É um momento de escolha de ministros, definição da estrutura
do governo. Não importa o que saia daí, o que nos espera no ano que vem é
inescapável: o Brasil pode quebrar. A reforma da Previdência não é só um
momento de alívio para o governo Bolsonaro, mas também para 14 Estados em
profunda crise financeira, entre eles Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do
Sul.
Visitei Minas para ver melhor o que aconteceu nas eleições.
Inédita na História, a vitória de Romeu Zema, do Partido Novo, contou com 71,8%
dos votos. Foi um salto no escuro, preferível para os eleitores aos velhos
partidos que dominaram o Estado: PSDB e PT.
A melhor forma de começar uma nova época é realizar a
reforma da Previdência. Não resolve tudo, mas indica que o mais difícil foi
feito. Paradoxalmente, a reforma é a maneira de seguir vivo até 2022, mas
significa, no primeiro instante, uma perda de popularidade. Na Rússia, a
reforma previdenciária roubou muitos pontos de aceitação do governo Putin.
Sufocada pela Copa do Mundo, a resistência manifesta-se também numa
desconfiança, uma sensação de perda.
Segundo o Moscou Times, essa reforma foi decidida por Putin,
mas seu déficit talvez pudesse ser facilmente coberto pelos excedentes do
petróleo. Mas e os investimentos, a defesa? O governo precisava se antecipar.
No caso grego, a reforma talvez não tenha desgastado tanto a
esquerda no poder. Era claramente inevitável. E havia a pressão da União
Europeia. O ressentimento acabou canalizado para Angela Merkel.
No caso brasileiro, a reforma da Previdência tem uma chance
singular. Ela é claramente uma forma de neutralizar o processo de transferência
de renda dos mais pobres para os mais ricos. Ela tem um quê de Robin Hood, mas
esse encanto sozinho não basta para emplacá-la. Em primeiro lugar, será preciso
convencer os pobres de que, no fundo, estão ganhando com as mudanças; em
segundo lugar, e isso é colossal, vencer a resistência das corporações, algumas
articuladas com partidos da esquerda.
O ajuste fiscal será a primeira grande prova tanto para
Bolsonaro como para Zema.
O ano que vem marca o início de uma fase triunfante do
liberalismo. Ele bateu o marxismo no terreno, mas também partilha com ele um
certo idealismo. Um vê no Estado o caminho da salvação, o outro vê no mercado.
Como observa John Gray na sua crítica à Nova Direita na Inglaterra, ambos
ignoram que são construções humanas e, como tal, imperfeitas.
Uma conclusão de Gray é que essas correntes idealistas veem
a vida política de uma forma que conduz a derrotas. Elas tendem a investir num
projeto de esperanças transcendentais, numa época sem fé. O conselho realista
de Gray é baixar a bola, aceitar a humilde tarefa de uma improvisação sem fim,
em que um bem é comprometido para salvar outros, uma espécie de equilíbrio
entre os males necessários da vida humana e a perspectiva sempre presente do
desastre a ser despachada para outro dia.
Não chego a tanto. Ele teorizava sobre os liberais que
concluíam sua passagem pelo governo. Aqui, os vencedores precisam pôr suas
ideias em ação.
Mas não consigo esquecer a experiência vivida no Congresso.
Vi muitos grandes projetos. E vi sua trajetória real. Alguns deles costumo
comparar com o grande peixe pescado pelo velho Santiago no romance O Velho e o
Mar, de Hemingway. Comido aos pedacinhos, chegou à praia apenas como um grande
esqueleto.
Assim como foi com o marxismo, os liberais vitoriosos correm
o risco do que se chama húbris ideológico. Húbris é uma palavra grega que
traduzimos como excesso de autoconfiança. De modo geral, esse excesso de
autoconfiança é inerente à nossa prática de perseguir princípios universais,
esquecendo a política como uma humilde discussão racional, uma acomodação
mutual, em busca de um modus vivendi.
De qualquer forma, o Estado brasileiro é uma carga pesada
nas costas da sociedade.
Lembro-me de que há quase uma década já discutíamos isso, da
ineficácia de algumas estatais aos gastos escandalosos da máquina. Numa das
comissões temáticas, questionei os gastos anuais do governo com viagens: R$ 800
milhões. Naquela época já havia um leque de possibilidades tecnológicas, do
Skype às teleconferências. Essa escolha liquidaria os gastos. Mas reduziria os
ganhos do funcionalismo com diárias.
A relação dessa gigantesca máquina político-partidária com a
sociedade precisa ser resolvida em favor das pessoas.
O aumento dos juízes do STF vai nos custar R$ 6 bilhões. É
um preço alto, caro, em bens e serviços. Mas tem um lado pedagógico: ficou
claro para todo mundo como a elite burocrática se apossa de uma parte maior do
bolo, numa sociedade mergulhada na crise econômica.
Creio que muitas pessoas votaram contra isso. Se minha
presunção é verdadeira, está em curso uma modesta revolução cultural. Muitas
pessoas que viam no Estado um provedor, e de certa forma a Constituição o
moldou assim, começam a vê-lo como um obstáculo, sanguessuga.
Isso é o caminho para que seja revisto, de acordo com as
circunstâncias históricas e culturais do Brasil de hoje. Não será
necessariamente mínimo, que é uma construção ideal. Ele será o que resultar
desse que, para mim, é o grande embate de 2019.
No passado, quando terminavam as eleições as pessoas se
voltavam para seus problemas, o que é saudável. A verdadeira força
transformadora, no entanto, virá da sociedade, e não de esquemas ideais. É
possível que, num quadro de crise, ela continue alerta, pois agora começa a
viver as consequências de sua escolha.
Não será um ano fácil. Aos que podem, é recomendável ao
menos uma semana de férias. Isso porque a economia é apenas uma variável. Além
dos 12 milhões de desempregados, parte do território urbano é ocupada por
grupos armados, as cadeias são um barril de pólvora, a corrupção se estende
pelo interior.
Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela
sobrevivência de um país viável.
Artigo publicado no Estadão em 16/11
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