto, creio que a relação de
Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente.
Dilma me recebeu em seu gabinete no 3º andar do Palácio do
Planalto, ao lado dos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior,
do Planejamento, Orçamento e Gestão. Comigo estava o secretário de Finanças
Marcos Cruz, que o empresário Jorge Gerdau havia me apresentado e que deixara a
consultoria McKinsey para organizar as contas da prefeitura.
As reuniões com Dilma têm sempre uma carga elétrica no ar. O
ambiente nunca é relaxado, e aquele dia foi se tornando mais tenso à medida que
o debate transcorria. Minha expectativa era realizar um primeiro encontro com
ministérios estratégicos para definir o que Brasília poderia fazer para mudar a
cara de São Paulo. Mas o que ouvi foi a demanda exatamente oposta: o que São
Paulo faria para ajudar o governo federal? Sem muitos preâmbulos, a audiência
passou direto a uma questão bastante específica: o reajuste da tarifa de ônibus
no município. Percebi na hora que o clima de celebração pela minha vitória
tinha passado e que aquilo era um balde de água fria.
A questão da tarifa havia se tornado um problema para a
equipe econômica, que lutava contra o repique da inflação. Eu sabia que me
seria demandado algo muito difícil: a manutenção do preço depois de um
congelamento que já durava dois anos, já que o último reajuste da tarifa em São
Paulo ocorrera em janeiro de 2011. Assim, cheguei à reunião com uma proposta
alternativa.
Ainda durante a campanha, eu havia encomendado a alguns
pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, encabeçados pelo professor Samuel
Pessôa, um estudo sobre a eventual municipalização da Cide como fonte de
financiamento do transporte público. A Cide, Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico, é um tributo de arrecadação vinculada, de competência da
União, que incide sobre a importação e a comercialização de gasolina, diesel e
derivados. A ideia seria a municipalização desses recursos a fim de que o
transporte individual motorizado em nossas grandes cidades respondesse pelo
subsídio ao transporte público.
Argumentei que o represamento do preço da tarifa não seria
um bom expediente para combater a inflação. Mesmo que o Rio de Janeiro também o
adotasse, como era o plano, estávamos falando de um único “preço”, em apenas
duas cidades. Imaginar que tal congelamento pudesse colaborar
significativamente para combater a inflação em âmbito nacional não me parecia
razoável. Fiz, por fim, um apelo: “O tamanho do esforço que terei de fazer no
plano local, com um impacto de 600 a 700 milhões de reais por ano, é
desproporcional ao benefício que vocês terão. É um sacrifício enorme para um
primeiro ano de mandato e não vai ter o efeito que vocês imaginam.” O governo,
porém, mantinha-se inflexível.
Apresentamos, então, os números do estudo da FGV, provando
inclusive que o resultado que se teria optando por aumentar a gasolina em vez
da tarifa dos transportes coletivos seria deflacionário. O que oferecíamos ao
governo federal, portanto, era uma alternativa que ia ao encontro daquilo que
eles pretendiam, com um ganho de política pública indiscutível. Criava-se uma
espécie de “pedágio urbano”, desestimulando o uso do carro e estimulando o do
transporte coletivo, mais barato.
A equipe econômica levantou dúvidas sobre o caráter
deflacionário da medida. Com o estudo à mão, eu dizia que, no frigir dos ovos,
seria melhor optar pelo financiamento via Cide, pois o aumento da gasolina
impacta menos na cesta de produtos que compõe o índice de inflação do que o
aumento da tarifa. Além de ser uma solução estrutural e definitiva, em que a
tarifa deixa de ser um problema que se repete a cada dois ou três anos em
nossas cidades. A proposta de municipalização da Cide foi liminarmente
descartada e o debate morreu, com a assertiva final de que não era “hora de
mexer com o preço da gasolina”.
Estranhei a insensibilidade diante de uma oportunidade
única: havíamos ganhado a cidade de São Paulo, derrotando no segundo turno o
principal presidenciável tucano, José Serra. Na época em que fui ministro da
Educação, eu sempre disse ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, desde
1932, o Brasil nunca havia se reconciliado de fato com São Paulo, nem São Paulo
com o país. E quando Lula me encomendou o maior plano de expansão da rede
federal de educação superior e profissional, com universidades e escolas
técnicas que interiorizamos pelo país, fiz questão de lembrá-lo da pouca
presença federal no principal estado da federação. Ele então questionou: “Mas
São Paulo precisa? Já tem a USP, a Unicamp, a Unesp, a Fundação Paula Souza…”
Insisti: “Mas não tem rede federal.” Assim, criamos a Universidade Federal do
ABC, a Unifesp foi expandida pela região metropolitana e a UFSCar, pelo interior
de São Paulo. Além do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, que
ocupou o lugar do Cefet [Centro Federal de Educação Tecnológica] de São Paulo,
que até então tinha apenas duas escolas e hoje tem mais de trinta.
Quando ganhei a eleição para a Prefeitura de São Paulo,
pensei: “Quem sabe podemos começar nosso acerto de contas com 1932?”
Meu primeiro encontro de trabalho com Dilma mostrava que eu
havia me equivocado. Ela encerrou a conversa, me acompanhou até a porta e disse
uma frase de que não me esqueço: “Espero que o nosso próximo encontro seja mais
produtivo.”
Sou filho do casamento de um comerciante libanês com uma
normalista. Aprendi em casa a negociar e conversar, e tenho um temperamento em
geral tranquilo, mesmo nas situações mais adversas. As pessoas confundem isso
com frieza, mas não é. Choro até com propaganda de tevê. Mas costumo ser focado
e dificilmente perco a cabeça. Meu corpo, no entanto, às vezes reage. É uma
coisa neuromuscular, incontrolável.
Na saída daquela audiência, quando entrei no carro com o
secretário Marcos Cruz, essa reação corporal foi muito forte. Ele estranhou,
achou que o contratempo na reunião não era para tanto. O que eu sentia ali era
algo que já havia experimentado algumas outras vezes na vida: mais do que um
mal-estar ou uma simples angústia, era uma espécie de intuição, a sensação
nítida de que algo muito sério estava se passando, de que havia um risco real e
iminente.
Alguma coisa estava muito errada: não se pensa em controlar
a inflação de um país continental pelo represamento de uma tarifa municipal sem
atravessar estágios intermediários e sucessivos de uma compreensão equivocada.
Não se chega a um erro deste tamanho sem ter feito um percurso todo ele
equivocado. Não se produz estabilidade macroeconômica por intervencionismo
microeconômico. Foi essa sensação que me tirou do sério naquela manhã em
Brasília.
Sensação semelhante, de percepção dos próprios limites
diante de uma situação que indica maus presságios, eu tive em 2011, no
Ministério da Educação, durante a crise do chamado “kit gay”. A história toda,
a começar pela expressão preconceituosa, é um exemplo de como uma informação
falsa pode ser criada (e deliberadamente mantida) com intenções políticas
nefastas – e consequências sociais que reverberam até hoje.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara, acertadamente,
aprovou uma emenda de bancada ao orçamento, designando recursos para um
programa de combate à homofobia nas escolas. O Ministério Público questionou o
MEC sobre a liberação da emenda. Só então o MEC entrou na história, solicitando
a produção do material a uma ONG especializada. No exato momento em que o
material foi entregue para avaliação, eclodiu a crise do “kit gay”.
Desde o início, quem lia as notícias imaginava que aquela
era uma iniciativa do Executivo, quando na verdade a demanda havia sido do MP e
do Legislativo. Também se sugeriu que o material estivesse pronto e já
distribuído, quando sequer havia sido examinado. Expliquei tudo à imprensa e às
bancadas evangélica e católica do Congresso, e o mal-entendido parecia
desfeito. Despreocupado, viajei no dia 25 de maio a Fortaleza para receber o
título de Cidadão Cearense. Então, durante a minha ausência de Brasília, um
material de outro ministério, o da Saúde, foi apresentado como sendo o tal “kit
gay” do MEC para as escolas. Esse outro material se destinava à prevenção de
DST/Aids e tinha como público-alvo caminhoneiros e profissionais do sexo nas estradas
de rodagem – com uma linguagem, portanto, direta e escancarada.
O deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) exibiu em plenário a
campanha do Ministério da Saúde dizendo que eu havia mentido no dia anterior e
que as escolas de Campos dos Goytacazes, onde a mulher dele, Rosinha Garotinho,
era prefeita, já dispunham de exemplares para distribuir aos estudantes. Aquilo
virou um caldeirão. Gilberto Carvalho, então chefe de gabinete da Presidência,
me telefonou alarmado. Eu disse: “Gilberto, pare dois segundos para pensar e se
acalme. Isso não existe. O material para as escolas ainda está na minha mesa,
não há chance de ele ter sido distribuído.”
Era, evidentemente, uma armação, explicada inúmeras vezes
para a imprensa, mas a confusão já estava feita. E a polêmica do “kit gay” –
que foi sem nunca ter sido – estendeu-se por meses. Em junho, às vésperas da
Marcha pela Família, convocada por grupos religiosos em Brasília, recebi em meu
gabinete o senador Magno Malta (PR-ES) para conversar sobre o assunto. Em
determinado momento, ele elevou o tom e começou a me ameaçar. Disse que a
Marcha ia parar na frente do MEC, que eles iriam me constranger. Mantive o tom
calmo que sempre adoto: “Mas, senador, o senhor conhece a história, sabe que
não é verdade.” Não adiantou. Percebi, então, que aquilo não era uma questão de
argumentos, mas um jogo de forças. E eu disse, também com o tom de voz mais
alto: “Então venham. Hoje à noite eu vou rezar um Pai-Nosso e amanhã nós vamos
ver qual Deus vai prevalecer, o da mentira ou o da verdade.”
O senador parou, abriu um sorriso e pegou na minha mão:
“Você é um homem de Deus. Se acredita n’Ele, eu acredito em você.”
Voltei a esse episódio já relativamente antigo porque ele me
parece exprimir muito bem um fenômeno que o ultrapassa. Em um artigo recente
para a revista nova-iorquina Dissent, a filósofa norte-americana Nancy Fraser
discutiu a eleição de Donald Trump e o que chamou de “derrota do neoliberalismo
progressista”. No texto, Fraser mostra como se constituiu nos Estados Unidos a
disputa entre duas modalidades de direita: o neoliberalismo progressista dos
governos Clinton e Obama e o protofascismo de Trump, com seu discurso
protecionista na economia e seu conservadorismo regressivo em relação aos
costumes e direitos civis. Pode-se discutir se é correto enquadrar Obama no
campo neoliberal, mas o que importa preservar do argumento da autora, nesse
embate, é que a grande vantagem do neoliberalismo americano, que era o diálogo
com as minorias – LGBT, mulheres, negros e imigrantes –, se perdeu.
O que vimos no Brasil dos últimos anos foi algo um pouco
diferente: essas duas modalidades de direita em boa medida se fundiram, de modo
que mesmo nossa direita neoliberal passou a cultivar a intolerância. A vitória
socioeconômica do projeto do PT até 2013 foi tão acachapante – crescimento com
distribuição de renda e ampliação de serviços públicos – que sobrou muito pouco
para a versão civilizada da direita tucana. Ela não podia mais se dar ao luxo
de ser neo-liberal e progressista. Para enfrentar a nova realidade, os tucanos
passaram a incorporar a seu discurso elementos do pior conservadorismo.
Temas regressivos foram insuflados no debate nacional. A
campanha de José Serra à Presidência em 2010 foi um momento importante dessa
inflexão tucana. Embora talvez fosse o desejo íntimo de alguém como o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB não conseguiu se transformar na
versão brasileira da agenda democrata norte-americana. Pelo contrário, ao
radicalizar o discurso conservador, o partido revolveu o campo político de onde
floresceu a extrema direita no Brasil. Quem abriu a caixa de Pandora de onde
saiu o presidenciável Jair Bolsonaro foi o tucanato. Embora essa agenda pudesse
vir à tona em algum momento, foram os tucanos que a legitimaram. Um equívoco
histórico. Quando, pela mudança de conjuntura, se tenta abdicar desse ideário,
isso já não é mais possível, pois logo aparece alguém para ocupar o espaço
criado. Foi exatamente o que aconteceu: a extrema direita desgarrou e agora
quer tudo – a agenda tucana e muito mais.
Um movimento semelhante ocorreu com a imprensa.
Curiosamente, o veículo que mais respaldou essa pauta foi aquele de quem menos
se esperava uma aproximação com o obscurantismo: o jornal Folha de S.Paulo. Sob
o manto moderno do pluralismo, uma pretensa marca do jornal, a Folha legitimou,
tornou palatável e deu ares de seriedade a uma agenda para lá de regressiva.
Adotando inclusive a expressão “kit gay”, criada pela bancada evangélica do
Congresso, o jornal deu dignidade a uma abordagem que contribuiu para que o
debate sobre direitos civis atrasasse cinquenta anos no país.
Embora tenha desandado na cobertura noticiosa, a Folha
continua utilizando o espaço dos editoriais para se apresentar como uma espécie
de vanguarda da modernidade. O expediente tornou-se tão incongruente com as
opções do noticiário que em determinado momento a Folha precisou alardear em
peças publicitárias, no próprio jornal e na tevê, aquilo que seria seu
posicionamento oficial sobre temas mais delicados. Vejo isso como um caso
singular de cinismo que maquiava o embarque do jornal numa espécie de
“neo-liberalismo regressivo”.
Um dos problemas do jornalismo no Brasil é a falta de
regulação do mercado. Os meios de comunicação por aqui funcionam, do ponto de
vista econômico, como oligopólio; e funcionam como monopólio do ponto de vista
político. Chegaram a ponto de tentar tirar do ar, por via judicial, os portais
de informação estrangeiros em língua portuguesa – como BBC Brasil, El País
Brasil ou The Intercept Brasil –, invocando o artigo 222 da Constituição, que
reserva aos brasileiros natos a propriedade de empresas jornalísticas.
Os grandes grupos de comunicação são geridos por famílias
que pensam da mesma forma e têm a mesma agenda para o país, com variações
mínimas. Em momentos cruciais de nossa história, como em 1964 e 2016, atuam em
bloco.
Talvez a prova mais consistente de que esse oligopólio
econômico funciona como monopólio político-ideológico seja o fato de que, à
propriedade cruzada dos meios de comunicação, corresponde uma espécie de
emprego cruzado no mundo do trabalho. Ou seja, os principais jornalistas do
país, sobretudo aqueles que cumprem o papel de alter ego dos empregadores,
podem estar – e rigorosamente estão – em qualquer lugar a qualquer tempo. Não
se pode escapar da sua voz, imagem e comentários onipresentes, baseados ou não
nos saberes dos “especialistas” de sempre, a não ser à custa de desesperado
alheamento. Eles não só estão na emissora de tevê, na rádio e no jornal da
mesma organização, como podem assinar uma coluna de jornal de um grupo de
comunicação e, simultaneamente, comentar notícias na rádio ou tevê de outro. Em
outras palavras, ocupam posições que só são plenamente intercambiáveis pelo
caráter próprio do modelo. Algo que seria impensável em um país liberal como os
Estados Unidos ou a Inglaterra, por exemplo. É bastante surreal que críticas ao
modelo brasileiro de comunicação sejam apresentadas como um atentado à
liberdade de imprensa, quando na verdade o modelo brasileiro é o que limita a
atividade jornalística.
Claro que há limites para o poder desse monopólio
político-ideológico. Num ambiente de relativa liberdade, os indivíduos trocam
impressões, questionam, firmam contrapontos. Até as Organizações Globo, com
todo o seu poderio, têm dificuldades em derrotar uma boa ideia. O Programa
Bolsa Família, por exemplo, existe, apesar da Globo. Tentou-se por todos os
caminhos deslegitimá-lo, desconstruí-lo, mas essa iniciativa de caráter
eminentemente liberal é hoje recomendada a outros países do mundo pelo Banco
Mundial. A promoção da igualdade racial é outro exemplo de ação que resistiu
bravamente à tese “global”, bastante extravagante, da inexistência de racismo
entre nós – tese que contraria absolutamente todas as evidências empíricas, em
especial no que se refere à situação da mulher negra no país.
Por mais severo que fosse meu diagnóstico sobre a mídia brasileira,
sempre procurei respeitar os profissionais da imprensa. O jornalismo, com todas
as suas limitações, se bem exercido, é bastante útil à sociedade. Numa
democracia, até uma imprensa ruim pode ajudar. O jornalismo crítico, mesmo
quando desprovido de boas intenções, pode fazer bem ao poder público,
fiscalizando a atividade política e trazendo pontos de vista novos que o
administrador nem sempre observa, de modo a permitir aperfeiçoamentos e
correção de rota.
Como prefeito, eu não nutria grandes expectativas sobre o
tratamento que receberia da imprensa. Sabia que seria difícil. Vencer o
would-be president José Serra na capital do assim chamado “Tucanistão” não
ficaria impune. Mas confesso que, mesmo consciente das circunstâncias adversas
que enfrentaríamos, os acontecimentos me surpreenderam.
Em dezesseis anos de vida pública, sempre mantive com as
principais famílias proprietárias dos meios de comunicação uma relação cordial
e respeitosa, em que pesem nossas diferentes visões de mundo. Não dispensava
interlocução com os Marinho, os Frias e os Civita.
A abordagem destes três grupos de comunicação – Globo, Folha
e Abril – em relação à minha administração oscilou da indiferença à tentativa
de desconstrução das políticas públicas em curso. Era o melhor que se podia
esperar: as críticas não eram pessoais; eram, em geral, políticas. À exceção do
Bom Dia SP, da Globo, e sua destoante cobertura em comparação ao Bom Dia de
qualquer outra capital do país, no que diz respeito a esses três grupos de
comunicação as coisas andavam dentro do previsto, com uma ou outra exceção.
Houve casos insólitos, no entanto. A CBN certa vez publicou
em seu portal reportagem cuja manchete anunciava: “Irmão de secretário de
Haddad é denunciado por envolvimento na máfia do ISS.” Informada de que o
denunciado era na verdade irmão de Rodrigo Garcia, secretário de Geraldo
Alckmin, a emissora retificou a reportagem por meio de um duplo carpado
hermenêutico para não mencionar o nome do governador.
A revista Veja São Paulo, por sua vez, alardeou, em matéria
de 6 de fevereiro de 2015, que as ciclovias da prefeitura eram as mais caras na
comparação com outras nove cidades estrangeiras. Misturaram alhos com bugalhos,
desconsiderando projetos especiais que implicavam enterramento de fiação, readequação
urbanística de canteiros etc. Mais de um ano de trabalho para desmentir o fato.
Em agosto de 2016, o Tribunal de Contas do Estado divulgou
estudo denunciando que uma ciclovia provisória do Metrô de São Paulo havia
custado “seis vezes mais que as ciclovias da prefeitura”, teoricamente uma das
mais caras do mundo. A informação foi publicada na Exame. A gravidade das
denúncias era inversamente proporcional à tiragem das revistas em que foram
veiculadas.
Eu poderia citar dezenas de casos semelhantes. Mas problemas
desse tipo não me incomodavam. O que de fato me deixava contrariado era a
matéria jornalística que, para além de afetar a minha imagem ou a imagem do
governo, afetava negativamente a vida dos beneficiários de políticas públicas.
Mais ainda quando isso fazia crescer o preconceito e a intolerância em relação
aos mais vulneráveis.
Não exagero em afirmar que o fim do programa De Braços
Abertos é, em grande parte, resultado do tipo de cobertura da Folha. Até então,
nenhum prefeito havia ousado atuar na Cracolândia, ao longo de vinte anos. O
governo do estado, por sua vez, pouco êxito obteve na solução do problema ao
longo dos mesmos vinte anos. Em apenas um ano o De Braços Abertos foi criado e
o fluxo de moradores em situação de rua na Luz se reduziu em dois terços, de 1
500 para cerca de 500 pessoas. A situação dos acolhidos pelo programa foi
atestada por uma pesquisa independente da Open Society Foundations, que
reconheceu os méritos da política de redução de danos.
A publicação dos dados dessa avaliação externa só ocorreu na
Folha após semanas de negociação – e foi seguida por reportagens que, na
prática, isentavam completamente o governo do estado de responsabilidade pela
ausência da polícia e consequente intensificação do tráfico na região. Do
Recomeço, programa de internação do governo do estado, não eram exigidos
resultados e muito menos avaliação externa. A cada eleição presidencial, o
governo federal era cobrado pela vigilância de 17 mil quilômetros de fronteira
seca, sem que o governo de São Paulo conseguisse vigiar um quarteirão da
principal cidade do país.
Outros artifícios frequentes dos meios de comunicação são a
omissão da autoria, o desvirtuamento da motivação ou a desigualdade de
tratamento das políticas públicas. Existe uma diferença tênue entre capricho
pessoal e construção de reputação. O primeiro caso atende pelo nome de vaidade;
o segundo é uma exigência da democracia. O tratamento dado à informação pode
impedir a construção da reputação de uns, enquanto alimenta a vaidade de outros.
A inauguração do Hospital Vila Santa Catarina, na minha gestão, teve menos
destaque que a recente reforma dos banheiros do parque Ibirapuera pela gestão
de Doria.
O Fantástico chegou a fazer uma série de matérias sobre um
programa municipal chamado FabLab – laboratórios de impressoras 3D que se
espalham pelo mundo fomentando o empreendedorismo. Não me lembro de que tenham
feito menção à Prefeitura de São Paulo. O programa Transcidadania, de
assistência socioeducacional a travestis, foi, segundo a revista Veja, motivado
pelos menos nobres sentimentos decorrentes da disputa entre mim e a senadora
Marta Suplicy, quando a verdadeira motivação era a vontade de retomar a agenda
contra a homofobia.
O que se percebe muito rapidamente é que a esfera pública
está contida na mídia em vez de envolvê-la. O Brasil tem pouco mais de
cinquenta cidades com mais de 400 mil habitantes, número que corresponde, na
média, ao de moradores de cada uma das 32 subprefeituras da cidade. Numa escala
tão grande como essa, um político não consegue ser avaliado pela forma como se
apresenta, mas pela forma como é apresentado. Isso confere à mídia um poder
enorme: ela tanto pode impedir que boas iniciativas se colem à imagem de um
gestor, condenando-o à invisibilidade, como obrigá-lo a compartilhar
responsabilidades que recaem sobre outra esfera de governo, superexpondo-o
indevidamente.
Não bastassem os problemas estruturais de relacionamento da
grande imprensa com qualquer governante de centro-esquerda, eu ainda tive
problemas conjunturais com a segunda divisão dos meios de comunicação. Na minha
percepção, foram muito mais danosos à imagem do governo do que os episódios até
aqui narrados, porque impactaram diretamente a periferia da cidade. Nesses
casos, a política transbordou para o pessoal.
Refiro-me, para ficar nos casos mais conhecidos, à atitude
de desrespeito e escárnio do Estadão, da Record e da Bandeirantes perante a
minha administração.
O Estadão recebeu bem minha indicação para o Ministério da
Educação, chegando a fazer referências elogiosas à minha trajetória acadêmica
interdisciplinar na Universidade de São Paulo. Quando meu nome começou a ser
ventilado para concorrer a cargos majoritários, o comportamento do jornal mudou
radicalmente. Contei 413 editoriais do Estadão – eu os coleciono – contra minha
gestão à frente do MEC e da Prefeitura de São Paulo. Um par deles é
particularmente significativo. No início de 2016, o jornal apostou que, sendo
eu um “demagogo”, jamais reajustaria a tarifa de ônibus em ano eleitoral, mesmo
que isso fragilizasse as finanças municipais num momento de crise econômica. Eu
jamais me renderia à demagogia, mesmo sabendo que o último reajuste em ano
eleitoral acontecera vinte anos antes, em 1996. Após o inevitável aumento, o
Estadão critica a decisão num duro editorial intitulado “Cada vez mais caro e
ruim”.
Com a Record, o contencioso envolvia a construção do Templo
de Salomão. Quem licenciou a obra na gestão Kassab foi Hussain Aref Saab –
então diretor do departamento de aprovação de edificações da prefeitura,
acusado em 2012 de liberar obras irregulares em troca de propina. Entre outras
coisas, a edificação invadia parte de uma zona especial de interesse social,
destinada à moradia popular. A lei mandava demolir e esse argumento foi usado
pela minha gestão para propor uma modalidade de acordo de leniência, aprovado
por lei. A forma encontrada para indenizar a cidade previa a doação de um
terreno com as mesmas dimensões e na mesma região, o que exigiria um dispêndio
por parte da Igreja Universal do Reino de Deus de cerca de 40 milhões de reais.
Essas negociações, que duraram anos, gerariam muito estresse em qualquer
circunstância, mas o fato de a Record ter dentro de casa um candidato a
prefeito, Celso Russomanno, agravava o quadro ainda mais.
Situação, aliás, muito semelhante à do Grupo Bandeirantes.
Eu achava estranho o apresentador José Luiz Datena se recusar a conversar
comigo. Dois almoços cancelados e uma animosidade incomum. Não imaginava que
ele tivesse pretensões políticas, como mais tarde se revelou. O acesso à tela
altera completamente as condições do jogo e os programas de tevê, nessas
circunstâncias, se transformavam, um a um, em programas eleitorais. Foi difícil
ter como potenciais adversários apresentadores de programas populares que
dialogavam com a periferia diariamente.
O entrevero com a Band na verdade começou com o fim da
Fórmula Indy. Cada edição custava 35 milhões de reais aos cofres paulistanos,
piorava as condições do trânsito na Marginal Tietê e não trazia um centavo de
retorno turístico para a cidade. Decidimos cancelar o evento. Plantamos vento e
colhemos tempestade. A emissora promoveu uma campanha sistemática contra a
atualização da planta de valores do IPTU e contra o plano municipal de
mobilidade urbana. Premiado internacionalmente, o plano recebeu das emissoras
de rádio do grupo o tratamento mais desqualificado que se poderia imaginar.
Grande proprietário de terras na cidade, Johnny Saad chegou a me dar um
telefonema dizendo: “Vamos para cima de você.”
Deixo a Jovem Pan para o final porque o comportamento da
emissora em relação ao meu governo talvez seja a expressão mais transparente do
déficit de republicanismo que há no Brasil.
Meus anos de universidade foram marcados pelo convívio com a
nata da intelectualidade uspiana. Discutia filosofia com Paulo Arantes e Ruy
Fausto, crítica literária com Roberto Schwarz, economia política com José Luís
Fiori, história com Luiz Felipe de Alencastro, sociologia com Gabriel Cohn,
direito com Dalmo Dallari e Fabio Comparato – e assim por diante. Estamos
falando de grandes intelectuais a quem os jovens professores submetiam nossa
produção acadêmica. Ver, de repente, e por imposição da atividade política, a
minha produção acadêmica avaliada por comentaristas como Marco Antonio Villa e
Reinaldo Azevedo foi um dos ossos mais duros de meu novo ofício. Em 1989,
escrevi um livro intitulado O Sistema Soviético, uma crítica muito mais ácida
àquele modelo do que, por exemplo, a elaborada por Bresser-Pereira no seu A
Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, de 1981. Na verdade, minha tese
antecipava o diagnóstico feito pelo pensador alemão Robert Kurz em O Colapso da
Modernização. Não obstante, nossos dois comentaristas leram e não entenderam,
considerando o livro, para meu espanto, uma defesa do comunismo.
Em relação a mim, a Jovem Pan não fazia propriamente
jornalismo, mas algo como uma campanha persecutória. Basta ir aos arquivos da
emissora para constatar. Villa resolveu utilizar seu tempo para me difamar
diariamente a partir de uma análise pedestre da agenda institucional do
prefeito. Diante da recusa da jp em considerar os dados oficiais sobre minha
jornada de trabalho, adotamos um procedimento didático que desmoralizou nosso
acusador. Por poucas horas mantivemos no portal da prefeitura uma agenda no
padrão da cumprida por políticos que esse pseudointelectual gosta de bajular.
Ele mordeu a isca e fez os comentários raivosos de praxe para me desqualificar.
Então informei o trote pelo Facebook. Até aí, só bom humor. Inconformado,
entretanto, o comentarista cobrou no ar, ensandecido, providências do
Ministério Público. E elas chegaram na forma de uma ação de improbidade, da
qual já fui absolvido, e de um inquérito criminal, em curso.
Li praticamente todos os clássicos sobre a formação do
Brasil. Conhecia teoricamente o nosso país. Mas a experiência prática é
insubstituível. Vivi na pele o que li nos livros.
O Brasil conheceu períodos democráticos em sua história, mas
nunca um período republicano, ou essencialmente republicano, em que as
instituições não se envolvem no mérito das disputas partidárias. A discussão
sobre as contradições entre república e democracia foi exposta com perspicácia
pelos federalistas norte-americanos, há mais de 200 anos. Os Pais Fundadores
observavam que a democracia podia facilmente degradar-se em tirania da maioria.
Pensaram então numa série de contrapesos, em instituições que pudessem impedir
a tirania sobre minorias e preservar o país da ação de facções.
O Brasil deixaria Madison, Jay e Hamilton de cabelos em pé.
Quando se olha para as instituições do país, vê-se logo que são tomadas por uma
espécie de luta interna entre seus propósitos mais nobres e uma encarniçada
disputa político-partidária, que obedece à lógica das facções. As instituições
que deveriam apenas “garantir o jogo” democrático têm apetite por “jogar o
jogo”, o que o torna menos democrático.
Costuma-se dizer que é complicado administrar uma cidade
como São Paulo, mas a mim isso sempre foi extremamente estimulante. O problema
é que instituições que deveriam funcionar para, na forma da lei, dar respaldo a
quem ganha as eleições para executar seu plano de governo agem, muitas vezes,
de forma facciosa. Hoje a bandeira a empunhar talvez fosse a da “justiça sem
partido”.
No primeiro ano de mandato, além do impacto do represamento
da tarifa de ônibus no orçamento municipal, outro evento – na verdade, uma
decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) – fez com que, em
dezembro, eu rebaixasse ainda mais as expectativas sobre minhas possibilidades
de êxito.
A decisão judicial inexplicável, que trouxe graves prejuízos
à administração, foi a que barrou a atualização da chamada Planta Genérica de
Valores do IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano, em dezembro de 2013, a
partir de uma liminar pedida pelo PSDB e pela Fiesp, a Federação das Indústrias
do Estado de São Paulo. Não havia na jurisprudência precedente de um tribunal
suspender a revisão da base de cálculo de um tributo. Mas aconteceu. Um erro
que a Justiça só reconheceu um ano mais tarde, depois de termos perdido o
equivalente na época a 850 milhões de reais de arrecadação, valor suficiente
para a construção de vinte CEUs, o Centro Educacional Unificado. Além de estar
prevista em lei municipal e na venerada Lei de Responsabilidade Fiscal, a
revisão implicava uma redução significativa do imposto nas periferias e seu
aumento no centro expandido, onde os imóveis experimentaram uma brutal
valorização. Era, portanto, uma medida que promovia justiça social.
Tenho gravada na memória a audiência que tivemos com o
ministro Joaquim Barbosa no dia 19 de dezembro de 2013 para tentar revogar a
liminar. Primeiro ele atendeu o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e seu advogado
Ives Gandra Martins. Só depois a mim e ao procurador do município. Era nítida a
diferença de tratamento, de postura, de tom, a nosso desfavor. Na audiência
discutimos a situação política do país, a elevada carga tributária, e até o
valor do IPTU do imóvel do ministro no Rio de Janeiro, na opinião dele muito
alto. Questões eminentemente jurídicas não receberam nenhuma atenção. O pedido
de cassação da liminar nos foi negado, fato só revertido no âmbito do Tribunal
de Justiça de São Paulo, com larga margem de votos a nosso favor, um ano depois
– leite já derramado. Infelizmente, na política, quando a Justiça tarda, ela
falha.
Se o primeiro ano de governo foi marcado pelo dissabor dessa
decisão, no quarto ano vivi um episódio lastimável envolvendo um membro do
Ministério Público Estadual. O caso gira em torno da Arena Corinthians,
construída pela Odebrecht. Como se sabe, quando prefeito, Kassab aprovou uma
lei que permitia ao Executivo emitir 420 milhões de reais em títulos, em nome
do clube, que poderiam ser usados para pagamentos de tributos municipais. Com
isso, viabilizava-se a construção do estádio para a abertura da Copa do Mundo.
Um promotor de Justiça entrou com uma ação contra essa lei. E os títulos
viraram um mico nas mãos do clube e da empreiteira. Alegando que haviam sido prejudicados
pela ação, Corinthians e Odebrecht reivindicaram que a prefeitura, diante do
imbróglio, recomprasse os papéis, invendáveis dada a insegurança jurídica
provocada pela atuação do Ministério Público.
Obviamente recusei a proposta, que seria lesiva ao
município. Foi quando fiquei sabendo de um suposto incidente gravíssimo
envolvendo o promotor de Justiça Marcelo Milani. Fui informado de que, para não
ingressar com a ação judicial, o promotor teria pedido propina de 1 milhão de
reais. Eu respondi que essa informação não mudava o teor da minha decisão,
contra a recompra, e que não me restava alternativa como agente público senão
levar o fato relatado ao conhecimento da Corregedoria-Geral do Ministério
Público, para que fosse devidamente apurado.
Por recomendação do meu secretário de Segurança Urbana,
Roberto Porto, ele mesmo membro do Ministério Público, chamei em meu gabinete
um assessor do corregedor do órgão, Nelson Gonzaga de Oliveira, e repassamos a
informação do suposto pedido de propina. Fizemos isso com a maior discrição.
Sem uma ampla investigação, não haveria como atestar a veracidade da informação
contra o promotor, que eu sequer conhecia. Minha denúncia, contudo, chegou aos
ouvidos do próprio Marcelo Milani. E desde então ele adotou uma atitude
persecutória contra mim.
Dou exemplos. A Controladoria Geral do Município, que
criamos, foi responsável por flagrar atos de corrupção no Theatro Municipal.
Assim que a irregularidade foi detectada, nomeamos um interventor e
estabelecemos uma parceria com o Ministério Público, bloqueando os bens
comprados com o dinheiro da corrupção pelos envolvidos, que confessaram o
crime. Uma CPI, de maioria oposicionista, criada pela Câmara Municipal decidiu
excluir por unanimidade qualquer menção ao meu nome do relatório final, por
entender que nada havia contra o prefeito neste caso. O promotor Marcelo
Milani, ainda assim, encontrou uma maneira de propor uma ação de improbidade
contra mim.
Mas talvez seja em outra ação de improbidade, relativa ao
destino dos recursos de multas de trânsito, que o comportamento impróprio do
promotor tenha ficado mais patente. Milani moveu duas ações semelhantes com o
mesmo fundamento, uma contra a prefeitura, outra contra o estado. No primeiro
caso, convocou-se uma coletiva de imprensa e o chefe do Executivo, o prefeito,
figurava como réu por improbidade; no segundo, uma breve nota substituiu a
coletiva de imprensa, o governador não figurava como réu e o processo acabou
arquivado por perda de prazo pelo promotor. A isso eu chamo de comportamento
faccioso. Fatos como esse são muito mais corriqueiros no Brasil do que se
imagina.
***
Volto a 2013, de onde parti, para enfrentar a pergunta
fundamental se quisermos entender os últimos anos e a situação atual do país:
como explicar a explosão de descontentamento ocorrida em junho daquele ano,
expressa na maior onda de protestos desde a redemocratização? O desemprego
estava num patamar ainda baixo; a inflação, embora pressionada, encontrava-se
em nível suportável e corria abaixo dos reajustes salariais; os serviços
públicos continuavam em expansão, e os direitos previstos na Constituição seguiam
se ampliando.
Cabem, ao menos, três reflexões a respeito de 2013: sobre as
classes médias, sobre a polícia e sobre as redes sociais.
O Marx da maturidade foi obrigado a ceder a um argumento que
só seria apresentado formalmente décadas depois pelo economista Joseph
Schumpeter. Foi quando a tese marxista da pauperização da classe trabalhadora
deu lugar a um raciocínio mais sofisticado. Como decorrência do incrível
progresso tecnológico próprio do capitalismo, os salários poderiam, segundo
seus textos mais tardios, aumentar continuamente – o que significava dizer que
a situação da classe operária poderia melhorar em termos absolutos.
Ainda assim, o velho Marx não se viu obrigado a rever, por
força dessa inflexão, seus prognósticos sobre a evolução da luta de classes.
Isso porque ele avaliou que o relevante para a dinâmica de classe era a posição
relativa das classes, e não sua posição absoluta. Importava mais a distância
que separa as classes entre si, num dado momento, do que a comparação de uma
classe com ela mesma ao longo do tempo.
O advento da social-democracia representou para o marxismo
um desafio adicional. Nos chamados anos dourados do capitalismo, que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial, não só a posição absoluta dos trabalhadores
nos países desenvolvidos – o núcleo duro do sistema – melhorou continuamente,
como a classe trabalhadora desses países viu sua posição relativa se alterar
favoravelmente. O fenômeno, expresso nos indicadores de desigualdade social, é
reconhecido pela economia política em geral – seja ele consequência das guerras
mundiais, do desafio soviético ou da lei de ferro que estratifica as economias
nacionais, concentrando riqueza oligárquica no núcleo duro do sistema.
O Brasil, por sua vez, é um país fortemente estratificado: a
desigualdade sempre foi a marca da nossa sociedade. Somos um misto de sociedade
de “castas” com meritocracia. O indivíduo pode, por esforço e talento próprios,
mudar de casta sem reencarnar – mas a posição relativa das “castas” há de ser
mantida.
Durante o governo Lula essa estrutura começou a se alterar
e, aparentemente, gerou grande mal-estar: os ricos estavam se tornando mais
ricos e os pobres, menos pobres. Por seu turno, as camadas médias tradicionais
olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam
os pobres se aproximarem. Sua posição relativa se alterou desfavoravelmente. Se
os rendimentos dessas camadas médias não perderam poder de compra medido em
bens materiais, perderam-no quando medido em serviços.
O verdadeiro shopping center das camadas médias brasileiras
sempre foi o mercado de trabalho. A abundância de mão de obra barata lhes
garantia privilégios inexistentes no núcleo duro do sistema. A empregada
barata, a babá barata, o motorista barato. Serviços domésticos em quantidade
eram a grande compensação pela falta de serviços públicos de qualidade.
A princípio, o desconforto não tinha como se expressar
politicamente, pelo menos não da forma tradicional. Num dos países mais
desiguais do mundo, defender a desigualdade não traria à oposição a projeção
necessária nos embates no plano socioeconômico. Esse desconforto encontrou sua
expressão possível pelo discurso da intolerância – contra pobres (Bolsa
Família), pretos (cotas), mulheres (aborto), gays (kit) ou jovens (maioridade
penal) –, que flertou com o fundamentalismo, violento ou religioso.
A panela de pressão estava ali, acumulando energia, e só não
explodia porque o palpável sucesso econômico do governo a impedia. E, ao
contrário do que já vinha acontecendo no restante da América Latina, na
Venezuela, na Argentina, no Peru, no Equador e na Bolívia, a direita no Brasil
ainda não tinha saído às ruas. A partir de 2006, em particular com a reeleição
de Lula, apesar do aumento contínuo da aprovação ao governo, já se podia
perceber um sentimento crescente de desalento por parte de setores mais
tradicionais.
E veio a fagulha, acesa num protesto organizado pelo MPL, o
Movimento Passe Livre, contra o aumento da tarifa de ônibus – um reajuste, é
bom lembrar, de apenas 6% diante de uma inflação acumulada de 17%. Eu sabia que
a situação exigia cuidado, que teria repercussão, ainda mais sendo eu o
prefeito, mas imaginava que conseguiria estabelecer um diálogo com os
manifestantes que, a princípio, recusaram o aceno.
Eis que entra em cena o “comando da polícia”, uma entidade
desde sempre mais preocupada com a ordem pública do que com a segurança
pública, mais preocupada com os deveres do cidadão do que com seus direitos.
Na ocasião, a administração municipal se desgastava com a
cúpula da Polícia Militar em função da readequação das regras de remuneração da
chamada Operação Delegada, programa criado por Kassab mediante o qual o
município repassava mais de 100 milhões de reais para a corporação por serviços
de combate aos ambulantes ilegais. Atrito, aliás, que já havia se manifestado
na primeira Virada Cultural sob nossa administração, quando arrastões
aconteceram diante de olhos displicentes de alguns policiais, segundo diversos
relatos da época. E se agravaria com o boicote explícito ao programa De Braços
Abertos, com a transferência dos excelentes policiais militares que inibiam a
ação do tráfico na região da Cracolândia.
Em 13 de junho de 2013, a foto de um policial com o rosto
coberto de sangue estampou a capa dos jornais. Ele havia sido agredido pelos
manifestantes. Naquele dia eu voltava de uma viagem de trabalho com o
governador Geraldo Alckmin e, até aquele momento, a situação nem de longe
parecia fora de controle. Aquela foto, entretanto, me impeliu a dar um
telefonema ao secretário de Segurança Pública do estado: era imprescindível um
esforço para que não houvesse um revide da polícia. Mas ele veio. E então o
país explodiu.
Para os padrões da classe média, a violência foi grande.
Ainda tentando manter a situação sob controle, fiz uma crítica à atuação
policial abaixo do tom, na esperança de criar algum espaço para a interlocução.
Em vão. O MPL passou a me corresponsabilizar pela truculência da polícia, e a
polícia, por seu turno, reprimia o movimento – a não ser quando os alvos da
fúria eram prédios municipais, como o Edifício Matarazzo ou o Theatro
Municipal. Nesses casos, a Polícia Militar simplesmente cruzava os braços.
Apesar de um pedido que na ocasião fiz em audiência, Alckmin só viria a
substituir o comandante-geral da PM ao final do seu mandato, em dezembro de
2014.
Alguém dirá, com razão, que nem o MPL nem a PM explicam a
eclosão da crise. Aqui, é necessário introduzir um elemento sem o qual os
eventos de 2013 não encontram explicação: a forma assumida pelas manifestações.
Tradicionalmente, todas as modernas organizações
contestatórias no Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst)
ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (mtst), passando pela Central Única dos
Trabalhadores (cut), pela União Nacional dos Estudantes (une) e demais
movimentos sociais, sempre foram adeptas de alguma mediação
político-institucional. Mesmo durante a fase mais aguda do neoliberalismo,
essas organizações faziam atos, exerciam seu direito de protesto, mas buscavam
a negociação com as instituições. Diante de governos de centro-esquerda, essa
tendência se acentuava e trazia ganhos efetivos para os grupos representados.
Nos países do núcleo orgânico do sistema, onde essa mediação
era menos provável, ganhou corpo desde os eventos de Seattle, em 1999, uma
certa esquerda antiestatal, neoanarquista charmosa, que mantém distância dos
governos e das instâncias de representação política em geral. Os protestos
nessas circunstâncias ocorrem de forma inteiramente nova. Sem vínculos
partidários nem pretensões eleitorais, a partir de uma agenda bastante
específica e de difícil contestação, esses movimentos começaram a fazer sucesso
mundo afora. E eles foram bastante críticos em relação à política e às formas
tradicionais de negociação, que viriam inspirar os movimentos mais contemporâneos
que se desenvolveram no Brasil, dentre os quais o MPL.
Traduzida para as condições locais, porém, a novidade
provocou um curto-circuito. A forma dos protestos, muito mais do que o conteúdo
de suas reivindicações, oferecia uma chave de contestação que se prestava à
defesa de tantas outras bandeiras. Logo ficou claro que ela, a forma, poderia
ser sequestrada e servir de embalagem para uma miríade de novas demandas. E a
panela de pressão de que falávamos pareceu ter encontrado a válvula para dar
vazão à energia que havia se acumulado por anos.
No intervalo de uma semana as ruas estavam cheias, com uma
pluralidade de reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si.
Quando o sequestro da forma se consumou, o MPL se retirou das ruas, bem como a
esquerda tradicional caudatária do movimento. E grupos de direita,
apartidários, se organizaram para emparedar o governo federal, apropriando-se
sintomaticamente da própria linguagem dos protestos originais, que ganhavam
simpatia popular: MBL (Movimento Brasil Livre) é uma corruptela de MPL; Vem Pra
Rua era um dos gritos mais ouvidos nos protestos; Revoltados On Line evoca
diretamente a natureza daqueles eventos convocados via rede social.
Sem tratar das redes sociais não se entende 2013 em sua
totalidade. Criou-se uma ilusão nas esquerdas em relação ao potencial
emancipatório da internet. Acho que as redes sociais estão mais para Luhmann do
que para Habermas. Quero dizer com isso que a ênfase dada pelo filósofo alemão
Jürgen Habermas às possibilidades de participação política proporcionadas pela
modernidade talvez tenha sido exagerada. E que a visão mais pessimista de seu
conterrâneo, o sociólogo Niklas Luhmann, seja mais adequada ao mundo de hoje.
De acordo com Luhmann, o advento da rede social representa
uma ruptura radical entre a emissão e a recepção da mensagem. É uma ideia
contraintuitiva numa época em que tudo se tornou instantâneo e tudo parece
interligado. O ponto, segundo ele, é que hoje a reputação do emissor, a origem
da informação, perdeu relevância. A técnica, diz Luhmann, “anula a autoridade
da fonte e a substitui pelo irreconhecível da fonte”.
Imaginou-se inicialmente, sobretudo em ambientes de
esquerda, que essa ruptura e o enfraquecimento da autoridade de quem fala
reduziriam o poder de manipulação da indústria cultural. Entretanto, o que
ocupou seu lugar parece tão ou mais perigoso que a força da tradição, com a
difusão deliberada e em grande escala de informações com viés, sem o anteparo
das instâncias costumeiras de validação. É nesse ambiente que prospera a
chamada “pós-verdade”.
Há de se considerar ainda a dimensão econômica, o modelo de
negócio da internet. Na verdade, as redes digitais são menos sociais do que se
pensa. Por trás do black mirror há menos o desejo de promover a interação do
que, por meio da interação, conhecer o feixe de relações do usuário para compor
tanto quanto possível a “identidade” desse sujeito.
Somos decodificados a partir das nossas manifestações
digitais e convertidos numa sequência binária de curtidas/não curtidas que
revela nossas preferências e gostos, com um grau acurado de precisão. São essas
preciosas informações que garantem o patrocínio às megacorporações como o
Facebook e o Google. E, se essas informações podem ser usadas não somente para
promover a venda de mercadorias, mas também a “venda” de ideias e ideais,
estamos diante de um desafio considerável para a democracia.
A decorrência lógica desse processo é a formação de
múltiplos nichos que exacerbam o individualismo e reforçam as “identidades digitais”.
O indivíduo, nesse universo paralelo caracterizado pelo feixe de relações
virtuais que estabelece, tende a adotar uma atitude francamente reativa e
reacionária em relação ao contraditório.
Durante os protestos de 2013 no Brasil, a percepção de alguns
estudiosos da rede social já era de que as ações virtuais poderiam estar sendo
patrocinadas. Não se falava ainda da Cambridge Analytica, empresa que, segundo
relatos, atuou na eleição de Donald Trump, na votação do Brexit, entre outras,
usando sofisticados modelos de data mining e data analysis. Mas já naquela
ocasião vi um estudo gráfico mostrando uma série de nós na teia de comunicação
virtual, representativos de centros nervosos emissores de convocações para os
atos. O que se percebia era uma movimentação na rede social com um padrão e um
alcance que por geração espontânea dificilmente teria tido o êxito obtido. Bem
mais tarde, eu soube que Putin e Erdogan haviam telefonado pessoalmente para
Dilma e Lula com o propósito de alertá-los sobre essa possibilidade.
Eu estava decidido a manter posição diante dos protestos,
apesar das pressões. Eis que recebo um telefonema do Eduardo Paes, a quem o
Planalto também tinha pedido o adiamento do reajuste da tarifa, dizendo que era
melhor ceder. “Não vou segurar, você vai ficar sozinho”, me disse o prefeito do
Rio. A pressão interna sobre nós já atingia patamares insuportáveis e o
telefonema era a gota d’água. Foi então que resolvi ir ao Palácio dos
Bandeirantes e propor ao governador Alckmin que fizéssemos juntos o anúncio da
revogação do aumento. Contrariado, certo de que aquilo nada tinha a ver com
tarifa de ônibus, tentei com o gesto despartidarizar a questão e iniciar um
processo de construção de uma política tarifária metropolitana.
Na chegada, quando apertamos as mãos, pouco antes da
coletiva em que faríamos o anúncio, eu disse ao governador o que pressentia:
“Podemos estar às vésperas de uma crise institucional.”
Tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não
fossem as Jornadas de Junho.
A crise internacional do neoliberalismo se desenrola desde
2008. Já no final dos anos 90, muitos economistas, dentre os quais me incluo,
previam que a desregulamentação financeira provocaria uma crise de proporções
consideráveis, cuja debelação não poderia contar com as clássicas políticas
keynesianas que pressupõem, justamente, governança financeira global.
Agregava-se a isso a chamada acumulação flexível, que, pelo incrível
barateamento dos custos de transporte, comunicação e tecnologia da informação,
desnacionalizou a produção, minando a base territorial dos sindicatos e demais
organizações de trabalhadores, sobretudo no núcleo do sistema.
Os países periféricos, em particular os que se acoplaram
como fornecedores de matéria-prima à locomotiva chinesa, beneficiaram-se do
processo, impulsionados inclusive pelo overshooting do preço das commodities.
Foi o caso do Brasil. Há muitas diferenças na forma como o país é visto por FHC
e Lula, mas há um ponto em comum entre eles: ambos imaginaram, cada um à sua
maneira, que o país poderia ter um lugar diferenciado no concerto das nações.
Pressentiam que as especificidades brasileiras – o tamanho de sua população, a
extensão do território, seus amplos recursos naturais, a terra agricultável e
uma ciência ainda incipiente mas líder na América Latina – configuravam
potencial suficiente para uma melhor inserção no mercado internacional. Para
eles, o Brasil estava aquém da posição que poderia ocupar.
A diferença é que FHC e Lula definiram estratégias distintas
para alcançar esse objetivo. O tucano dava mais ênfase ao capital estrangeiro e
ao mercado externo. O petista priorizou o capital nacional e o mercado interno.
Esses pontos de vista distintos determinaram políticas públicas muito
discrepantes. Distribuir renda, por exemplo, pode representar uma ameaça, num
caso, ou uma necessidade, no outro. Desnacionalizar as empresas pode ser uma
exigência para o primeiro e um atentado ao desenvolvimento nacional para o
segundo. E assim por diante.
Essas opções se refletem, às vezes, no alcance das políticas
públicas. Um caso paradigmático é o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001.
Aprovado pelo Congresso Nacional, o plano previa a universalização, em seis
anos, do primeiro programa federal de transferência de renda. FHC vetou o
dispositivo, alegando falta de fonte orçamentária. Lula percebeu que com ação
semelhante poderia acabar com a fome na mesma medida em que dinamizava o
mercado interno. Outros aspectos do PNE foram observados por Lula, que expandiu
como nunca o acesso à educação superior, profissional e infantil das famílias
de baixa renda. Transformou-se no “barão da ralé”.
No plano externo, Lula concebia a internacionalização da
economia a partir do capital nacional. Toda a política externa de seu governo
teve essa premissa: abrir mercados para as empresas brasileiras, agronegócio e
construção pesada à frente, como vetores de um movimento mais amplo. As visitas
que o ex-presidente fez a quase todos os países da África e do Oriente Médio, o
desejo de fortalecer o Mercosul e a Unasul, o papel desempenhado pelo G20, a
articulação dos Brics, todo o esforço da diplomacia Lula caminhava nessa
direção. Ele realmente desejava que as empresas brasileiras crescessem e se
internacionalizassem, imaginando que o Brasil também poderia engendrar, ainda
que em escala menor, seus keiretsus e chaebols, os grandes conglomerados
empresariais de Japão e Coreia, países de desenvolvimento tardio.
O mundo acompanhava tudo com atenção.
Fernando Henrique fazia uma outra leitura do papel que o
Brasil poderia reivindicar no cenário internacional. Usando terminologia dos
anos 60, eu diria que ele considerava que o país não tinha pernas para exercer
uma posição de tipo subimperialista. O destino nos reservava um papel de tipo
subcapitalista. O “príncipe da sociologia” nunca confiou na capacidade da
burguesia nacional de empreender em escala internacional. Ao contrário, sempre
a considerou limitada e condenada à submissão, cabendo ao país – mais com a
ajuda do capital estrangeiro do que com a do capital nacional, estatal ou
privado – promover o mero acoplamento à ordem internacional, deixando às nossas
geográficas vantagens comparativas a função de nos situar numa posição mais
favorável. O “entreguismo” de que foi acusado era apenas a tradução de sua
visão sobre a baixa pretensão das nossas classes dirigentes.
No contexto brasileiro, a estratégia de Lula, por seu turno,
se deparava com um enorme risco: o patrimonialismo brasileiro ou a versão beta
do crony capitalism, o capitalismo clientelista ou de compadrio.
O patrimonialismo é, antes de mais nada, uma antítese da
república. O despotismo é outra antítese da república. Entre nós, brasileiros,
nenhuma obra do pensamento social e político descreve melhor o patrimonialismo,
hoje com suas entranhas expostas no noticiário do país, do que Os Donos do
Poder, de Raymundo Faoro. O texto, publicado em 1958, deveria ser relido, cum
grano salis, como veremos.
“Na peculiaridade histórica brasileira”, escreve Faoro, “a
camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos
derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Não há sutileza aqui: ele
afirma que o Estado no Brasil é objeto de posse, tomado pela camada dirigente
como seu. E prossegue: a comunidade política comanda e supervisiona todos os
negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de
intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão
pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção
privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da
economia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os
negócios como negócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois
em linhas que se demarcam gradualmente.”
A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo
tipo de domínio, Faoro chama de patrimonialismo. E nota que, ao contrário do
mundo feudal, que é “fechado por essência, não resiste ao impacto com o
capitalismo, quebrando-se internamente”, o patrimonialismo se amolda “às
transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do mundo
externo”. Ou seja, Faoro já percebia que o patrimonialismo brasileiro – que
segundo sua tese remonta à dinastia portuguesa de Avis (1385–1580) durante a expansão
comercial lusitana para a África, Índia e Brasil – adaptou-se à chegada do
capitalismo. Ou seja, ele o concebia como um modelo arcaico que sobreviveu à
modernização.
Em um artigo publicado na revista Reportagem em janeiro de
2003, logo após a primeira eleição de Lula, eu alertava que o PT ainda não
havia feito o diagnóstico adequado sobre a natureza do que chamei de
“patrimonialismo moderno”.
Argumentei que, dada a natureza patrimonialista do Estado
brasileiro, “a mera chegada ao poder de um partido de esquerda, por si só,
ainda que prometesse respeitar todos os direitos constituídos e os contratos
celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório”. E,
portanto, passível de forte reação contrária. Mas que o nó da questão era, como
o próprio Faoro apontava em sua obra, a possibilidade histórica de um
patrimonialismo social-democrata, que empreendesse “uma política de bem-estar
para assegurar a adesão das massas”.
Obviamente, quando escreveu essas linhas Raymundo Faoro
pensava em Getúlio Vargas. Mas o PT, que em certa medida retomava o projeto
trabalhista tantas vezes abortado, não poderia ter desconsiderado esse risco.
Hoje, se eu pudesse apontar um grande equívoco do PT, seria esse: o de
subestimar o caráter patrimonialista do Estado brasileiro.
O PT que chegou ao poder naquele ano de 2003 podia ser
dividido em três grupos internos: uma esquerda socialista, uma direita
republicana e um centro social-desenvolvimentista, hegemônico no partido. No
artigo, eu sugeria que poderíamos cometer um erro histórico se o centro
social-desenvolvimentista, ignorando as percepções das duas outras alas,
entendesse que nosso projeto era realizável sem reformar profundamente as
estruturas do estado patrimonialista.
A minha esperança, à época, era a inserção social do PT.
Que, de fora para dentro do governo, o partido e sua militância poderiam
oxigenar a máquina pública. O que de fato ocorreu, mas só até determinado
ponto. Prova disso é que na administração direta, nas autarquias e fundações, o
governo avançou muitíssimo, por exemplo, pela criação da Controladoria-Geral da
União, pelo fortalecimento da Polícia Federal, pelo grau de autonomia do
Ministério Público Federal etc. As práticas patrimonialistas se fixaram
justamente onde esses órgãos tinham um espaço muito menor de atuação, o local
privilegiado em que o poder político encontra o poder econômico: as estatais,
federais e estaduais, as agências reguladoras, o Banco Central etc. E na
Petrobras, que ocupa o imaginário brasileiro desde Getúlio Vargas e administra,
de fato, um ativo estratégico para o desenvolvimento nacional.
Aliás, há um equívoco ao se falar de corrupção sistêmica ou
de lobby no Brasil. A corrupção no país é mais do que sistêmica, ela é o
corolário de nosso patrimonialismo. Afirmar que a corrupção, aqui, é sistêmica
pode passar a impressão de que seria possível um patrimonialismo incorrupto. Da
mesma forma com o lobby. Não há lobby no patrimonialismo. Na verdade, o lobby
devidamente regulamentado seria até um avanço diante do que temos. O lobby
pressupõe pelo menos dois lados, se não uma mesa quadrada, pelo menos um
balcão. No patrimonialismo, o poder político e o poder econômico – “os donos do
poder”, na definição de Faoro – sentam-se a uma mesa redonda. Não se distinguem
os lados. Em um contexto como esse, não há vítimas, a não ser os que não estão
à mesa; há negócios.
A pergunta que se coloca nesses tempos em que a Operação
Lava Jato expõe parte do funcionamento de nosso patrimonialismo é: pode uma
revolução ser conduzida pelo Poder Judiciário?
Não é preciso consultar Montesquieu para saber que não. O
Poder Judiciário não tem a faculdade de criar um mundo novo. Nas condições
locais, entretanto, ele pode concorrer para destruir o antigo, criando ou não
as condições de que algo novo surja no horizonte, ou simular a destruição do
velho para que tudo permaneça exatamente como é.
O debate sobre corrupção no Brasil sempre foi um faz de
conta, um tema de conveniência e oportunidade, não de princípios. As
instituições que deveriam garantir a imparcialidade das apurações são, regra
geral, arrastadas para dentro da arena da disputa política e contaminadas pelo
espírito de facção. Terminada a batalha, as condições anteriores são repostas e
os negócios voltam à normalidade. Business as usual.
O interesse que a Operação Lava Jato desperta deriva do fato
de que ela, contra todos os prognósticos iniciais, parece fugir a esse roteiro.
Quando se olha mais de perto, na verdade, é impossível não identificar a tensão
no interior da operação entre uma ala facciosa tradicional, com claros
interesses políticos, e uma ala republicana que quer passar o país a limpo sem
aparentemente se dar conta da escala dos seus propósitos.
A Lava Jato tem o mérito inquestionável de abrir a
caixa-preta das relações público-privadas no Brasil – algo que Faoro intuía,
mas que não havia sido exposto tão escancaradamente. Mas, se o desfecho for
aquele pretendido pela ala facciosa da operação, o que teremos é uma simples
troca de comando do patrimonialismo. Corremos o risco de aniquilar o velho
apenas para que ele ressurja.
O que complica ainda mais a situação é a relação entre o
Judiciário e a mídia. O caráter contramajoritário do Poder Judiciário é pedra
angular da República. Num certo sentido ele é ademocrático, pois resiste à
maioria em nome da Justiça. A espetaculosidade dos processos em andamento deixa
pouca margem para o desfecho desejável de saneamento de todos os partidos
políticos e gradação das penas imputadas proporcionalmente ao delito.
Vivi os bastidores de um episódio que merece relato. No dia
10 de março de 2016, participei de uma reunião com o ministro da Fazenda Nelson
Barbosa, à qual estavam presentes diversas lideranças sindicais, alguns
economistas, assessores e o ex-presidente Lula. O tema era economia, mas o
debate enveredou pela política. Muitos de nós acreditávamos que o governo Dilma
agonizava e não resistiria por muito tempo. Por semanas, tentávamos convencer
Lula a assumir o governo na condição de ministro-chefe da Casa Civil e ouvíamos
sempre a mesma resposta dele próprio: “Não cabem dois presidentes num só
palácio.” Outro argumento contrário era de que a mídia tentaria caracterizar o
gesto como busca de foro privilegiado, mesmo que àquela altura Lula não fosse
réu. A relutância do ex-presidente à ideia foi enorme. Apenas depois de
insistentes apelos, Lula concordou em conversar com Dilma sobre as condições da
uma eventual ida para o governo – aceitas apenas depois de longa negociação.
Anúncio feito, história conhecida: grampo ilegal de um telefonema impróprio,
vazamento ilegal de uma conversa surreal e uma liminar que impede a posse. A
Justiça fazendo política.
Se junho de 2013 foi o estopim do impeachment, em março de
2016 viria a pá de cal.
Bem antes que se sonhasse com a Lava Jato, tão logo assumi a
prefeitura tomei medidas que feriram interesses das grandes empreiteiras. Não
renovamos o contrato de inspeção veicular, o que deixou a empresa responsável
pelo serviço – a Controlar, do grupo CCR, formado por Camargo Corrêa e Andrade
Gutierrez – bastante contrariada. Vetei também artigos de lei do Plano Diretor
que facilitavam a implantação de um aeroporto em Parelheiros, de interesse da
Camargo Corrêa, além de desagradar a Odebrecht no caso da Arena Corinthians, já
mencionado.
Nenhum desses casos, no entanto, supera a polêmica em torno
do túnel Roberto Marinho. Ele é representativo de quanto o interesse público
pode ser desconsiderado na relação da prefeitura com as empreiteiras. A obra
foi suspensa logo no início da minha administração. Odebrecht, OAS, Camargo
Corrêa, UTC, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia – o clube VIP
das empreiteiras – compunham, duas a duas, os consórcios vencedores da
licitação, dividida em quatro lotes. Tal divisão só havia se tornado possível
graças a uma mudança na extensão do túnel promovida pela gestão Kassab. Dos 400
metros do projeto original, elaborado ainda na gestão de Marta Suplicy,
chegou-se a longos 2,3 quilômetros na inflacionada versão final. Esse episódio,
inclusive, põe em xeque a versão, contada por Mônica Moura em sua delação, de
que a Odebrecht, sem meu conhecimento, teria pago parte da dívida da minha
campanha assumida pelo PT.
Tendo sido eleito durante o julgamento do mensalão, sempre
tive a clareza de que minha conduta tinha que ser exemplar. E minha passagem
limpa pelo Ministério da Educação me dava confiança de que disporia de algum
capital político para iniciar uma gestão inovadora na cidade. Afinal, o
orçamento do MEC é o dobro do da cidade de São Paulo e no tempo em que estive à
sua frente jamais se levantou qualquer suspeita sobre desvios de conduta.
Então, quando irrompe a crise da tarifa, imaginei que esse
histórico pudesse ajudar. Pura ilusão. Apenas um mês depois da revogação do
aumento da tarifa, pesquisas indicavam que eu havia perdido metade do apoio que
tinha e já se questionava se seria capaz de me reeleger. Num final de tarde
melancólico, sozinho na sala do meu apartamento no Paraíso, anoiteceu sem que
eu me desse conta. “Pai, o que você está fazendo aí no escuro?”, perguntou meu
filho Frederico ao chegar da rua. Disse a ele que estava pensando naquela
situação toda e na dor de ver doze anos de dedicação à vida pública serem
liquidados em seis meses de gestão à frente da prefeitura. Ele disse: “Mas,
pai, ainda faltam três anos e meio de governo.” Respondi: “Eu sei, filho, mas
aconteceu uma coisa muito séria e não há como não viver o luto.”
Minha intenção de ficar oito anos à frente da prefeitura
provavelmente não se viabilizaria. Se a reeleição da Dilma não estava mais
assegurada mesmo depois de dez anos de prosperidade, a minha reeleição parecia
ainda mais distante. Agarrei-me àquilo que se mostrava a única vantagem. Tinha
esses três anos e meio de mandato e poderia governar como se não houvesse outro.
Pela experiência no MEC, sabia das vantagens do ciclo de oito anos na gestão
pública: muitas políticas só se estabilizam com o tempo. Mas a história
dificilmente me permitiria repetir a dose. Então tive que achar graça no curto
prazo.
Para minha surpresa, 2014 foi um ano extraordinário para a
Prefeitura de São Paulo. As coisas efetivamente aconteceram. Ocorreram mudanças
estruturais que vão beneficiar a cidade por muitos anos. A primeira delas, a
obtenção do grau de investimento, a partir sobretudo da exitosa renegociação da
dívida com a União. A segunda foi a aprovação do PDE, o novo Plano Diretor
Estratégico, que definiu as diretrizes do desenvolvimento urbano e possibilitou
que os planos setoriais fossem deflagrados nas áreas de habitação, mobilidade,
saúde, educação e cultura. Registraram-se ainda recordes na criação de vagas
destinadas à educação infantil, na criação de faixas e corredores de ônibus e
ciclovias, na construção de hospitais-dia, na extensão da coleta seletiva e na
instalação de lâmpadas LED, entre outros. A cidade começou a responder
favoravelmente. Atingimos em quatro anos, apesar da brutal recessão que assolou
o país, o maior montante histórico de investimentos em valores absolutos. Em
2014, era possível sentir certo frescor nas ruas, sobretudo durante a campanha
presidencial. Perto do fim do ano, nosso governo tinha recuperado parte da
avaliação positiva. Começamos a sentir que tínhamos alguma chance. Depois da
execução sumária de 2013, era quase uma ressurreição. Fizemos uma reunião de
secretariado em que as pessoas manifestaram otimismo.
Entretanto, a crise que se instalou depois da reeleição de
Dilma faria o pesadelo de 2013 parecer um sonho erótico.
No final de 2013, num encontro com o presidente Lula, com a
discrição que o caso requeria, perguntei se ele, passados três anos desde que
tinha deixado a Presidência, conseguiria projetar a situação do país dali a
cinco anos. Ele me perguntou por que cinco anos. E eu lhe disse que esse era o
tempo que ainda restaria a Dilma para governar o país no caso, que me parecia
muito provável, de sua reeleição. Ele me respondeu com o corpo: cotovelos
colados à cintura, palmas viradas para cima e uma expressão facial que indicava
“Não sei” ou, talvez, “Quem é que sabe?”.
Poucos meses depois, cruzei com João Roberto Marinho
descendo as escadas do Instituto Lula. Cumprimentei-o e segui para o encontro
com o presidente. Perguntei a ele o motivo daquela visita. Era uma sondagem
para que Lula fosse o candidato à Presidência em 2014, no lugar de Dilma.
Mais explícito foi o movimento feito por Marta Suplicy, que
chegou a organizar um jantar de “Volta, Lula”.
O ex-presidente nunca mexeu um dedo, muito pelo contrário,
nem por um terceiro mandato, nem pelo “Volta, Lula”. Dilma quis ser e foi
candidata à reeleição e venceu o pleito como previsto. E, a não ser pelos dois
ou três dias que antecederam a eleição, quando mídia e redes sociais ferviam
com denúncias e boatos de toda ordem, e fac-símiles de uma capa da revista Veja
distribuídos por toda a periferia da cidade, não imaginei que a vitória pudesse
estar em risco.
O que me surpreendeu foi a pós-eleição. As principais
lideranças do PSDB se dividiram: Aécio começou a trabalhar por novas eleições;
Serra, pelo impeachment; e Alckmin, grande vencedor do pleito de 2014, pela
normalidade institucional até 2018, cenário que mais lhe favorecia.
O movimento mais visível foi o de Aécio. Pediu recontagem
dos votos, ação pela cassação da chapa Dilma–Temer por abuso de poder
econômico, mobilizou todos os argumentos para que o resultado das urnas não
fosse aceito. A tensão aumentava a cada dia.
Convidei FHC para um almoço na prefeitura. Dias depois,
fomos juntos ao Theatro Municipal. Queria entender melhor o que ele pensava.
Concordamos sobre a gravidade da crise. Mas meu diagnóstico sobre seu
desenrolar se mostrou totalmente errado. A certa altura do almoço, arrisquei:
“Ela não governa, mas vocês não a derrubam.”
A unidade do PSDB a favor do impeachment foi construída com
a participação de FHC. Alckmin, o último que resistia à ideia, finalmente foi
enquadrado e a tese de Serra saiu vitoriosa.
Ao longo do ano de 2015, Serra trabalhou intensamente pela
causa. Seu papel no impeachment foi subestimado. O ex-governador tucano
aproximou-se muito de Michel Temer e lhe garantiu apoio. Era Serra quem
telefonava para os governadores, sobretudo do Nordeste, e depois de uma
conversa política passava a ligação a Temer, que a concluía com a senha
“Precisamos unir o Brasil”. A articulação de Miguel Reale Jr. e Janaina
Paschoal com Hélio Bicudo, autores do pedido de impeachment contra Dilma, teve
participação direta de Serra. E, no final de 2015, a ida de Marta para o PMDB
foi acertada no Senado com a participação de Serra. A estratégia servia a dois
propósitos: garantia o voto da senadora pelo impeachment e criava uma
candidatura competitiva alternativa à minha na periferia. (A candidatura de
Erundina pelo PSOL complicaria ainda mais o quadro já fragmentado e abriria uma
avenida para João Doria.)
Após as eleições de 2014, diante das investidas do PSDB
contra o resultado das urnas, me parecia evidente que Dilma não se sustentaria
sem o PMDB. E, de fato, até certo momento, todas as declarações do PMDB eram no
sentido de dar suporte ao governo Dilma, tanto por parte de Temer quanto de
Eduardo Cunha. Procurei o então vice-presidente. Tinha com ele boa relação.
Propus, então, em nome de uma aliança PT/PMDB para 2016, a vinda de Gabriel
Chalita para a Secretaria Municipal de Educação. Conhecia Chalita havia muitos
anos e reconhecia seu enorme talento para o diálogo com o magistério. Chalita,
é bom lembrar, não concorreu à reeleição para deputado federal em 2014. Desde
2012, seu interesse pela política diminuiu. Entre o primeiro e o segundo turnos
da eleição, a campanha de Serra, sabendo do apoio que ele me daria, forjou um
dossiê com uma dezena de acusações ridículas e as encaminhou ao Ministério
Público. Foram meses de transtorno até que os inquéritos fossem arquivados.
Mas, diante das perspectivas que se abriram, Chalita animou-se com o acordo –
celebrado na presença de Temer e de Lula.
Enquanto fazíamos esse gesto de aproximação com o PMDB no
âmbito municipal, o governo federal movimentava-se na direção oposta. Com a
intenção de tentar diminuir o espaço de atuação do PMDB no governo, o Planalto
fortaleceu meu principal adversário em São Paulo, Gilberto Kassab, nomeando-o
ministro das Cidades. Kassab depois daria o tiro de misericórdia em Dilma,
pelas costas.
Como se não bastasse essa malfadada intervenção na base
aliada, o governo deu uma guinada na política econômica, com a nomeação de
Joaquim Levy. Era evidente que ajustes tinham que ser feitos porque, entre
outras coisas, o governo tinha comprado uma agenda equivocada, elaborada em
parte pela Fiesp: desonerações, redução da tarifa de energia elétrica, swap
cambial, administração de preços públicos etc. Em vez do ajuste, entretanto,
veio um giro de 180 graus. Ainda assim, é certo que a retração econômica jamais
teria sido a maior da história não fossem os efeitos multiplicadores da crise
política e sua pauta-bomba fiscal, potencializados pela Lava Jato.
Crise econômica, crise política, crise ética: as maiores do
gênero. Crises sobrepostas que se retroalimentavam. O impeachment foi
construído por engenharia jurídica reversa. Quem se importava se havia ou não
crime de responsabilidade? Sem crime de responsabilidade e, portanto, sem
cassação dos seus direitos políticos, Dilma foi afastada definitivamente da
Presidência pelo Senado, em 31 de agosto de 2016, numa afronta ao texto
constitucional. Pouco antes, em 29 de julho, Lula se tornava réu pela primeira
vez. Nas semanas seguintes ao impeachment, um de seus ex-ministros, Antonio
Palocci, teve prisão decretada em 26 de setembro. Outro ex-ministro, Guido
Mantega, teve a prisão decretada e relaxada no mesmo 22 de setembro. Tsunami
sincrônico ao período eleitoral.
Quando jornalistas me perguntam a que atribuo minha derrota
em 2 de outubro de 2016, contenho o riso e asseguro: “Faltou comunicação.”
Por trás do golpe parlamentar, o possível fim da Nova
República. O que está em jogo é o pacto de 1988, expresso na Constituição. Por
ironia, o partido que não assinou a carta constitucional, por considerá-la
tímida demais, foi o único que lhe deu consequência. O governo Temer exerce um
poder desconstituinte, com agenda política que jamais passaria pelo crivo do voto
popular. Até a eclosão da nova crise patrocinada pela delação da JBS, o governo
federal vinha promovendo contrarreformas em ritmo revolucionário. Em função do
calendário, parecia editar a cada semana um Ato Institucional diante de um
Congresso de joelhos, que não revela a quem presta contas.
O atual emparedamento de Temer coloca o país diante de um
impasse, cujo desfecho ainda não é claro no momento em que concluo este texto.
Só em 2018, se tudo der certo, saberemos se o Brasil do século XXI cabe no
figurino da República Velha. Saberemos se o trabalhador que sentiu pela
primeira vez a brisa ainda tênue da igualdade e da tolerância saberá prezá-la e
cultivá-la.
Lula terá no próximo pleito papel central. A política
brasileira organiza-se em torno dele há quatro décadas. Desde o final dos anos
70, é o personagem mais importante da história brasileira. Tudo o mais é
circunstancial. A própria eleição de FHC foi obra do acaso – como o próprio
reconhece. Lula participará da sua oitava eleição presidencial, seu nome
estando ou não na urna eletrônica. Independentemente disso, as eleições do ano
que vem podem se dar na arena da grande política ou num programa de auditório.
A escolha está sendo feita agora.
* O artigo tem como base uma série de depoimentos do autor
concedidos ao jornalista Ivan Marsiglia.
FERNANDO HADDAD
Fernando Haddad foi prefeito de São Paulo (2013–16) e
ministro da Educação dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff
(2005–12)
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