O prato de 400 gramas do self-service, os 2 quilos
que você quer perder, a meia tonelada de cocaína no helicóptero do filho do
senador: todas as medidas de massa, reais ou imaginárias, remetem a um pequeno
cilindro de metal escondido nos arredores de Paris. Guardado num cofre
localizado dentro de uma cripta no subterrâneo de um palácio do século XVII,
esse objeto é a referência que determina o peso de cada átomo do universo.
Esses valores são o que são porque, em 1889, representantes de dezenas de
países convencionaram que 1 quilo seria definido como a massa daquele cilindro.
Chamado de Protótipo Internacional do Quilograma, ele é
conhecido também como “Le Grand K” e fica armazenado no BIPM – o
Escritório Internacional de Pesos e Medidas –, sediado no alto de uma colina no
município de Sèvres. Com 3,9 centímetros de altura e outros 3,9 de diâmetro,
tem o tamanho aproximado de uma xícara de café. É composto de uma liga metálica
com 90% de platina e 10% de irídio. “São metais muito tenazes”, disse Richard
Davis, um físico americano radicado em Paris. “Era a melhor tecnologia da
época.”
Davis – um homem de 72 anos com cabelos grisalhos e bigode
escuro – chefiou por quinze anos o departamento de massa do BIPM e hoje
trabalha como consultor do escritório. Ele já transportou o Grand K, mas não
encostou nele – carregou a bandeja com os dois grandes sinos de vidro que
protegem o protótipo, como se fossem queijeiras montadas uma sobre a outra.
“Você não vai querer ser a pessoa que deixou ele cair”, brincou o físico quando
recebeu a piauí no ano passado no BIPM.
São necessárias três chaves para abrir o cofre. “Uma fica
com o presidente do Comitê Internacional de Pesos e Medidas, outra com o
diretor do BIPM e a terceira com o diretor dos Arquivos Nacionais da França”,
explicou Davis. O americano mudou de assunto quando perguntei sobre a
localização da passagem subterrânea que leva ao objeto. “Não estamos longe.”
O protótipo internacional foi retirado do cofre pela última
vez em 2014, para um ritual de lavagem e pesagem que só tinha acontecido três
vezes até então. “Usamos uma mistura de álcool e éter, e depois vapor d’água”,
explicou Davis. Ele e seus colegas pesaram o Grand K e as seis cópias idênticas
conservadas junto com o protótipo. A massa se mantinha estável desde a última
medição, em 1991 – na estimativa anterior, porém, as cópias haviam ganhado 50
microgramas em média em relação ao original, para surpresa dos cientistas. “Não
sabemos o que explicava a divergência e não sabemos por que ela foi
interrompida”, afirmou.
A origem desse objeto remonta à Revolução Francesa,
quando a República recém-instituída decidiu reformar o sistema de pesos e
medidas com a ajuda de cientistas. O grama foi então definido como a massa de 1
centímetro cúbico de água pura a 4ºC – por extensão, o quilo seria a massa de
um cubo de água com 10 centímetros de lado. Um objeto de referência foi forjado
em 1799 e substituído pelo Grand K quase um século depois.
O quilograma é a última unidade a depender de um objeto
concreto, que pode sumir, ser roubado ou destruído. As demais vêm sendo
redefinidas desde os anos 60 em função de constantes físicas. “Era o ponto
fraco do sistema internacional de unidades”, disse Davis. A primeira a se
modernizar foi o segundo: antes definido como uma fração do dia solar e
dependente da rotação da Terra, em 1967 ele passou a ser descrito em função da
frequência de transição de um átomo de césio-133. O metro também mudou. Outrora
correspondente a uma fração da circunferência terrestre, que acabou
cristalizado em outro protótipo de platina e irídio, igualmente guardado no
BIPM, ele equivale desde 1983 à distância que a luz percorre no vácuo num
determinado intervalo de tempo.
Os especialistas discutiam a mudança do quilo desde 2005. Em
2011, decidiram que a massa passaria a ser definida em função da constante de
Planck, que relaciona a frequência de radiação de uma determinada partícula com
a sua energia. Um quilo será definido a partir de uma equação que envolve essa
constante. Outras unidades que derivam da massa também estarão automaticamente
vinculadas à constante de Planck, como o volt, o watt, o newton, o pascal ou o
tesla, entre outras.
Faltava, porém, determinar com precisão o valor exato da
constante. “É preciso que três equipes independentes cheguem a um mesmo valor usando
ao menos dois métodos experimentais diferentes”, explicou Davis. Isso não havia
sido possível até a última Conferência Geral de Pesos e Medidas, em 2014. Mas
avanços foram feitos desde então, e a expectativa é que a nova definição seja
aprovada na conferência que acontece em novembro deste ano. Na ocasião, também
serão votadas novas definições para o ampère (unidade de corrente elétrica), o
kelvin (temperatura) e o mol (quantidade de matéria).
Para o cidadão comum, o dia seguinte à entrada em
vigor da nova definição será como outro qualquer. As balanças não serão
recalibradas e nada vai mudar de peso. A alteração terá implicações práticas
para cientistas e técnicos que trabalham nos institutos de metrologia
espalhados pelo mundo. Do dia para a noite, as pouco mais de 100 cópias
autenticadas do protótipo internacional produzidas no BIPM e distribuídas para
esses institutos ficarão obsoletas, junto com o Grand K.
O Brasil detém uma dessas cópias: ela fica armazenada no
campus do Inmetro, o Instituto Nacional de Metrologia, em Xerém, na Baixada
Fluminense, sob cuidados semelhantes aos dedicados ao protótipo internacional.
“O que muda é que agora você pode reproduzir o quilograma-padrão a qualquer
momento e em qualquer lugar”, resumiu numa entrevista recente o físico carioca
Carlos Augusto de Azevedo, presidente do instituto. Se por um lado a nova
definição dá autonomia ao país, por outro exige equipamentos caros e
sofisticados. “Se o Brasil não tiver um laboratório capaz de produzir um
protótipo, para o comércio exterior teremos que validar nossas medidas em outro
país”, continuou o físico. “É um problema de soberania nacional.” Azevedo disse
que o Inmetro tem planos de construir uma balança de Watt, que permitirá obter
um quilo-padrão com base na constante de Planck.
Se a nova definição do quilograma for adotada em novembro, a
medida passará a tomar efeito em 20 de maio do ano que vem.
Repórter da piauí desde 2010, é autor do
livro Domingo é dia de ciência, da Azougue Editorial
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