terça-feira, 30 de junho de 2020

100 ANOS DE SOLIDÃO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Com o perdão e a licença poética do magnífico Gabriel García Márquez, aqui o enunciado é para classificar esse longo e — aos olhos de todos — interminável interregno. Lá se foram mais de três meses e o isolamento encerra lições que devem, pelo bem ou pelo mal, transformar a humanidade e a maneira como vivemos em sociedade. Em todas as direções. Econômica, política, de relações interpessoais, profissionais, de conduta emocional e de visão de mundo. Nesses tempos de absoluto confinamento para alguns, de descaso com as medidas para outros, de riscos para quem não tem qualquer opção que não a de sair, vivemos o imponderável, o medo do desconhecido e da morte propriamente dita. Diante da ameaça sorrateira as máscaras caíram. De diversos personagens. Talvez de todos.

Haters dissimulados mostraram a autêntica face e encontraram o ambiente ideal para destilar o ódio que acalentavam. Os desprovidos de compaixão assumiram como de fato não reservam qualquer interesse pelo próximo. São eles em primeiro lugar. Seus negócios, sua realidade, a sobrevivência pessoal que importam. Quanto aos outros? Que simplesmente…morram. É da vida. “Faz parte!”, disse aquele líder bananeiro de atitudes tresloucadas.

Governantes do fim do mundo expuseram a carapuça mais sombria e abominável da ausência de caráter e capacidade de liderança. Nesse caso, nenhum deles superou em aberrações e irresponsabilidade o mandatário brasileiro Jair Messias Bolsonaro, um escroque de maldade e intolerância que maquinou afrontas à segurança nacional e crimes de responsabilidade em profusão. Tripudiou do drama alheio andando de jet ski, a cavalo e em aglomerações provocativas que escandalizaram o mundo. Ignorou qualquer gesto de consolo aos familiares destroçados pela doença, enquanto sugeria fazer um bom churrasco, com três mil participantes, para esquecer tudo e zombar das restrições. Vangloriou-se da condição de “atleta” que não cede a uma “gripezinha”. Foi o insensível em estado puro. Nesses 100 dias de solidão, quase 60 mil morreram, mais de um milhão caíram de cama vitimados por uma pandemia implacável. E isso apenas no Brasil, que exibe recordes impensáveis e vergonhosos — boa parte decorrente da imprudência, irresponsabilidade, politicagem tacanha de gestores que não entendem o autêntico sentido da palavra governar. Brasileiros estão aprendendo na marra, e de forma dolorida, o quanto custa e o tamanho do problema que é fazer uma escolha eleitoral errada. O contemplado, em circunstâncias limite, sai movido estritamente pelo propósito da sobrevida nas urnas, abrindo caminhos ideologicamente nefastos e socialmente injustos. Messias Bolsonaro, no hiato dos últimos 100 dias, para além da coleção de peripécias, abusos e desvios de conduta, desde que assumiu há mais de um ano, viu seu mandato se esfarelar. Praticamente virar pó, diante de tantas perversões. No momento encontra-se envolto nas investigações do laranjal do filho zero um, de seus comparsas e do esquema de rachadinha, que já levaram para a cadeia o dileto amigo de 40 anos de relação, Fabrício Queiroz, e colocaram em suspeição o advogado da família, tido como um faz tudo da casa. Abatido, o presidente ainda está precisando lidar com acusações de ter interferido na Polícia Federal e, suprema humilhação, tendo de depor para explicar o inexplicável. Os empresários amigos e políticos aliados foram alvos de batidas policiais e de averiguações em inquéritos que levantam esquemas de financiamento ilegal de fake news e de mobilizações antidemocráticas de ataques aos poderes constituídos. Para completar, o Planalto ainda se enfronha numa mal explicada operação de fuga do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub que saiu às pressas do Brasil, com passaporte diplomático que não poderia usar, para evitar ser pego para julgamento no STF. É uma pororoca de maus presságios que cercam Bolsonaro e um governo que submerge, isolado, solitário, há bem mais de 100 dias. Como tábua de salvação, mistura-se ao que existe de pior na política, o cordão de encalacrados do Centrão que pede verbas e postos em troca de sustentação. Bolsonaro desce ao poço e se pendura na mediocridade administrativa. Não quer que sejam votadas as reformas, administrativa e tributária, para evitar dissabores com eleitores. Disse isso de viva voz. Alegou ser um “desgaste muito grande” o engajamento nessas pautas que ajudariam no desenvolvimento do País. Ele não está preocupado com isso. É um desinteressado das reformas, do combate à corrupção, da luta em prol do bem comum. Na solidão do poder, governa para ele, para os seus, para os apaniguados. A bem mais de 100 dias é assim, em um interregno que não parece mesmo ter fim.

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