O grande cineasta Nelson Pereira dos Santos foi um dos
maiores artistas e pensadores da cultura brasileira no século XX. Da cultura
brasileira e da criação cinematográfica em países que, quando Nelson começou a
fazer filmes, estavam ausentes das telas, exilados da história oficial do
cinema no planeta. Países e povos que, naquele momento, não tinham
representação alguma deles mesmos, imagens e sons do que eram e do que podiam
ser.
Nos anos 1950, com seus dois filmes de estreia e a produção
de um terceiro, Nelson iniciou uma revolução que nunca terá fim, enquanto
houver povo no mundo que não se manifeste nessa arte. Seus filmes eram “Rio, 40
graus” (1955) e “Rio, Zona Norte” (1957), além de “O grande momento” (1958),
dirigido por Roberto Santos. Quando fez seu primeiro filme, o cinema que
circulava universalmente se resumia às produções de Hollywood e às de alguns
países da Europa Ocidental, como Inglaterra, França e Itália. As raras
surpresas que vinham da Escandinávia, do Japão ou da Rússia, assim como de
outras inesperadas cinematografias, só faziam confirmar a exceção.
A origem do Cinema Novo brasileiro, exceção que deu cria,
está nos filmes e na atividade política de uma geração que se reuniu em torno
de Nelson. Esse movimento, a fundação da primeira cinematografia nacional e
moderna em país do então chamado Terceiro Mundo, foi reconhecido nos festivais
internacionais. Como consequência do sucesso nos festivais, os filmes começaram
a ser distribuídos em circuitos comerciais, pelo mundo afora. Inclusive nos
próprios Estados Unidos, junto a um público jovem e universitário.
Chegada tardia do modernismo ao nosso cinema, o Cinema Novo
brasileiro, liderado por Nelson, foi o primeiro movimento cinematográfico de um
país periférico a ter uma repercussão significativa no circuito internacional.
Sobretudo a partir dos festivais de Berlim e Cannes de 1964, quando “Vidas
secas”, de Nelson, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “Os
fuzis”, de Ruy Guerra, surpreenderam cinéfilos de todo o mundo. Não se tratava
apenas de filmes inesperadamente bem feitos, à altura do que se fazia em Paris,
Londres ou Roma. Mas de um cinema que revelava valores dramáticos, éticos,
culturais, étnicos etc., de uma natureza específica. A cultura original de uma
nação original que se manifestava nas telas. Um cinema nacional.
Jamais me esquecerei da sessão inaugural, no Palácio dos
Festivais, em Cannes, de “Deus e o diabo na terra do sol”. Desde o início da
projeção, o público sofisticado de Cannes se inquietava com o que via na tela —
rostos, personagens, costumes, dramas, músicas, cenários, tudo nunca visto antes,
contando uma história nunca contada antes.
Quando a sessão acabou, a sala já estava a menos da metade,
e os espectadores que não a haviam deixado não sabiam direito como reagir. Até
que alguns começaram a aplaudir. Em breve, o aplauso se tornou uma ovação
consagradora, e eu me senti diante da descoberta de uma cultura vinda de outra
galáxia, que aquele público nunca pensara que havia de existir. Tive certeza de
que valia a pena fazer filmes no Brasil. E fazê-los daquele jeito, fiel ao que
estivesse diante de nós.
Visto nesse mesmo Festival de Cannes, podemos medir a
repercussão de “Vidas secas” pelo que escreveu François Truffaut sobre ele,
dizendo tratar-se de “um filme que justifica a existência do cinema”.
Nelson foi um grande mestre, que nos ensinou tudo com doçura
e real interesse pelo que o outro fazia. Mais velho e mais experiente que nós,
nos ensinou a prática de um modo de fazer que permitia a existência de uma
economia cinematográfica, num país periférico como o Brasil. Um país que
tentávamos descobrir e revelar a cada filme.
O exemplo de Nelson não ficou restrito àqueles jovens
cineastas que o cercavam numa mesa de edição, nas sessões noturnas de trabalho
no Laboratório Líder, para vê-lo praticar o milagre do cinema. Ele contagiaria
primeiro os cineastas latino-americanos e depois os de todo o resto do mundo
onde era preciso fazer cinema, mesmo que o cinema não tivesse como ser feito.
Hoje, na medida de seus valores e da crescente crueldade dos mercados, circulam
pelo mundo todo filmes de toda parte, da Coreia à Romênia, do Irã a Moçambique,
do Mali à Tailândia, do Equador à Guatemala. Porque cada povo sempre terá o que
dizer de si mesmo e surpreender os outros.
Nelson nos deixou em 2018. Ousei então me candidatar à sua
sucessão, na Academia Brasileira de Letras, para onde fui eleito e tomei posse
nessa última sexta-feira. Amigos de dentro e de fora da ABL me incentivaram a
candidatura. Mas a “pressão” decisiva foi a da necessidade de guardar a lembrança
de meu antecessor como o inventor de um cinema, mestre e guia de uma geração. E
de qualquer outra geração do cinema brasileiro, mesmo as dos que nunca viram um
filme seu. Mesmo esses são tributários da luz imortal de Nelson Pereira dos
Santos.
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