quarta-feira, 31 de outubro de 2018

UMA VIRADA À DIREITA

Artigo de Fernando Gabeira

A roda rodou. Já vi muitos presidentes, subindo e descendo a rampa. Um deles descendo ao fundo da terra, Tancredo. Collor chegando e saindo de nariz erguido. Lula com tantas promessas.

Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar o Plano Real.

Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora sem Guerra Fria, num contexto democrático.

Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.

Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho, apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.

O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.

Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?

Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o argumento de que normaliza a barbárie.

Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente, cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?

Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria do povo brasileiro.

Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder. Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um pouco também por filhos e netos. A sensação de continuidade ao lado da poesia são os territórios em que desafiamos a morte.

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.

O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões. Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade que se espera de um eleito.

Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais, propagandistas religiosos ocuparam as redes.

As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.

Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.

Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham. Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada, fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade, tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.

Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.

Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.

É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo, fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um pouco a gravidade de nossos problemas.

Agora, voltamos à vida real.

Artigo publicado no Jornal O Globo em29/10/2018
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HERZOG, A CENSURA E O PASSADO SOMBRIO QUE BATE À PORTA

Vozes silenciadas e verdades ocultadas. Esse era o cenário imposto aos meios de comunicação na ditadura militar no Brasil. O árduo período, que se estendeu por mais de duas décadas, fez vítimas e deixou marcas dolorosas na vida de muitas pessoas. E nessas circunstâncias, há 43 anos, o jornalista Vladmir Herzog foi torturado e morto por militares. À imprensa, ficou o medo e a insegurança de exercer seu trabalho. Aos familiares, a dor da perda de um ente querido.
Além de jornalista, Herzog foi professor e cineasta. No dia 24 de outubro de 1975, aos 38 anos, foi convocado para apresentar-se ao Destacamento de Operações de Informação (DOI/CODI) para prestar depoimento sobre sua conexão com o Partido Comunista Brasileiro. No dia seguinte, foi encontrado enforcado em uma cela. Conforme o Laudo de Encontro de Cadáver expedido pela Polícia Técnica de São Paulo, Herzog se enforcara com uma tira de pano – a “cinta do macacão que o preso usava” – amarrada a uma grade a 1,63 metro de altura. Ocorre que o macacão dos prisioneiros do DOI-CODI não tinha cinto. Ele era retirado, juntamente com os cordões dos sapatos, segundo a praxe naquele órgão. No laudo, foram anexadas fotos que mostravam os pés do prisioneiro tocando o chão, com os joelhos fletidos – posição em que o enforcamento era impossível. Foi também constatada a existência de duas marcas no pescoço, típicas de estrangulamento.
O que assusta, porém, é a possibilidade real de tal panorama se repetir. A cada dia, mais profissionais de comunicação sofrem agressões ― sejam elas virtuais ou físicas. Paralelo aos ataques pessoais, a censura prévia também quer calar a liberdade de expressão de veículos independentes, um direito elementar em um Estado democrático.
De acordo com reportagem do El País, apenas neste ano, 137 profissionais de comunicação foram vitimas de alguma forma de agressão, todas em contexto político, partidário ou eleitoral.
Uma análise feita pela Organização Repórteres Sem Fronteiras constatou que, em uma lista de 180 países, o Brasil ocupa o 102º lugar, na classificação de liberdade de imprensa mundial. A observação apontou também que o ambiente de trabalho para jornalistas no país é cada vez mais instável.
No último dia 20, fiscais do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) invadiram a sede do Sindipetro-NF (Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense), em Macaé (RJ), e apreenderam exemplares do tablóide especial sobre as eleições do Portal Brasil de Fato. A justificativa para tal ato era que o material cotinha matérias pejorativas contra o candidato à presidência, Jair Bolsonaro (PSL).
Vale ressaltar que os ataques a jornalistas partem, principalmente, dos apoiadores de Bolsonaro, que vêem em seu candidato a legitimação do ódio e da intolerância ao diferente. É o capitão reformado também o político que mais acionou o Judiciário este ano para silenciar a oposição. Ao todo, são 23 ações movidas por ele para tentar retirar de circulação notícias negativas e posts críticos. Uma das ações é contra o jornal Folha de São Paulo, que denunciou que um grupo de empresários – entre eles Luciano Hang, dono da Havan – está contratanto empresas para disparar fake news contra o PT para a campanha de Jair Bolsonaro (PSL). Segundo a reportagem, os contratos chegam a R$ 12 milhões e fomentaram uma grande campanha de ódio contra o PT.
Outra prática de censura que também pode ser notada nas ações do candidato é a ausência aos debates propostos por veículos diversos e a concessão de entrevista apenas a jornalistas escolhidos por ele. Na terça (23), ao ser entrevistado pela Rádio Guaíba, Bolsonaro exigiu que as perguntas fossem feitas apenas pelo âncora do programa. Já os demais comunicadores da programação deveriam ficar calados. Não suportando tal situação, o jornalista Juremir Machado pediu demissão. “Achei humilhante e, por isso, estou saindo do programa. Foi um prazer trabalhar aqui por 10 anos”, disse ao vivo o profissional.
Na avaliação do secretário-geral da CUT Brasília, Rodrigo Rodrigues, o momento é critico e exige, mais que nunca, resistência. “Não podemos deixar que nos calem. Não podemos ser intimidados por quem defende a censura, a expulsão do país daqueles que pensam diferente. Vivemos em um país democrático e temos que fazer valer nossa democracia”, disse.
A coordenadora-executiva do FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação) e do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Bia Barbosa, lembra que os únicos veículos de comunicação que não estão sendo atacados por Bolsonaro são justamente os que vêm exercendo ilegalmente o uso de concessões de rádio e televisão para favorecer deliberadamente o presidenciável.
“O FNDC e o Intervozes protocolaram semana passada uma representação no Ministério Público Eleitoral contra a Record e a Bandeirantes e contra uma concessionária do SBT no Pará, por campanha aberta em favor do candidato Jair Bolsonaro, já que a lei eleitoral impede que os concessionários de serviço público de radiodifusão exerçam favorecimento no processo eleitoral”, disse Bia Barbosa.
Segundo ela, “a comunicação alternativa, comunitária, popular, sindical, tem sido central para disseminar a contra narrativa de tudo isso que está acontecendo”. “Sem dúvida, a gente precisaria ter um sistema de comunicação público muito mais fortalecido para frente a esse tipo de problema.”
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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

SÃO TANTAS HISTÓRIAS

Hoje, 29 de outubro que se comemora o Dia Nacional do Livro, fez-me lembrar de uma história da escritora cearense, Rachel de Queiroz, relatada em sua autobiografia Tantos Anos, escrita por Rachel e sua irmã caçula, Maria Luiza de Queiroz, em 1998.
Rachel de Queiroz, a pioneira cearense – primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, 1977 – conhecida pelas belas histórias contadas em suas obras, o carinho que tinha pelas palavras, seja nas crônicas, nas peças de teatro ou nos romances, ela era uma mulher à frente do seu tempo. Até na politica Rachel de Queiroz enveredou e teve uma vida intensa.
A consagrada carreira de escritora e jornalista, parte dos brasileiros já conhece, mas, na política é desconhecida pela maioria da população brasileira. Rachel se tornou membro do Partido Comunista ao lado de amigos de sua geração, uma turma politizada e ‘comunizada”, como relatou ela na autobiografia Tantos Anos, de 1998. Foi presa duas vezes.
Em 1931, após passar dois meses no Rio de Janeiro – tinha ido receber o Prêmio Graça Aranha, dado a O Quinze – Rachel volta ao Ceará, com credenciais do Partido Comunista, já politizada e com a missão de promover e reorganizar o Bloco Operário e Camponês, movimento político o qual ela tinha participado.
Rachel passou a fazer parte do Partido Comunista, mesmo sem ter feito uma ficha, assinado alguma ata. Aliás, não se podia deixar nenhum rastro de papéis, livros ou qualquer tipo de documento, a polícia era brutal e se pegasse algum vestígio, levava todos para a cadeia: às pessoas e os papéis. Com a chegada de Getúlio Vargas ao Rio, a polícia ficou mais feroz.
Em 1937, com a decretação do Estado Novo de Getúlio Vargas, os livros de Rachel de Queiroz foram proibidos e, num fato marcante, várias de suas obras acabaram queimadas em praça pública em Salvador (BA), junto a livros de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, todos classificados de subversivos.
O desligamento do Partido Comunista aconteceu após ela ver censurado pelo próprio Partido o romance João Miguel. No romance João Miguel, ‘campesino’ bêbado, matava outro ‘campesino’. O aviso: só permitiria a publicação da obra, se Rachel fizesse as modificações apontadas pelo presidente do Partido Comunista. Segundo o Partido, a trama era carregada de preconceitos contra a classe operária.
Jamais se curvou as imposições feitas a sua obra, Rachel de Queiroz não aceitou as tais modificações exigidas pelo Partido Comunista, pegou o original que tinha datilografado e saiu em disparada, como relatado por ela no capítulo O Rompimento, da autobiografia Tantos Anos.
Em sua obra Caminho de Pedras (1937), Rachel trata desse momento político que viveu no Partido Comunista, porque fazer política na década de 20, ser comunista era muito perigoso. A ideia de comunismo era distorcida e alguém que ousasse se apresentar como comunista pagaria um preço alto, até com a própria vida.
Rachel de Queiroz faleceu dormindo em sua rede, em sua casa no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003.
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domingo, 28 de outubro de 2018

A IMPORTÂNCIA DO VOTO

Artigo de Rachel de Queiroz
O artigo "Votar" de Rachel de Queiroz foi publicado na revista O Cruzeiro, em 11 de Janeiro de 1947, com o objetivo de alertar os eleitores de então, quanto a importância do voto, continua contemporâneo.
Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato. No entanto, talvez não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal: governo do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar representa o ato de FAZER O GOVERNO.
Pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.
Escolhem-se pelo voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.
Escolhemos igualmente pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aqueles que irão estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses "cobradores". Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso.
E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também se escolhem aqueles que vão "fabricar" o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos.
Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.
Não preciso explicar muito este capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.
Escolhem-se nas eleições aqueles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de todo o interesse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de todas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias.
E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fez um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado.
Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para eles comandarem - e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fossem.
Entregamos a esses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra - e a flor da nossa mocidade, a eles presa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.
Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.
Porque, afinal, a mulher quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o governo, quando é ruim, ele é que nos dá a surra, ele é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.
E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.
Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem medo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno".
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A ERA DA BESTIALIDADE

Da Folha de S.Paulo

Alguém falou, com razão, que o discurso de Jair Bolsonaro transmitido ao vivo para seus seguidores na avenida Paulista, no último domingo, é uma versão atualizada do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o bordão ufanista criado no período mais sinistro da ditadura a fim de promover o regime e esconder seus crimes. É muito provável que o próprio capitão-candidato se orgulhe da comparação. Recolho algumas frases dessa peça histórica:

“Nós somos a maioria.”

“Nós somos o Brasil de verdade.”

“A faxina agora será muito mais ampla” (se comparada as que foram feitas pela ditadura e pelo impeachment de Dilma).

“Esses marginais vermelhos serão banidos da nossa pátria.”

“Você vai apodrecer na cadeia” (a “seu Lula da Silva”, como ele se refere ao ex-presidente).

“O Haddad vai chegar aí também. Mas não será pra visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao teu lado.”

“Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil.”

“Vocês, petralhada, verão a polícia civil e militar com retaguarda jurídica para fazer valer a lei no lombo de vocês.”

“Bandidos do MST, bandidos do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba.”

“Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S. Paulo. Nós ganharemos essa guerra”


Limpeza, faxina, marginais, bandidos, petralhada, cachaceiro, lombo, apodrecer na cadeia – o vocabulário de Jair Bolsonaro espelha de modo transparente suas intenções e sua personalidade. Ele fala a língua da tortura, a língua do extermínio, a língua da porrada. Exagero se disser que a palavra “lombo” nos remete aos suplícios contra os negros na época da escravidão?

Fiz questão de apresentar um pot-pourri desse discurso porque seu alcance foi de certa forma menosprezado. Em parte, isso ocorreu porque, no livre mercado das atrocidades em curso, no último final de semana Bolsonaro perdeu a concorrência para o filho Eduardo – o deputado federal mais votado do país –, que numa palestra falou que bastaria para fechar o Supremo “um soldado e um cabo”. Gravado meses atrás, o vídeo veio a público quase ao mesmo tempo em que seu pai saciava os instintos mais primitivos das pessoas de bem em festa na Paulista.

Se tudo ocorrer conforme o previsto, daqui a quatro dias o homem cujo ídolo é o torturador Brilhante Ustra estará eleito. A partir de 2019, se tornará a autoridade máxima da República. Será o comandante supremo das Forças Armadas, o novo chefe da Polícia Federal. Devemos esperar uma conversão súbita da bestialidade em sabedoria? Devemos acreditar que depois da posse seu extremismo cederá terreno à moderação? Que o terrorismo retórico e as recorrentes ameaças à imprensa, às instituições e à democracia são só arroubos de candidato? Não será mais realista supor que as palavras – parte delas, pelo menos – irão se materializar em ações? Não é isso que as pessoas vestidas de verde e amarelo estão pedindo quando gritam “mito, mito”? As evidências recomendam que não se deve subestimar a riqueza escondida no subsolo da alma do brasileiro. Bolsonaro representa o desrecalque do pior de nós como nação.

Ele será eleito sem fazer nenhuma concessão, nenhum movimento em direção ao centro. Pelo contrário, está onde sempre esteve, muito à vontade na extrema direita, representante genuíno do obscurantismo raiz. Não participará de nenhum debate, só concedeu e concederá as entrevistas que bem entender, nas condições que ele mesmo estabelece. São, invariavelmente, fake interviews. Quase sempre, Bolsonaro discorre em detalhes sobre a bolsinha que armazena seu cocô. É uma fixação.

A facada o liberou de fazer qualquer aceno à civilização. Liberou também as falanges que o circundam a partir antes mesmo da eleição da retórica para a prática. Afinal, “a vítima foi o nosso capitão”, “a violência não partiu de nós”.

No dia seguinte ao atentado de Juiz de Fora, um amigo manifestou seu temor de que o país mergulhasse numa espiral ensandecida de vinganças, com guerra campal, violência descontrolada, mortes em série. No primeiro momento isso não aconteceu, pelo menos não dessa forma. Assim que se definiu que o adversário a abater seria Fernando Haddad, no entanto, a truculência logo recrudesceu.

Houve o assassinato – tão simbólico – de Moa do Katendê, na Bahia, e começaram a pipocar pelo país, na internet e nas ruas, as intimidações, as agressões físicas, os espancamentos, as ameaças de morte. Negros, gays, travestis, nordestinos, petistas, portadoras do adesivo #elenão, artistas, intelectuais, ativistas dos direitos humanos – o espectro de pessoas insultadas, agredidas ou aterrorizadas é imenso. Ele inclui, como se sabe, jornalistas.

Patrícia Campos Mello, da Folha, se tornou alvo preferencial desses grupos depois da reportagem sobre a confecção e distribuição em massa de notícias falsas, via WhatsApp, financiadas por empresários apoiadores de Bolsonaro. Recebeu telefonemas anônimos intimidadores, teve seu WhatsApp invadido, se viu obrigada a desmarcar um compromisso profissional do qual seria moderadora depois que grupos bolsonaristas convocaram sua militância pelas redes sociais para constrangê-la.

Ela não é a única. O diretor executivo do Datafolha, Mauro Paulino, também foi ameaçado de morte. Eis o teor de uma mensagem que lhe foi endereçada na semana passada:

“Discutir e pesquisar democracia, tortura e etc nessa semana é muita putaria sua seu filho da puta. Merece uma navalha na garganta! Comunista ordinário e sem vergonha!!! Te dar tiro é desperdício! Você não vale a bala! Mas só esperar! Bolsonaro vai te foder tanto quanto merece!

VAGABUNDO!

SUJO!

COVARDE E FACCIOSO!

Eu teria um orgasmo se te desse um belo soco na cara!”

A Polícia Federal, ao que consta, está investigando o caso. É desse tipo de coisas que estamos falando. Está se esboçando com nitidez no país uma espécie de novo CCC, o Comando de Caça aos Comunistas que agiu na ditadura.

É óbvio que num ambiente como esse o exercício do jornalismo independente está ameaçado. É preciso, ainda assim, evitar a tentação da  estridência – uma reportagem apurada e escrita com zelo técnico e sem paixão vale mais do que as reações exaltadas. Mas também é preciso ter discernimento e coragem para chamar as coisas pelo nome.

A Folha, por exemplo, deveria fazer circular um Erramos pela Redação: “Ao contrário do que dissemos outro dia, Bolsonaro é, sim, de extrema-direita. Ele nos obrigou a reconhecer isso. Antes tarde do que nunca. Foi mal.” O secretário de Redação Vinicius Mota, autor do memorando interno que proíbe os profissionais da casa a identificar o capitão no extremo do espectro político (ele seria apenas “de direita”), prestaria um serviço ao jornalismo se adotasse para si a autocrítica que, com carradas de razão, cobra do PT.

Mas a Folha, a despeito dessa que é, mais do que um erro conceitual, uma cegueira histórica, continua sendo o jornal mais arejado e relevante do país. Isso se deve ao legado de Otavio Frias Filho. Está encarnado na atuação da ombudsman, se manifesta na publicação de um texto como o de Nuno Ramos (na seção Tendências/Debates do último dia 23), está vivo quando Marcelo Coelho escreve uma coluna questionando a posição editorial do jornal.

“Nunca tivemos um defensor explícito da tortura como candidato – e disposto a cumprir a promessa. Será romper com o apartidarismo dizer simplesmente ‘ele não’? E o que significa dizer ‘ele não e o outro também não’? Será que significa ‘tortura pode ser?’”, perguntou Coelho na Ilustrada do último dia 17. Está claro que ele reagia, sem que precisasse dizê-lo explicitamente, ao editorial publicado na primeira página da Folha em 29 de setembro, uma semana antes do primeiro turno.

Intitulado “A hora do compromisso”, o editorial se esforçava para manter uma posição de equidistância entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, cobrando de ambos “manifestações de submissão ao enquadramento democrático”, como se representassem ameaças equivalentes ao estado de direito. O texto, que já nasceu torcido, envelheceu rápido e mal. Não foram necessários nem trinta dias para que caísse numa espécie de ridículo – o exercício algo escolar e formalista do apartidarismo ali vocalizado foi triturado pela escalada da violência nas últimas semanas, culminando com as palavras de inspiração claramente fascista – chamemos as coisas pelo nome – proferidas no último domingo pelo provável futuro presidente do Brasil.

Dizer com todas as letras que ele representa um retrocesso intolerável não significa condescender com os erros e os crimes praticados pelo PT. Para que isso ocorra é preciso desviar um pouco os olhos dos manuais e observar a realidade a fim de ter mais clareza do que está em jogo. De preferência antes que a bestialidade em gestação se transforme no nosso novo normal, como aliás não cansa de repetir a imprensa estrangeira, estupefata com o que estamos conseguindo fazer de nós mesmos.

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Fernando de Barros e Silva é diretor de redação da piauí desde janeiro de 2012 e autor de Chico Buarque (2004), da PubliFolha
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sábado, 27 de outubro de 2018

TRUMPISMO E BOLSONARISMO: SEMELHANÇAS ALARMANTES

Da ÉPOCA

Observando a trajetória política recente dos Estados Unidos e do Brasil, percebem-se semelhanças e diferenças entre os fenômenos do “trumpismo” e do “bolsonarismo”. O que mais preocupa são certas semelhanças que não parecem mera coincidência.

Nos dois casos, políticos de extrema-direita têm explorado, de maneira oportuna, para fins eleitorais, as expectativas frustradas de milhões de pessoas em situações crescentes de vulnerabilidade social e econômica. Nos EUA, o “sonho americano” está cada vez mais distante para a maioria da população, num contexto de efeitos perversos de um capitalismo cada vez mais globalizado associados a políticas neoliberais promovidas tanto por governos democratas como republicanos. Apesar de importantes avanços do governo de Barack Obama, a campanha de Hillary sofreu com a herança de políticas neoliberais como o Nafta, lançado no governo do marido, que acirraram desigualdades sociais e econômicas. Para piorar a situação, quando candidata à presidência, a ex-senadora, deu relativamente pouca atenção ao eleitorado de estados como Michigan, antigo polo da indústria automobilística que tem sofrido com o agravamento do desemprego e os baixos salários provocados pela desindustrialização. (As ligações dos Clinton com Wall Street tampouco ajudaram a combater a pecha de elite política do establishment de Washington). Nessas condições, abriu-se espaço para que um bilionário populista de direita se caracterizasse como campeão entre os trabalhadores “esquecidos” pelo partido democrata.

No Brasil, a grave crise econômica e os megaescândalos de corrupção envolvendo partidos tradicionais como o MDB, PSDB e PT revelados pela Operação Lava Jato geraram nos eleitores, inclusive nos mais pobres, uma revolta generalizada contra a classe política, o que prejudicou não apenas a candidatura de Fernando Haddad, mas também de outros políticos com perfil de centro-esquerda que no passado tiveram vínculos com o PT, como Ciro Gomes e Marina Silva. Assim como nos Estados Unidos, uma candidatura da extrema-direita no Brasil soube explorar espaços abertos pelo crescimento de desigualdades e erros cometidos por partidos tradicionais da social-democracia.

Uma tática comum entre o trumpismo e o bolsonarismo é a pregação da nostalgia de um passado idealizado que o “candidato-herói” promete trazer milagrosamente de volta. A campanha de Trump adotou como lema “Make America great again”, desconsiderando alguns detalhes da história norte-americana, como o genocídio de povos indígenas, a escravidão e os longos períodos de discriminação contra mulheres, negros e imigrantes. Por sua vez, o “mito” Bolsonaro revela uma nostalgia dos anos de chumbo, inclusive das práticas de tortura que marcaram a ditadura militar no Brasil.

Um pilar das estratégias do trumpismo e do bolsonarismo é o incentivo ao medo, à raiva e ao ódio, com apologia à violência e a escolha de indivíduos e grupos minoritários para transformá-los em inimigos, que passam a ser culpados por todo mal que aflige a sociedade. Para o trumpismo, os alvos prediletos têm sido, entre outros, populações de novos imigrantes — caracterizando mexicanos como “estupradores” e mulçumanos como “terroristas” —, negros e, claro, adversários democratas, especialmente lideranças como Hillary Clinton e Barack Obama. (Enquanto isso, Trump surfa uma onda econômica positiva, iniciada no governo Obama, ficando com todo crédito para si). Para o bolsonarismo, a extensa lista de inimigos da nação inclui, além de petistas e “comunistas”, os povos indígenas, quilombolas, movimentos LGBT, ambientalistas, movimentos sociais como o MST, defensores dos direitos humanos, instituições como Ibama, ICMBio, “ativistas” em geral e por aí vai. Tanto no trumpismo como no bolsonarismo destacam-se também comportamentos sexistas, propagando desrespeito e violência contra mulheres.

Outra semelhança marcante entre os dois é o antagonismo dirigido a veículos da grande imprensa que assumem posturas independentes ( CNN , The New York Times , Folha de S.Paulo etc.). Acusações raivosas de fake news aparecem quando notícias veiculadas revelam verdades inconvenientes, contrariando seus interesses político-eleitorais. Enquanto isso, informações distorcidas e falsas, apelando para o medo, o preconceito e a raiva contra adversários, são disseminadas em massa via mídias sociais.

Um resultado direto dos ataques à imprensa e da incitação ao ódio contra “inimigos” é a escalada da violência que rapidamente foge do controle, conforme demonstrado pela violência na marcha de neonazistas no ano passado em Charlottesville, no estado de Virgínia, nos EUA, e, nesta semana, pelo envio por um terrorista doméstico de uma série de cartas-bomba aos inimigos prediletos de Trump: CNN, as famílias Clinton e Obama, o ex-vice-presidente Joe Biden, a deputada federal democrata Maxine Waters, o ator Robert De Niro e o bilionário investidor e filantropo George Soros, entre outros.

No Brasil, já começaram a aparecer atos graves de violência praticados por correligionários de Bolsonaro, como a morte do mestre capoeira Moa do Katendê, assassinado a facadas por um partidário do capitão reformado. Enquanto isso, surgem ameaças à imprensa brasileira, como no caso da Folha de S. Paulo após a publicação de matéria sobre a contratação milionária, por empresários ligados ao bolsonarismo, de serviços para a divulgação em massa, via aplicativo WhatsApp, de notícias falsas sobre a candidatura de Haddad — o que resultou num pedido de proteção policial para seus jornalistas.

Outra semelhança entre os dois é flerte com de igrejas evangélicas conservadoras com discursos moralistas sobre temas como a proibição do aborto e do casamento gay. Ambos acenam com vantagens econômicas para as igrejas e seus líderes (quase sempre homens brancos).

Muitas das táticas adotadas pelo trumpismo e pelo bolsonarismo — que parecem inspiradas no “playbook” de Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista entre 1933 e 1945 — ficam mais compreensíveis quando se consideram os interesses econômicos com os quais mantêm fortes vínculos. No caso de Trump, destaca-se a influência das indústrias do petróleo e do carvão. No caso de Bolsonaro, fica evidente a forte influência da bancada ruralista. Nos dois casos, trata-se de interesses imediatistas de grupos poderosos, pautados na apropriação privada de territórios, tipicamente bens públicos, para fins de exploração de seus recursos naturais, desconsiderando danos socioambientais que recaem sobre as populações locais (como povos indígenas, quilombolas e agricultores familiares) e a sociedade em geral.

Os marqueteiros de Trump e Bolsonaro têm investido muito na criação da imagem de um político estadista “novo” e diferente. Isso contrasta com os modelos ultrapassados de desenvolvimento promovidos na prática, pautados na exploração predatória de recursos naturais, sem inovação tecnológica e de baixo valor agregado, a exemplo da exportação de commodities como a soja. Desconsideram-se os desafios colocados pelas mudanças climáticas, pelos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para 2030, assim como as oportunidades que o Brasil possui — com sua enorme diversidade cultural e biológica e seu potencial criativo — de gerar renda com empregos de qualidade, associadas a uma nova economia do século XXI, pautada na inovação tecnológica, no respeito à diversidade cultural e na sustentabilidade ambiental.

Quando Trump conseguiu levar a eleição presidencial dos EUA em 2016 (perdendo para Hillary Clinton no voto popular, mas ganhando por pouco no arcaico colégio eleitoral), muitos questionaram até que ponto a retórica de extrema-direita da campanha seria colocada em prática. Alguns apostaram que, uma vez empossado, Trump poderia adotar uma espécie de pragmatismo moderado. O que tem acontecido ao longo dos últimos dois anos é exatamente o contrário. Verifica-se, na prática, um ataque generalizado e sistemático do trumpismo a instituições democráticas, inclusive programas sociais de seguridade social, saúde e educação pública. O tratamento de imigrantes (inclusive brasileiros), além das práticas de demonização, traz requintes de crueldade, como no caso da detenção e separação de crianças pequenas de seus pais.

Sem pudor, o governo Trump investe na destruição do programa de energias renováveis de baixo carbono da era Obama, enquanto propõe incentivos à indústria de carvão e petróleo, sem um mínimo de cuidados ambientais. Além disso, tem procurado desmontar sistematicamente políticas de proteção da qualidade da água e do ar, conquistas históricas que datam dos anos 70. O governo Trump está determinado a reduzir, o máximo possível, áreas de patrimônio natural e proteção ambiental, como o Monumento Nacional Bear Ears no estado de Utah — criado por Obama e reduzido em 85% —, para permitir a exploração do petróleo e do “fracking”. Seu indicado para presidir a Agência Federal de Proteção Ambiental (EPA) tomou posse com a missão de inviabilizar seu funcionamento. Para completar, Trump anunciou a intenção de abandonar o Acordo de Paris, o que constitui um risco de dimensões planetárias.

Sem escrúpulos, Trump tem utilizado a máquina do Estado para favorecer interesses privados, chegando a comprometer a política externa em casos como a Rússia e a Arábia Saudita, onde possui negócios imobiliários. Enquanto isso, com pleno aval do presidente, o partido republicano tem intensificado os esforços para impedir o direito a voto, sobretudo entre pobres e negros, e para redesenhar distritos de votação para seu autofavorecimento (prática conhecida como “gerrymandering”) como forma de se consolidar no poder.

No entanto, o que parece a face mais perversa do narcisista Trump é a incitação ao preconceito, ao ódio e à violência, sempre seguindo uma lógica de ganhos com sua “base eleitoral”.

Felizmente, existem importantes exemplos de resistência de instituições democráticas, da ação da cidadania (com forte protagonismo das mulheres) e de governos estaduais e municipais nos EUA. Espera-se uma reviravolta no controle do Congresso pelos democratas a partir das eleições de 6 de novembro. No entanto, persiste uma sensação de fragilidade da democracia, que precisa de vigilância a toda hora.

Voltando ao bolsonarismo, tenho ouvido algumas hipóteses e muitas dúvidas sobre o que pode vir a acontecer caso seja confirmado o resultado mais provável do segundo turno, conforme as pesquisas de opinião pública. Até que ponto Bolsonaro vai respeitar a Constituição Federal e as instituições democráticas? Vai criminalizar movimentos sociais e ambientalistas, ao ponto de tratá-los como terroristas? Até que ponto vai continuar incitando o preconceito e o ódio contra negros, mulheres, indígenas e outros “inimigos”? Vão se concretizar os planos de descaracterizar a política ambiental, inclusive a fusão dos ministérios do meio ambiente e da agricultura, sob o comando da bancada ruralista? Vai tentar tirar o Brasil do Acordo de Paris, seguindo o exemplo de Trump, o que seria um tremendo tiro no pé para a economia e o prestígio internacional do país?

Mirando no caso de Trump, que Bolsonaro considera um “excelente presidente”, é difícil enxergar motivos para otimismo em relação a essas perguntas, a não ser a capacidade de resistência do povo brasileiro. Melhor é não cair do precipício. Que a experiência do trumpismo nos EUA possa servir de alerta aos brasileiros para os perigos que sua jovem democracia corre, para que ela receba os cuidados que merece e que o Brasil possa trilhar seu próprio caminho, com sabedoria, solidariedade e alegria, antes que seja tarde.

Geógrafo, Brent Millikan é diretor da International Rivers - Brasil
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A IMPORTÂNCIA DO VOTO

Artigo de Rachel de Queiroz
O artigo "Votar" de Rachel de Queiroz foi publicado na revista O Cruzeiro, em 11 de Janeiro de 1947, com o objetivo de alertar os eleitores de então, quanto a importância do voto, continua contemporâneo.
Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato. No entanto, talvez não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal: governo do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar representa o ato de FAZER O GOVERNO.
Pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.
Escolhem-se pelo voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.
Escolhemos igualmente pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aqueles que irão estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses "cobradores". Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso.
E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também se escolhem aqueles que vão "fabricar" o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos.
Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.
Não preciso explicar muito este capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.
Escolhem-se nas eleições aqueles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de todo o interesse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de todas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias.
E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fez um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado.
Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para eles comandarem - e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fossem.
Entregamos a esses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra - e a flor da nossa mocidade, a eles presa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.
Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.
Porque, afinal, a mulher quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o governo, quando é ruim, ele é que nos dá a surra, ele é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.
E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.
Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem medo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno".
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A HORA DE REPACTUAR O BRASIL

Editorial O POVO

A eleição que chega a suas 48 horas derradeiras não é como qualquer outra. Em nossa curta vida pública desde a redemocratização, o Brasil jamais se viu cindido como agora.

Grave, o momento requer de todos um gesto enfático de compromisso com os princípios mais básicos do nosso regime democrático, tais como o respeito a minorias e à liberdade de expressão, dois faróis da "Constituição Cidadã" que seguem como instrumento crucial contra o obscurantismo.

A par disso, cumpre afastar de imediato qualquer ameaça ao conjunto de valores que tem guiado o amadurecimento do Brasil nos últimos 30 anos. Desde Fernando Collor, em 1991, até Dilma Rousseff, em 2016, o País vem trilhando um acidentado caminho de aprendizado coletivo no curso do qual coleciona mais acertos que erros.

Quem quer que vença o pleito neste domingo terá como desafio primordial esboçar um gesto de distensão no ambiente convulsionado de agora. Ao novo presidente, seja Jair Bolsonaro (PSL), seja Fernando Haddad (PT), caberá reconduzir o País aos trilhos de uma pacificação.

Não se trata de esvaziado apelo de paz, mas de esforço concreto para que o governo que suceda ao de Michel Temer (MDB) se constitua de pessoas cuja preocupação maior seja incluir e não afastar as parcelas do eleitorado que tenham escolhido o postulante adversário.

A cizânia desmedida precisa encontrar termo a partir deste domingo, de maneira que a recomposição do tecido social se faça sem traumas. Para tanto, os sinais emitidos pelo mandatário da nação serão importantes.É hora de temperança e não de mais afronta; de integrar, não segregar.

Numa eleição já excessivamente marcada por disseminação de notícias fraudulentas, violência física e verbal e ameaças de toda sorte, é tarefa urgente do ganhador oferecer um aceno franco e falar ao País sem o ranço da disputa acirrada de 2018.

Jornal quase centenário, O POVO reafirma seu histórico compromisso com a democracia e rechaça qualquer hipótese de aventura autoritária, renovando a sua missão inarredável não apenas de sentinela da imprensa livre, mas de voz contrária a toda tirania. Aqui, não transigimos com flertes a regimes de força. Isto não mudará depois de domingo.
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O EVANGELHO SEGUNDO BOLSONARO

Artigo de Ricardo Alcântara, O POVO

17:1 O erro da ditadura foi torturar e não matar; 17:2 Não vou lhe estuprar porque você não merece; 17:3 Se eu vir homossexuais se beijando na rua, dou porrada; 17:4 Mulheres devem ganhar menos porque engravidam; 17:5 Eu sonego tudo que for possível; 17:6 Nem para procriar ele serve mais; 17:7 O dinheiro do auxílio-moradia, eu usava para comer gente. 17:8 Eu sou favorável à tortura e o povo também; 17:9 Eu não entraria num avião pilotado por um cotista; 17:10 Através do voto não se muda nada neste país; 17:11 Só muda quando a gente terminar o serviço que a ditadura não fez; 17:12 Tem que matar pelo menos uns 30 mil; 17:13 A polícia tem que ter imunidade para atirar. Se morrerem inocentes, que morra; 17:14 Tive quatro filhos homens e na quinta dei uma fraquejada: nasceu uma mulher; 17:15 Fui o único deputado que votou contra direitos trabalhistas para empregadas domésticas; 17:16 Tem mulher que é competente, admito; 17:17 Não aceito outro resultado que não a minha eleição; 17:18 O trabalhador vai ter que escolher: o emprego ou os direitos; 17:19 Gostar de homossexual, ninguém gosta. A gente suporta; 17:20 O Psol é coisa de viado: 17:21 Eu sou favorável à pena de morte; 17:22 Índio que vier falar em reservas que vá comer capim; 17:23 Tem que arrebentar o cara até entregar todo mundo; 17:24 Meninos adotados por gays serão homossexuais; 17:25 Meus filhos foram bem educados e não correm o risco de casar com uma negra; 17:26 Sou preconceituoso com muito orgulho; 17:27 Eu seria incapaz de amar um filho homossexual. Preferia que morresse num acidente; 17:28 Sou capitão do Exército e fui treinado para matar; 17:29 Quem procura osso é cachorro; 17:30 Eles obedecem a nossa lei ou serão todos banidos do nosso país; 17:31 Lula vai apodrecer na cadeia; 17:32 A gente tem que tirar o governo do cangote do empresário; 17:33 Eu sou cristão!

Mas, no evangelho verdadeiro, está escrito (reproduzo como lembro) que, tendo naquele dia lhe perguntado sobre a tradição de jejuar nos dias reservados, Jesus falou e disse: "O mal é o que sai da boca do homem" e, aos seus discípulos, em outro momento os alertou: "A boca fala do que o coração está cheio".

Ricardo Alcântara
Escritor e publicitário
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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

RELEMBRANDO HERZOG

Vladimir acordou mais cedo que de costume no sábado, 25 de outubro de 1975. Fez a barba, tomou banho e se despediu da mulher Clarice, ainda na cama, com um beijo. Ela quis se levantar e preparar o café, ele disse para não se preocupar, que no caminho pararia em um bar e tomaria café com leite. Vlado chegou ao número 1 030 da rua Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo, perto das 9h. No prédio de muros altos guardados por sentinelas armados, onde funcionava o Destacamento de Operações Internas - Comando Operacional de Informações do 2º Exército, o DOI-CODI, Vlado entrou pela porta da frente. Disse ao atendente seu nome completo, sua profissão e o número de seu RG. Informou que na noite anterior, por volta das 21h30, dois homens que se identificaram como agentes de segurança do Exército o tinham procurado na TV Cultura, onde trabalhava, e que, para não ser detido, se comprometera a se apresentar ali no dia seguinte. E assim o fizera. Depois disso se pôs a esperar, sentado em um dos bancos de madeira que margeavam o largo corredor que levava a uma porta fechada de aço e vidro. Minutos depois, quando foi levado para interrogatório, ele permanecia tranquilo.

O Brasil de 1975 não parecia ser um lugar em que um jornalista com emprego fixo e endereço conhecido, casado e pai de dois filhos, devesse se preocupar com a própria segurança. Mas era. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumira a presidência com a promessa de promover a abertura do regime ditatorial. A palavra usada na época era “distensão” e significava aliviar a censura, investigar denúncias de tortura e aumentar a participação da sociedade civil na política. A ditadura light de Geisel, porém, encontrou duas contrariedades. Primeiro a derrota do partido do governo, a Arena, nas eleições para a Câmara e o Senado. Em novembro, o oposicionista MDB fizera 16 dos 22 senadores e 160 das 364 cadeiras da Câmara. Depois, o impacto da crise do petróleo, que colocava fim aos anos do milagre, quando a economia brasileira cresceu mais de 5% ao ano.

Nos bastidores da política dominada pelos quartéis, esse cenário despertou o medo da chamada linha dura do regime. Gente que via qualquer oposição como subversão e que combatia qualquer subversão com violência, tortura e assassinato. Gente que se apoiava no CIE – Centro de Inteligência do Exército – e encontrava nos DOIs espalhados pelo país guarida para atividades ilegais e violentas. Gente que preferia o inferno à “distensão” e ao que ela representava. Em menor ou maior grau, essa gente viveu nos porões da ditadura e, dependendo da ocasião e do apoio oportunista de políticos e militares às suas práticas, teve menor ou maior influência sobre o governo. Foi maior entre 1969 e 1973, depois da publicação do AI-5, quando o combate ao terrorismo e focos de guerrilha os alçaram à linha de frente do regime. Foi menor em 1974, quando Geisel assumiu. Entre outubro de 1969 e dezembro de 1973, 2 mil pessoas passaram pelo DOI-CODI em São Paulo: 502 reclamaram de tortura e pelo menos 40 foram assassinadas. Em 1974, apenas uma foi presa.

Em 1975, porém, a repressão estava de volta. “Sem terroristas para caçar e com o guerrilha do Araguaia devolvida ao silêncio da floresta, o Centro de Informações do Exército avançou contra o Partido Comunista”, diz o jornalista Elio Gaspari, autor de A Ditadura Encurralada. Em 13 de janeiro o CIE invadiu a gráfica da Voz Operária, o jornal do partido, que operava na clandestinidade, num sítio no Rio de Janeiro. No dia seguinte, Elson Costa, um dos responsáveis pela gráfica e dirigente do PCB, desapareceu. Foi morto numa casa mantida pelo CIE na periferia de São Paulo, segundo testemunho do sargento Marival Chaves Dias do Canto à revista Veja, em 1992. Entre janeiro e julho, pelo menos 500 membros do partido foram identificados, 200 foram presos e pelo menos 14 morreram. Em outubro, nova onda de prisões: 61 pessoas foram detidas. A intenção era demonstrar a tese do CIE de que o PCB havia se infiltrado no MDB, na imprensa e até no governo. Essa última acusação era, inclusive, foco das desavenças entre o comandante do 2º Exército, o general Ednardo D’Avila Mello, e o governador do Estado, Paulo Egydio Martins.

Aos 38 anos, Herzog assumira, em setembro, a diretoria de jornalismo da Cultura, emissora do governo. Era militante comunista, mas não desenvolvia atividade clandestina e sua participação se limitava a ir a reuniões. Em sua direção, porém, confluíam três crises, todas regadas de ódio. “Uma era o choque da linha dura com Geisel. Outra, a caçada ao PCB. A terceira era o conflito entre o general Ednardo e o governador Paulo Egydio. A prisão de Vlado servia a todas”, diz Gaspari.

Tortura e morte
Antes de ser preso, em 17 de outubro, Paulo Markun, também jornalista da Cultura, conseguiu mandar um recado aos colegas, indicando quem seriam os próximos. Anthony de Cristo, George Duque Estrada e Rodolfo Konder foram presos antes de serem alertados. Fernando Morais conseguiu escapar. Vladimir foi avisado, mas não quis fugir.

Depois que entrou no DOI, Vlado trocou de roupa e vestiu o macacão dos presos. Ainda pela manhã, foi acareado com dois presos. Com as cabeças cobertas por capuzes de feltro preto, eles não podiam se ver. Mas um deles, Konder, reconheceu o amigo: “Empurrei a borda do pano e vi o preso que chegava. Eu o reconheci pelos sapatos: eram os mocassins pretos que Vlado usava.” Nessa hora, Vlado negou que pertencesse ao PCB e Konder e o outro preso foram retirados para um corredor, de onde ouviram os gritos de Vlado e a ordem para que fosse trazida a máquina de choques elétricos. “Os gritos duraram até o fim da manhã. Os choques eram tão violentos que faziam Vlado urrar de dor”, diz Konder. Um rádio foi ligado em alto volume para abafar os sons. Meia hora depois, por volta das 11h, Vlado foi para a sala de interrogatórios.

“Mais ou menos uma hora depois, me levaram a outra sala onde pude retirar o capuz e ver o Vlado. O interrogador, um homem de uns 35 anos, magro, musculoso, com uma tatuagem de âncora no braço, mandou que eu dissesse a ele que não adiantava resistir”, lembra Konder. Vlado estava com o capuz enfiado na cabeça, trêmulo, abatido, nervoso. Sua voz estava por um fio. “Fui obrigado a ajudá-lo a redigir uma confissão que dizia que ele tinha sido aliciado por mim para entrar no PCB e listava outras pessoas que integrariam o partido.” Konder foi levado e os gritos recomeçaram. Essa foi a última vez que Vlado foi visto e ouvido. “No meio da tarde, fez-se silêncio na carceragem”, diz George Duque Estrada que também estava preso no DOI, em relato no livro Dossiê Herzog – Prisão, Tortura e Morte, de Fernando Pacheco Jordão.

Às 22h08 a Agência Central do SNI, em Brasília, recebeu uma mensagem: “Info que hoje, dia 25 out, cerca de 15 hs, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército”. Seria o 38º suicida, o 18º a se enforcar e, de acordo com o Laudo de Encontro de Cadáver, emitido pela Polícia Técnica de São Paulo, teria feito isso com uma tira de pano. Herzog teria se amarrado pelo pescoço numa grade a 1,63 metro do chão. Sem espaço para que seu corpo pendesse, teria ficado com os pés no chão e as pernas curvadas, como mostrava a foto anexada ao laudo. Segundo comunicado do comandante do DOI, a tira de pano era a “cinta do macacão que o preso usava”. Os macacões do DOI não tinham cinto. “Suicídios desse tipo são possíveis, porém raros. No porão da ditadura, tornaram-se comuns, maioria até. O último, em São Paulo, acontecera cerca de um mês antes, na mesma cela. Dos 17 casos anteriores de suicídio por enforcamento, oito não tiveram vão livre. Em dois, os presos teriam morrido sentados”, diz Gaspari.

O morto fala
Sem notícias do marido desde a manhã, Clarice estava preocupada. Por volta das 23h bateu à sua porta um grupo de diretores e funcionários da Cultura. Entraram calados, sentaram-se na sala e disseram-lhe que as coisas se complicaram. “Mataram o Vlado!”, ela teria dito, segundo seu relato no livro Vlado, de Paulo Markun. “Eles me falaram que Vlado estava morto e que fora suicídio. Senti ódio. E uma grande impotência.”

“Eles mataram o Vlado”, disse o amigo e jornalista Fernando Pacheco Jordão, autor de Dossiê Herzog, em telefonema para Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas. Era quase 1 da manhã e Jordão ainda daria muitos telefonemas na madrugada. “Mataram o Vlado”, repetiu a dom Paulo Evaristo Arns. “Não sei se já não é hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas ruas”, respondeu o cardeal.

O jornalista Mino Carta, na época diretor da revista Veja, foi um dos primeiros a chegar à casa dos Herzog. Ele vinha de Santos, onde estivera justamente para pedir a ajuda do secretário de Segurança do Estado, Erasmo Dias, no caso das prisões dos colegas. Segundo depoimento a Paulo Markun, no livro Vlado, Mino ligou para o coronel Golbery do Couto e Silva, ministro da Casa Civil. “Vá ao Paulo Egydio”, teria dito o “feiticeiro”, como era conhecido por sua intimidade quase mágica com o poder. Golbery lhe disse, ainda, que aquilo, a morte de Vlado, era uma tentativa de golpe contra Geisel. Mino seguiu o conselho e procurou o governador Paulo Egydio, no Palácio dos Bandeirantes. Quando saiu, o governador chorava.

Desde a morte do ex-deputado Rubens Paiva, num quartel da Polícia do Exército no Rio, em 1971, era a primeira vez que morria no porão da ditadura alguém da elite, com vida profissional legal e atividade política praticamente nula. “Horas depois da morte de Herzog começou um daqueles processos em que reações individuais e desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem coordenação ou planejamento, constroem os fatos históricos”, diz Gaspari.

Mas o DOI tinha sua própria estratégia para lidar com o assunto. O corpo de Herzog foi entregue à Polícia Técnica e levado ao Instituto Médico Legal, onde chegou sem a roupa com que fora fotografado, mas com os próprios trajes. O laudo do exame de corpo de delito, assinado pelos médicos Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana, do IML, concluiu: “quadro médico legal clássico de asfixia mecânica por enforcamento”. Ainda na noite de sábado, o corpo foi enviado ao Hospital Albert Einstein. Estava tudo pronto para mais um sepultamento típico de mortes ocorridas nas dependências das Forças Armadas, durante a ditadura: rápidos e discretos.

Clarice não quis assim. Para que houvesse velório, ela marcou o enterro para a segunda. No domingo, cerca de 600 pessoas foram à cerimônia, entre eles o cardeal Arns e o senador Franco Montoro. “Era a primeira vez que um arcebispo e um senador da República velavam um morto do regime”, diz Gaspari. “Formou-se uma grande frente e, na segunda, todos estavam mobilizados pela morte de Herzog.”

No cemitério israelita do Butantã, os responsáveis pelo funeral apressaram tanto a cerimônia que dona Zora, mãe de Vlado, não chegou a tempo de se despedir do filho, viu apenas quando jogavam terra por cima do caixão. Quatro jornalistas que estavam presos no DOI-CODI foram levados até o local. Konder foi um deles: “Não deixaram a gente se trocar, me levaram com roupas sujas de urina, sangue e fezes. Foi assim que assisti ao enterro de meu amigo.”

“Senhor Deus dos Desgraçados, / Dizei-me Vós, Senhor Deus / Se é mentira, se é verdade, / Tanto horror perante os céus.” Depois de ler o trecho de Navio Negreiro, de Castro Alves, Audálio Dantas fez correr entre os presentes outro verso: “Reunião no sindicato”.

Ação e reação
“Se a tigrada quisera desmantelar o PCB, já o conseguira. Se queria outra coisa, era outra coisa que queria”, afirma Elio Gaspari. Pelo menos uma pessoa achou, assim que Vlado morreu, que era “outra coisa”: o presidente Geisel.

Ele só soube da morte de Herzog no domingo. Na segunda, em visita ao Rio, não tratou do assunto e parecia ter assimilado o golpe. Mas a linha dura queria mais. Na manhã de quarta, dia 29, o general Sylvio Frota, ministro do Exército, ligou para o ministro da Justiça, Armando Falcão. Falcão relata o telefonema em seu livro Tudo a Declarar. “O senador do Paraná, Leite Chaves, disse no Congresso que o suicídio do jornalista Vladimir Herzog não passa de ‘um crime ignominioso’. Estou reunido com o Alto-Comando e ninguém aceita o insulto. Queremos uma reparação imediata.” Era a “outra coisa que queriam”. Queriam atacar o Congresso, provocar cassações e, por tabela, jogar areia no projeto de distensão de Geisel.

Nas ruas de São Paulo, o clima era outro. Ainda na segunda-feira, cerca de 30 mil estudantes da USP, PUC e Fundação Getúlio Vargas entraram em greve. A garotada queria marchar pela cidade, mas aguardava a reunião com os jornalistas. Juntos, aprovaram a realização de um ato religioso pela memória de Vlado na sexta, dia 31. O cardeal Arns tomou a iniciativa: ofereceu a catedral da Sé e disse que estaria lá.

Na quarta-feira, Geisel mandou chamar Frota. Há duas versões parecidas para a conversa dos dois generais. Uma narrada pelo presidente ao seu secretário Heitor Ferreira e relatada por Gaspari em A Ditadura Encurralada.“Vocês escolham lá um presidente e venham me substituir”, teria dito. A outra foi narrada por Frota a Falcão e reproduzida em Tudo a Declarar: “O presidente me disse que se quisessem insistir no caso tratassem de ir arranjando outro para colocar em seu lugar”. A ameaça encostou Frota na parede. O ministro recuou.

Até o fim da semana, os dois lados temeram que o outro reagisse e fosse para a rua. Em Brasília temia-se que os universitários promovessem passeatas. Em São Paulo, o medo era de que o regime proibisse a manifestação. Geisel foi a São Paulo na quinta e se hospedou no Palácio dos Bandeirantes, onde se reuniu com os chefes militares do Estado. Para começo de conversa, perguntou ao general Ednardo sobre o Inquérito Policial Militar a respeito da morte de Herzog. Não fora instalado, porque o ministro Frota determinara que não fosse. Pois seria. Embora não se destinasse a apurar as causas da morte de Vlado, mas “as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista”, a instauração do IPM já era uma derrota para Ednardo, Frota e a turma do porão.

“À noite, o governador promoveu uma festa em homenagem a Geisel. Entre os 1500 convidados estava a bancada oposicionista, até o deputado Alberto Goldman, líder do partido na Assembléia e militante do PCB”, diz Gaspari. Goldman relata a rápida conversa que teve com o presidente em seu livro Caminhos de Luta. “Presidente, o MDB está apreensivo com o que vem acontecendo em São Paulo, quanto ao respeito dos direitos humanos”, disse o deputado. “Não pensem que eu não entendo o significado de suas presenças aqui, neste momento”, respondeu o general.

No dia seguinte, o povo estava na rua e fazia a primeira manifestação contra a ditadura após o AI-5. Um pouco antes da hora do culto, dois secretários do governador ainda procuraram o arcebispo de São Paulo e lhe pediram para cancelar o evento. “Fui informado que existiriam mais de 500 policiais na praça com ordem de atirar ao primeiro grito. Se houvesse protestos, eles metralhariam a população”, lembra dom Paulo. A estratégia dos manifestantes era chegar à praça em pequenos grupos, evitando aglomerações. Cerca de 8 mil pessoas se espalharam pelas escadarias da Sé. As que conseguiram entrar viram o cardeal, o rabino Henry Sobel e mais 20 sacerdotes, entre eles dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. “Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus para ser fonte de amor”, disse dom Paulo. “Nas minhas dores, ó Senhor, fica ao meu lado”, respondeu a audiência.

Para Elio Gaspari, naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarnar a ordem e a decência. “A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial, revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria reafirmação.”
Da AH - Aventuras na História
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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

POR QUE VOTAMOS EM HITLER

Do EL PAÍS

Ao longo da década de 1920, Adolf Hitler era pouco mais do que um ex-militar bizarro de baixo escalão, que poucas pessoas levavam a sério. Ele era conhecido principalmente por seus discursos contra minorias, políticos de esquerda, pacifistas, feministas, gays, elites progressistas, imigrantes, a mídia e a Liga das Nações, precursora das Nações Unidas. Em 1932, porém, 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler, a nova força política dominante no país. Em janeiro de 1933, ele tornou-se chefe de governo. Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?


Em primeiro lugar, os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época. A jovem democracia não trouxera os benefícios que muitos esperavam. Muitos sentiam raiva das elites tradicionais, cujas políticas tinham causado a pior crise econômica na história do país. Buscava-se um novo rosto. Um anti-político promoveria mudanças de verdade. Muitos dos eleitores de Hitler ficaram incomodados com seu radicalismo, mas os partidos estabelecidos não pareciam oferecer boas alternativas.

Em segundo lugar, Hitler sabia como usar a mídia para seus propósitos. Contrastando o discurso burocrático da maioria dos outros políticos, Hitler usava um linguajar simples, espalhava fake news, e os jornais adoravam sugerir que muito do que ele dizia era absurdo. Hitler era politicamente incorreto de propósito, o que o tornava mais autêntico aos olhos dos eleitores. Cada discurso era um espetáculo. Diferentemente dos outros políticos, ele foi recebido com aplausos de pé onde quer que fosse, empolgando as multidões. Como escreveu em seu livro "Minha Luta":

Toda propaganda deve ser apresentada em uma forma popular (...), não estar acima das cabeças dos menos intelectuais daqueles a quem é dirigida. (...) A arte da propaganda consiste precisamente em poder despertar a imaginação do público através de um apelo aos seus sentimentos.

Em terceiro lugar, muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral, e Hitler prometeu uma restauração. Pessoas religiosas, sobretudo, ficaram horrorizadas com a arte moderna e os costumes culturais progressistas que surgiram por volta de 1920, época em que as mulheres se tornavam cada vez mais independentes, e a comunidade LGBT em Berlim começava a ganhar visibilidade. Os conservadores sonhavam com restabelecer a antiga ordem. Os conselheiros de Hitler eram todos homens heterossexuais brancos. As mulheres, ele argumentou, deveriam se limitar a administrar a casa e ter filhos. Homens inseguros podiam, de vez em quando, quebrar vitrines de lojas, cujos donos eram judeus, para reafirmarem sua masculinidade.

Em quarto lugar, apesar de Hitler fazer declarações ultrajantes – como a de que judeus e gays deveriam ser mortos -, muitos pensavam que ele só queria chocar as pessoas. Muitos alemães que tinham amigos gays ou judeus votaram em Hitler, confiantes de que ele nunca implementaria suas promessas. Simplista, inexperiente e muitas vezes tão esdrúxulo, que até mesmo seus concorrentes riam dele, Hitler poderia ser controlado por conselheiros mais experientes, ou ele logo deixaria a política. Afinal, ele precisava de partidos tradicionais para governar.

Em quinto, Hitler ofereceu soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido para todos. O problema do crime, argumentava, poderia ser resolvido aplicando a pena de morte com mais frequência e aumentando as sentenças de prisão. Problemas econômicos, segundo ele, eram causados por atores externos e conspiradores comunistas. Os judeus - que representavam menos de 1% da população total - eram o bode expiatório favorito. Os alemães "verdadeiros" não deviam se culpar por nada. Tudo foi embalado em slogans fáceis de lembrar: "Alemanha acima de tudo", "Renascimento da Alemanha", "Um povo, uma nação, um líder."

Em sexto lugar, as elites logo aderiram a Hitler porque ele prometeu -- e implementou -- um atraente regime clientelista, cleptocrata, que beneficiava grupos de interesses especiais. Os industriais ganharam contratos suculentos, que os fizeram ignorar as tendências fascistas de Hitler.

Em sétimo, mesmo antes da eleição de 1932, falar contra Hitler tornou-se cada vez mais perigoso. Jovens agressivos, que apoiavam Hitler, ameaçavam os oponentes, limitando-se inicialmente ao abuso verbal, mas logo passando para a violência física. Muitos alemães que não apoiavam o regime preferiam ficar calados para evitar problemas com os nazistas.

Doze anos depois, com seis milhões de judeus exterminados e mais de 50 milhões de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial, muitos alemães que votaram em Hitler disseram a si mesmos que não tinham ideia de que ele traria tanta miséria ao mundo. “Se soubesse que ele mataria pessoas ou invadiria outros países, eu nunca teria votado nele ”, contou-me um amigo da minha família. “Mas como você pode dizer isso, considerando que Hitler falou publicamente de enforcar criminosos judeus durante a campanha?”, perguntei. “Eu achava que ele era pouco mais que um palhaço, um trapaceiro”, minha avó, cujo irmão morreu na guerra, responderia.

De fato, uma análise mais objetiva mostra que, justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha em 1932. Diferentemente do que se ouve hoje em dia, Hitler não era um gênio. Não passava de um charlatão oportunista que identificou e explorou uma profunda insegurança na sociedade alemã.

Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou anti-semitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas eram incapazes ou sem vontade de reconhecê-lo ou denunciá-lo, disseminando-se entre os alemães porque o povo estava disposto a minimizá-lo. Antes de muitos perceberem o que a maquinaria fascista do partido governista estava fazendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais.
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JAIR BOLSONARO, O PASSADO DO BRASIL ACIMA DE TUDO

Da ÉPOCA

Em um ponto da barafunda humana e política a que chegamos os seguidores de Jair Bolsonaro têm razão: ele sempre foi um homem coerente. Eu diria o mesmo: ele sempre foi rigorosamente coerente – embora nem sempre tenha se expressado com clareza, dadas as dificuldades com a linguagem que o acometem em momentos de pressão. Ao longo de sua vida política, o deputado de extrema direita, ex-tenente do Exército e capitão reformado, reafirmou com firmeza uma postura acintosa de confronto às leis e direitos civis existentes no país e aos pactos humanistas originais e fundamentais da democracia liberal constituída no Brasil em 1988. A própria existência do Estado Democrático de Direito simplesmente não o agrada, tendo-o desprezado abertamente, em público e em qualquer lugar do mundo.

Posicionando-se entre cínico, niilista, sádico, adolescente ou fascista, o deputado autoritário desdenhou permanentemente do mundo político brasileiro, que o alimentava com grandes privilégios. Pregava um modo de vida política livre de compromissos sociais, éticos ou institucionais, em um mundo próprio de opiniões extralegais, para o júbilo do extrato mais cínico, sádico, niilista, fascista ou adolescente dos cidadãos brasileiros. Sou contra os direitos humanos sim; sou a favor da tortura sim; desprezo homossexuais e quero que eles sejam discriminados sim; este país não tem solução por meio de uma ordem democrática não; eu fecharia o Congresso no dia seguinte que chegar ao poder sim; mataria trinta mil pessoas de esquerda, a começar por Fernando Henrique Cardoso sim. Estas são algumas das mais fantásticas, violentas e antidemocráticas afirmações do passional e destemperado deputado. Em um horizonte mais amplo dos sentidos, contrariam até as normas humanistas ou cristãs.

Bolsonaro, neste sentido, sempre esteve fora da lei. Sua vida política imaginária correu por fora do pacto social que nos constitui e que aceitamos. Sua paixão política o fazia questionar as raízes do contrato social estabelecido, desconsiderando-o desde sempre. Mais recentemente, começou a tentar se preservar, com grandes dificuldades, do impacto desorganizador de suas próprias opiniões. Elas o punham em risco, embora atraíssem fortemente o público brasileiro maniqueísta e agressivo como ele. Já em campanha para a Presidência da República, um Jair Bolsonaro “controlado” desdenhou publicamente do valor do trabalho das mulheres, das próprias mulheres, dos direitos de indígenas e quilombolas, dos próprios índios e quilombolas, da história da escravidão negra no Brasil, dos próprios negros. Em escandalosa agressão ao Estado de direito, falou muito feliz do alto de um palanque em metralhar seus adversários políticos. Não há dúvida que, em um país mais sério, de tradições democráticas um pouco mais sólidas e exigentes do que as nossas, todas essas posições teriam graves consequências políticas e legais contra o político antissocial. Qualquer coisa pode ser dita do candidato de tendências ditatoriais e de promoção explícita da cultura da violência no Brasil atual – menos que ele engane alguém a respeito de quem verdadeiramente é.

Seus seguidores, quando confrontados com a violência cultural e política de clara ilegalidade do deputado candidato, insistem – meio cínicos, meio niilistas, meio mentirosos, meio adolescentes – em dizer que ele não é bem aquilo o que diz ser. Ou afirmam que o que ele diz não é exatamente o que ele diz. Ou afirmam que é o ouvinte que o ouve erradamente. Tentam nos dizer que eles próprios não são assim tão violentos e tão belicosos quanto o político no limite do acordo civilizatório que desejam levar ao poder.

A estrutura de pensamento perversa, quando ativada, precisa aparecer no mundo como não sendo o que ela de fato é. Muitos intelectuais pouco preocupados com a agonia da democracia brasileira – e com a vida das futuras vítimas reais do pensamento do deputado e de seus seguidores mais fanáticos – insistem em dizer que o seu autoritarismo ilimitado, a sua clara transformação da vida política em violência sobre adversários e o seu desprezo constante pela ordem legal existente não representariam um movimento neofascista no Brasil. Refutam proximidade com o fascismo de Mussolini dos anos de 1920 na Itália, em um curto circuito do sentido da verdade típico do choque cultural fascista. Pela primeira vez em nossa história, todos, mesmo os que votam no político, preferiam de algum modo que ele esteja mentindo sobre seu modo de ver a vida, o país e o mundo.
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OMISSÃO DE GASTOS

Da Folha de S.Paulo

O presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) não informou até o momento à Justiça Eleitoral, de forma discriminada, diversos gastos de sua campanha, incluindo os detalhes de viagens que fez a pelo menos 16 cidades de 7 estados, onde ele, sua comitiva e aliados participaram de carreatas e comícios em caminhões de som.

A poucos dias do segundo turno, o candidato declarou pagamento a apenas seis pessoas: o coordenador financeiro, dois auxiliares, dois seguranças e a intérprete de libras.

Segundo dados da prestação de contas parcial ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Bolsonaro informou, até agora, custo de R$ 955 mil na campanha do primeiro turno, excluídas doações a outros candidatos.

Por lei, toda a movimentação financeira dos candidatos feita até 8 de setembro —o grosso da campanha de Bolsonaro ocorreu antes disso, já que ele sofreu um ataque a faca no dia 6 de setembro— deve ser informada de forma discriminada à Justiça Eleitoral, para divulgação na internet.

A declaração de gastos entregue pelo candidato do PSL é bem inferior ao da maior parte das outras campanhas presidenciais.

As contas do capitão reformado somam 27 itens de gasto (R$ 843 mil) até o dia em que sofreu o atentado.

Os maiores valores são R$ 285 mil para uma agência de viagens, locação de veículos e hospedagem, a Pontestur, R$ 135 mil para a Mosqueteiro Filmes, empresa de produção dos programas de TV e rádio, e R$ 115 mil para a AM4 Brasil Inteligência Digital, de serviços da internet.

Além da ausência do detalhamento do custo das viagens, não há informação sobre aquisição de suprimento para os dois comitês de campanha cedidos pelo PSL.

A Folha enviou perguntas detalhadas aos principais advogados responsáveis pela campanha de Bolsonaro e à assessoria do candidato no início da tarde desta segunda-feira (22). Voltou a insistir nesta terça-feira (23). Não houve resposta.

A campanha de João Amoêdo (Novo), por exemplo, também com tempo de propaganda similar, listou 200 itens até 6 de setembro, em um total de R$ 2 milhões de gastos —incluindo compra de suprimentos como papel higiênico, toalha, locação de máquina de café expresso, lâmpadas e plástico bolha.

Adversário de Bolsonaro neste segundo turno, a campanha do PT —com Lula, depois substituído por Fernando Haddad— listou 311 itens de gasto, com R$ 19,1 milhões de custo declarado no mesmo período.

Entre o começo oficial da campanha, em 16 de agosto, e o atentado que o levou ao hospital, a Folha identificou nas viagens de Bolsonaro um padrão: carreatas, comícios, usos de caminhões de som e entrevistas coletivas em hotéis em praticamente todas as cidades que visitou.

Não há, porém, discriminação sobre quem pagou ou quanto custou o transporte aéreo ou terrestre, gasolina, hospedagem, alimentos, água, suprimentos, aluguel de salões de hotéis, caminhões de som e demais equipamentos dos comícios e carreatas.

Bolsonaro começou a campanha em São Paulo, em 17 de agosto. No dia seguinte, foi à Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ).

De 22 a 25 de agosto, percorreu o interior paulista: Presidente Prudente, Araçatuba, Glicério, São José do Rio Preto e Barretos.

No dia 27 de agosto, já estava de volta ao Rio de Janeiro, onde mora, e no dia 29 foi ao Rio Grande do Sul. Em 31 de agosto, viajou a Rondônia e no dia seguinte, seguiu para o Acre.

Em 3 de setembro fez campanha no Rio, depois no Distrito Federal e, por fim, em Juiz de Fora (MG), onde sofreu o atentado.

Há no site do TSE apenas o dado genérico do pagamento dos R$ 285 mil à empresa Pontestur.

A Folha fez perguntas por telefone a um dos responsáveis pelo grupo, Luís Pontes, que concordou em ligar de volta com as respostas, mas isso não ocorreu até a publicação desta reportagem.

O capitão reformado e seus aliados também afirmaram várias vezes ter amplo apoio voluntário, mas a lei (artigo 61 da resolução do TSE 23.553/2018) exige que todo trabalho de campanha, remunerado ou não, seja informado e divulgado na internet.

O valor, que entra na prestação como doação ao candidato, tem que ser calculado "mediante a comprovação dos preços habitualmente praticados pelo doador e a sua adequação aos praticados no mercado, com indicação da fonte de avaliação".

O valor do trabalho voluntário à campanha tem que estar dentro do limite de 10% da renda da pessoa. Caso ultrapasse, ela pode ser multada.

Bolsonaro, que é deputado federal e presta contas eleitorais há cerca de 30 anos, informou até agora ter apenas dois voluntários em sua campanha, seu braço direito e presidente do PSL, Gustavo Bebianno (cujo trabalho foi estimado em R$ 10 mil), e um auxiliar.

Ficam de fora, por exemplo, a mulher de Bebbiano, Renata, que coordena a agenda de compromissos do presidenciável e atua na interlocução com a imprensa, e um dos principais advogados da campanha, Tiago Ayres.

Depois do resultado do primeiro turno, em 7 de outubro, a campanha alterou a forma de prestar contas.

Ela informou detalhadamente o custo da entrevista coletiva no hotel Windsor, no Rio —R$ 43 mil, com descrição do valor do aluguel do salão (R$ 5.300), número de recepcionistas (7) e coordenadores de eventos (32), além do material usado: 88 grades de contenção, 4 detectores de metal, 20 rádios de comunicação e 1.500 pulseiras de acessos, entre outros itens.

A lei eleitoral (9.504/97), ratificada pela resolução 23.553/2018 do TSE, obriga —em seu artigo 50, inciso II— todos os candidatos a informar à Justiça até 13 de setembro, de forma discriminada, a movimentação de receitas e gastos de sua campanha realizadas até 8 de setembro.

O parágrafo sexto do mesmo artigo estabelece que "a não apresentação tempestiva da prestação de contas parcial ou a sua entrega de forma que não corresponda à efetiva movimentação de recursos pode caracterizar infração grave, a ser apurada na oportunidade do julgamento da prestação de contas final.

No caso de desaprovação, as contas são encaminhadas ao Ministério Público Eleitoral para avaliar a proposição de ação de investigação judicial, questionando se houve abuso de poder econômico ou político.

Se as contas de um candidato são aprovadas com ressalva, o plenário do TSE pode decidir encaminhar o caso para o Ministério Público. Independentemente disso, o procurador ou algum partido político pode pedir abertura de investigação judicial eleitoral.

Por estar participando do segundo turno das eleições, Bolsonaro tem até 17 de novembro para entregar as prestação final de contas (artigo 52), "apresentando a movimentação financeira referente aos dois turnos".

Apesar da lei, tribunais consideraram até eleições passadas que omissões na prestação parcial, quando são sanadas, representam falhas formais não suficientes para rejeição das contas.

Em julgamentos recentes, porém, ministros do TSE, entre eles o ex-presidente da corte, Gilmar Mendes, manifestaram a necessidade de rediscutir essa postura a partir das eleições de 2018, sob risco de tornar inócua a exigência de prestação de contas parcial.

Em abril deste ano, o vice-procurador-geral eleitoral, Humberto Jacques, assinou parecer no qual afirma que a apresentação da prestação de contas parcial não pode ser "considerada vício meramente formal, ainda que declaradas as receitas e despesas na prestação de contas final".

"A tese jurídica que confere caráter meramente formal à regra que impõe aos candidatos e partidos a prestação de contas parcial subtrai completamente sua força normativa e sinaliza para os destinatários da obrigação a desnecessidade de seu cumprimento", escreveu o procurador.

Entre as perguntas enviadas pela Folha à campanha de Bolsonaro estão o motivo de não ter havido discriminação dos gastos com viagens e do pessoal que efetivamente trabalha na campanha.

A única resposta dada foi da assessoria do escritório de Karina Kufa, que afirmou que "as informações em relação à prestação de contas serão fornecidas dentro do prazo legal, qual seja, 17.11".

A Folha questionou por que não houve cumprimento do prazo em relação à prestação de contas parcial. Não houve resposta.

Como Bolsonaro declarou despesas e o que diz a lei eleitoral

Pessoal

Bolsonaro declarou gasto relativo a apenas seis pessoas. Qualquer prestação de serviço ou participação na campanha, mesmo que voluntária e gratuita, deve ser declarada pelo candidato beneficiado. O valor financeiro deve ser estimado, tendo como base parâmetros de mercado

Eventos

No primeiro turno, Bolsonaro e sua equipe visitaram ao menos 16 cidades de 7 estados, locais onde participou de comícios em caminhões de som, deu entrevistas em hotéis e participou de encontros. A prestação de contas tem que ser detalhada e discriminada, item a item. A campanha fez uma declaração genérica de contratação de uma agência de viagens, ao custo de R$ 250 mil, mais R$ 35 mil de custo estimado com passagens aéreas

Conselheiros

Desde a pré-campanha Paulo Guedes e outros economistas auxiliam Bolsonaro na formulação do programa de governo e em preparativos para entrevistas e debates. Um grupo de militares e aliados também se reúne periodicamente em hotel de Brasília para discutir propostas. Técnicos em legislação eleitoral se dividem sobre a necessidade de declaração, mas, em regra geral, toda ação vinculada a campanha deve ser declarada, com custo real ou custo estimado

Agenda e imprensa

A mulher do presidente do PSL, Gustavo Bebbiano, coordena a agenda de Bolsonaro e atua também na interlocução com a imprensa. Não há declaração sobre esse serviço e seu custo. Qualquer prestação de serviço ou participação na campanha, mesmo que voluntária e gratuita, deve ser declarada pelo candidato beneficiado. O valor financeiro deve ser estimado, tendo como base parâmetros de mercado

Alimentação e suprimentos

Não há nenhum gasto específico declarado pela campanha com alimentação e suprimentos. Todo gasto resultante de atividades de campanha deve ser declarado pelo candidato. A campanha de João Amoedo (Novo), por exemplo, declarou gastos com toalha, papel higiênico, locação de máquina de café expresso, lâmpadas e kit de plástico bolha, entre outros

Área jurídica

Um dos principais responsáveis pela área jurídica da campanha é o advogado Tiago Ayres. Não aparece gasto relativo a ele na prestação de contas
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