Como fazer
manifestações presenciais – nas ruas – em plena pandemia? O vírus está vivo, em
propagação ascendente, e todo contato é fonte de perigo. Manifestações
aglomeram, mesmo quando feitas com organização.
Mas como pregar que
as pessoas não se manifestem? É provável que muitas estejam cientes do contágio
a que estarão expostas. Mesmo assim aceitam o risco, o que é meritório. Há um
quê de paradoxal aqui: combate-se a crise sanitária com uma mobilização que, no
limite, pode agravar a própria crise. Também ocorre que muitos manifestantes
são pessoas já expostas diariamente ao vírus, para as quais ir ou não às ruas
pode não fazer maior diferença em termos de segurança sanitária.
Talvez não haja
outro modo de proclamar o mal-estar, a indignação, a revolta. Afinal, tem sido
o próprio governo a promover tal estado de espírito coletivo. Martelando o
conflito e o autoritarismo o tempo todo, Bolsonaro entrou em atrito com fatias
crescentes da sociedade. Hoje, pesquisas indicam que seu apoio não passa de
30%, e é declinante. Inevitável que sempre mais gente queira ir às ruas, por a
angústia para fora, sacudir o pó acumulado pelos longos meses de quarentena. É
um estado de espírito que necessita de ponderação e análise circunstanciada da
realidade concreta.
A democracia e a
luta por ela não vivem sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a
sociedade com retrocessos autoritários, como pedir para os que se sentem
afetados não se manifestarem? Além disso, precisamos admitir que a política
institucional não está respondendo à sua própria crise, aos abusos do governo e
ao sofrimento popular. Seus setores mais “saudáveis” estão carentes de pressão
e apoio.
Deste ponto de
vista, as ruas podem ajudá-los.
Manifestações de rua
não são a única forma de luta, certamente. Tão importante quanto elas é a
articulação dos democratas e a abertura, no mundo político em sentido estrito,
de fendas que propiciem a construção de melhores patamares de negociação.
Nenhuma ida às ruas
é sem consequências. Mesmo que a intenção seja tão somente dar vazão a uma
revolta, o ato em si tem desdobramentos. Hoje, não é difícil visualizar dois
desdobramentos potenciais.
Um é a ampliação do
enfraquecimento do governo, com a explicitação mais ostensiva de que ele não
goza de consenso inequívoco, como o bolsonarismo vem declarando. Por esse
caminho, as vozes da rua podem ecoar no campo político e incentivar a ação mais
firme dos políticos, dando a ele condições de dar passos além. No terreno
concreto em que nos encontramos, isso pode significar impulso para que avancem
as tratativas dedicadas a formar frentes e alianças pela democracia.
Outro desdobramento
é mais complicado. As ruas podem ser instrumentalizadas pelo governo. A
disposição à violência pode não integrar os planos iniciais, mas simplesmente
acontecer graças a provocadores, infiltrados ou não, e à exacerbação dos
ânimos. Afinal, são “torcidas”. Se ocorrerem colisões com a polícia repressora
ou com os bolsonaristas, as ruas podem servir de pretexto para um reforço
demagógico da narrativa governamental, qual seja, a de que há “baderneiros”
querendo atacá-lo e prejudicá-lo.
Neste segundo
desdobramento, há quem argumente que as ruas podem facilitar a manobra golpista
do bolsonarismo. É um risco real, não há como negar. E cabe, aos democratas,
firmeza para dizer isso com todas as letras.
Mas será que,
perante tal ameaça, as ruas também não poderão funcionar como antídoto, criar
um cordão protetor da democracia? Caso consigam se organizar com um mínimo de
eficiência e afastem de si as tentações maximalistas e voluntaristas, uma
página será virada. Os democratas também precisam reconhecer isso, com
seriedade e cautela.
O dilema das ruas
está justamente na intersecção destes pontos.
Bolsonaro não tem
forças para dar um golpe contra o governo democrático, ou seja, um autogolpe.
Não tem maioria sustentável na sociedade e seus apoios nas Forças Armadas
parecem não ser tão expressivos quanto se imagina.
Durante a corrente
semana, o governo perdeu batalhas importantes. Viu crescer a tragédia da
epidemia sem oferecer qualquer resposta ou demonstrar qualquer empatia.
Revelou-se também que o Ministério da Saúde camufla e retarda a divulgação de
dados. Ampliou-se seu desgaste entre a população. E, com as manifestações da
OAB e da Câmara dos Deputados, o presidente perdeu a possibilidade de
permanecer defendendo a “intervenção constitucional” das Forças Armadas.
Estamos numa
encruzilhada complicadíssima. As “torcidas” estão de algum modo “empoderadas”.
Há “heroísmo” de um lado. As hordas bolsonaristas são insufladas pelo
presidente e pelo gabinete do ódio. O confronto será trágico, caso ocorra. Por
outro lado, não há força política para interromper isso. Vozes em prol da
ponderação são importantes e devem se posicionar. Podem alguma coisa, mas não
podem tudo e não são ouvidas pelos ativistas. Também não têm representatividade
suficiente para conclamar as pessoas a que não se manifestem fisicamente.
Falta ao país um
megafone, uma liderança. Instituições como o Congresso e o STF estão cumprindo
um papel decisivo, com cautela e paciência, de certo modo travando os
movimentos do Poder Executivo. Mas, como instituições, seus ritos e ritmos não
acompanham a insatisfação social no mesmo andamento dela. Ainda são vistos com
desconfiança pela sociedade. Os partidos não dirigem nem orientam, estão a
dever.
Tudo isso está
necessitando de reforço: criar uma opinião democrática no âmbito da opinião
pública, valorizar as instituições e trabalhar para que elas sejam
compreendidas pela população.
Temos muito coisa em
marcha, mas faltam-nos coesão, liderança clara, narrativa e capacidade de
compreensão do que há de novo na sociedade.
Manifestos são
excelentes como forma de vocalizar o grito de angústia preso na garganta.
Indicam que a sociedade passou a se mexer em sentido democrático. Mas
precisamos ir além da reverberação deles. A direita democrática, o centro
liberal e a esquerda precisam se articular e honrar o “Basta!” que vem sendo
proclamado. A hora é de unidade política. Quem não se dispuser a ela, que fique
para trás.
*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp
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