O entorno de George
Floyd era uma barulheira só — carros passando, ronco urbano de Minneapolis à
luz do dia, rádios da polícia apitando, transeuntes gritando que aquele homem
negro imobilizado no asfalto, algemado pelas costas, precisava respirar. Apesar
da barulheira, seu murmúrio final está registrado em vídeo e não carece de
tradução: “Momma! Momma! I’m through”. A mãe de Floyd morrera em 2018. O filho
que a invocou conseguiu chegar aos 46 anos até tornar-se o 11º caso de cidadão
negro assassinado pela polícia de Minneapolis desde 2010. Teve altos e baixos
na vida. Nasceu e cresceu no mesmo bairro texano do qual Beyoncé partiu para o
estrelato, quase emplacou como atleta, quase terminou a faculdade, quase
descarrilhou de vez ao ser preso por roubo à mão armada, mas retornou. Formou
família, trabalhava onde possível e para isso foi parar em Minneapolis.
Contraiu Covid-19, mas não sabia. Morreu rodeado da gente errada — sob as botas
dos quatro policiais brancos de farto currículo de abusos, agora indiciados.
É possível que a
partir da morte de Floyd a sociedade americana se olhe no espelho com menos
complacência. Talvez tenha expirado o prazo de validade do mantra “não somos
isso”, “somos melhor do que isso”, repetido com fervor após cada episódio de
infâmia racista. Hoje, quem inunda as ruas em protesto e cobrança sabe que os
EUA são, sim, uma sociedade racista, e parece disposto a aceitar a realidade
para poder construir uma cidadania de que não precise se envergonhar. Passadas
duas gerações desde que o governo Lyndon Johnson aprovou a Lei dos Direitos
Civis em 1964, é o racismo no sistema prisional, judiciário e policial que
entra em pauta. Como, porém, ele não se sustenta em nenhuma lei
segregacionista, e portanto passível de ser derrubada sob pressão, trata-se de
uma realidade mais encruada e complexa de ser desmontada. Ela depende
essencialmente da formação moral ou disciplinar, e da índole de cada indivíduo
com autoridade para bater, prender ou sufocar. E o ser humano, quando adulto e
solto, é pouco confiável.
O menino negro
Miguel Otávio Santana da Silva precisaria de mais 41 anos para chegar à idade
de Floyd. Não deu. Morreu aos 5, sem qualquer ser humano por perto. Caiu do
nono andar de um edifício em Recife enquanto a mãe, que trabalhava como
doméstica no quinto andar do mesmo prédio, passeava com o cachorro da família
por ordem da patroa. As circunstâncias dessa tragédia são o retrato cru e nu da
vida brasileira. Mirtes, a mãe de Miguel, trabalhava há quatro anos para o
casal Sérgio Hacker e Sari Corte Real. Errado: na verdade, segundo apuração da
repórter Ciara Carvalho, do “Jornal do Commercio” de Pernambuco, Mirtes aparece
na folha de pagamento da prefeitura de Tamandaré, cidade da qual o patrão é
prefeito. Está cadastrada como gerente de divisão CC6, sem carga horária
específica. Possivelmente uma “funcionária laranja” a mais, sem sabê-lo.
Os patrões de Mirtes
haviam contraído a Covid-19. Ela, sua mãe e Miguel também estão entre os mais
de 16 mil casos registrados no Recife. Com as creches da cidade fechadas por
causa da pandemia, Mirtes levara o filho ao trabalho, sem suporte social ou
patronal para evitar a exposição. Na tarde da tragédia a patroa requisitara os
serviços de uma manicure, profissão considerada não essencial para tempos de
coronavírus, mas essencial para a primeira-dama. Tudo errado novamente.
Relatos iniciais
atestam que Miguel tornou-se choroso com a ausência da mãe, e câmeras do prédio
mostram o menino, sob as vistas da patroa, conseguindo entrar sozinho no
elevador, do qual vários botões foram apertados. Vê-se um Miguel desnorteado à
procura da mãe, descendo no nono andar que lhe era desconhecido, com acesso
fácil a uma área reservada à ventilação dos aparelhos de ar-condicionado do
prédio. Ali ele teria subido num gradil e “virou estrela”, nas palavras da mãe.
Foram 35 metros de queda do espigão de luxo conhecido como “Torres Gêmeas”.
Apesar do alto padrão e localização nobre, o condomínio terá de explicar a
elementar falha de segurança que permite a uma criança de 5 anos saltar para o
vazio a partir de uma área comum.
Dentro do seu
apartamento no quinto andar, a patroa só soube da morte do menino sob sua
guarda depois que Mirtes encontrara o filho único no chão, na volta da
caminhada. Miguel foi atendido pelo SUS. A patroa prestou depoimento no dia
seguinte, pagou R$ 20 mil de fiança e responderá a processo por homicídio
culposo. Invocando a Lei de Abuso de Autoridade, a delegacia encarregada do
caso procurou não divulgar a identidade da patroa de Mirtes. É o Brasil cordial
com prefeitos e primeiras-damas.
“Pois muito bem”,
escreveu a acadêmica e feminista negra Djamila Ribeiro, em contundente artigo
sobre negritude na “Folha de S.Paulo”, “Só que a era da inocência acabou, já
foi tarde”.
Oxalá. Nas periferias da vida brasileira, não é apenas um perdigoto invisível que mata 1 pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado. Do governo Jair Bolsonaro. Se “escória maldita” há, é ali que ela está aninhada.
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