Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco
sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de
2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo.
Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e
nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e
excluídos”.
Em 2013, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos a Primeira
Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum
Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a
exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e esperanças da vida
cristã no mundo contemporâneo.
Também em 2013, Francisco lamentou o Espírito desse mundo que
reduz o Homem “a uma única das suas necessidades: o consumo e, pior ainda, o
ser humano é considerado também um bem de consumo que pode ser utilizado e
jogado fora. Inversamente, “a solidariedade, o tesouro do pobre, é considerada
contraprodutiva, contrária à racionalidade financeira e econômica”. Isto
deve-se “a ideologias promotoras da autonomia absoluta dos mercados e da
especulação financeira, que negam o direito de controle dos Estados”.
Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa
disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital
se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas
engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu
destino ao diabo e seus estercos.
Na edição de 17/5/ 2018, o Osservatore Romano registra a
divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela
Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações
para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema
econômico-financeiro”.
O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo
arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah
Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia
dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a
vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise
financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais
atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade
financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e
valorizando o serviço à economia real”.
Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em
vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém,
uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que
continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um
egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui
dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a
riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes.
Está em jogo o autêntico bem-estar da maior parte dos homens
e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de
maneira crescente sempre mais às margens, se não de serem “excluídos e
descartados do progresso… se queremos o bem real para os homens, o dinheiro
deve servir e não governar!”.
A palavra da Doutrina da Fé despertou-me a lembrança dos
Essays in Persuasion de John Maynard Keynes. O conjunto de ensaios publicado em
1930 espargia esperanças. Keynes sustentou que “o Mundo Ocidental já tem os
recursos e a técnica capazes de reduzir o Problema Econômico que agora absorve
nossas energias morais e materiais, se pudéssemos criar a organização para
usá-los… Acredito que não está longe o dia em que o Problema Econômico vai
tomar o banco de trás e a arena do coração e do cérebro será ocupada, ou
reocupada, por nossos problemas reais – os problemas da vida e das relações
humanas, da criação, do comportamento e da religião”.
Na contramão dos vislumbres otimistas de Maynard, a economia
contemporânea, comandada pela finança, excita as esperanças, mas, enquanto
destrói a natureza, constrói terríveis realidades humanas. As novas formas
financeiras contribuíram para aumentar o poder das corporações
internacionalizadas sobre grandes massas de trabalhadores, permitindo a
“arbitragem” entre as regiões e nivelando por baixo a taxa de salários. As
fusões e aquisições acompanharam o deslocamento das empresas que operam em
múltiplos mercados.
Isso ampliou o fosso entre o desempenho dos sistemas
empresariais “globalizados” e as economias territoriais submetidas à regras
jurídico-políticas do Estados nacionais. A abertura dos mercados e o
acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e debilitam
a força dos sindicatos, fazendo periclitar os direitos sociais e econômicos.
Em seu livro As Ideias e os Fatos, Frederico Mazzuchelli
registra a menção de Francisco à concorrência, matriz da “insatisfação e da
tristeza individualista que escraviza”. O Papa rejeita as formas de
religiosidade que fazem o espírito recuar para os recônditos do individualismo,
uma espécie de “consumismo do sagrado”. “Mais do que o ateísmo, o desafio que
hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas
pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um
Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na
Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao
mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária,
acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Os
olhares do nosso tempo perderam de vista a utopia da comunidade cristã, forma
de convivência incrustrada nas origens do cristianismo.
“Um Jesus Cristo sem carne” é o código de acesso ao mistério
libertador da Encarnação, um divisor de águas na história da humanidade, um
movimento revolucionário, nascido das crueldades e sabedorias do mundo
greco-romano.
Na corporeidade do Filho, Deus Pai adquire uma dimensão
humana para sofrer as agruras dos mortais e despejar solidariedade
incondicionalmente. O tempo assume uma dimensão histórica: Cristo trouxe a
certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva realizar
essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela
ressurreição.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de
Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi
incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Nenhum comentário:
Postar um comentário