Jair Bolsonaro
certamente não sabe quem foi Carl Schmitt. Então, para ficarmos na mesma
página, vou apresentá-lo brevemente. Schmitt foi um jurista alemão que inspirou
as concepções totalitárias do Estado hitlerista, contribuindo para jogar por
terra os fundamentos liberais e democráticos da Constituição de Weimar. Para
Schmitt, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo
aí senão que o poder da força.
Neste estado de
exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer
limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da
balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que
restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido.
Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do
regime nazista.
Do segundo
pós-guerra para cá, a democracia constitucional espalhou-se pelo mundo
ocidental, retomando as noções de estado de direito e governo limitado. No
Brasil, a Constituição de 1988 representou a vitória desses ideais, sem
qualquer espaço para hiatos ditatoriais. A distribuição de funções entre
distintos Poderes constituiu uma espécie de poliarquia na qual nenhum deles é
soberano, mas todos devem igual reverência à Constituição. Para situações de
grave abalo institucional, há regras excepcionais que preveem a intervenção
federal, o estado de defesa e o estado de sítio, condicionados a controles
exercidos pelo Legislativo ou pelo Judiciário.
Quando todos
achávamos que o ideário totalitário havia sido jogado na lata de lixo da
História, eis que alguns juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas
sobre o exercício de um poder moderador pelas Forças Armadas. Mais exótico
ainda: sustentam que o art. 142 da Constituição daria guarida a esse suposto
papel dos militares de árbitros dos conflitos entre Poderes. Alinho, a seguir,
quatro razões pelas quais a tese não resiste a um sopro de bom senso.
Primeiro: a
Constituição não se interpreta em tiras. Ela é uma unidade. O art. 142 está
inserido num sistema normativo que prevê a independência e harmonia entre os
Poderes, sem que haja um Poder Moderador que exerça supremacia sobre os demais.
Os controles recíprocos são a forma de composição de eventuais conflitos. As
Forças Armadas não são um Poder da República, mas uma instituição à disposição
dos Poderes constituídos para, quando convocadas, agirem instrumentalmente em
defesa da lei e da ordem.
Segundo: a chefia
suprema das Forças Armadas cabe ao presidente da República (art. 84, XIII e
art. 142), sendo elas subordinadas, ainda, ao ministro da Defesa (EC 23/1999).
O presidente da República, a seu turno, deve obediência às leis e às ordens
judiciais. Tanto assim que, no seu eventual descumprimento, o presidente comete
crime de responsabilidade, podendo perder o mandato por impeachment (art. 85,
VII). Como instituição baseada na hierarquia e disciplina (art. 142), não faria
sentido que as Forças Armadas pudessem se sobrepor aos demais Poderes, uma vez
que nem o chefe do Poder Executivo goza de tal prerrogativa.
Terceiro: o art. 102
atribui ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Constituição,
cabendo-lhe, como órgão máximo do Poder Judiciário, interpretar as normas
constitucionais em caráter final e vinculante para os demais Poderes. Só o
Poder Legislativo tem a possibilidade de aprovar emendas à Constituição,
superando decisões do Supremo, assim mesmo quando isto não contrariar cláusulas
pétreas do texto constitucional.
Quarto: por último,
mas não menos importante, o art. 1º proclama que o Brasil é um Estado
democrático de direito, no qual todo poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Qualquer
instituição que pretenda tomar o poder fora desses canais de legitimação estará
agindo contra o texto e o espírito da Constituição.
*Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Uerj
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