Moro ataca bolsonarismo ao criticar ‘intervenção militar’
Se Jair Bolsonaro decidiu
que os militares podem dirigir quase tudo no governo – da construção de pontes
à entrega de cartas, do combate à covid-19 às negociações com o Centrão –, os
militares também terão de se acostumar com um novo fenômeno: nunca tantos civis
interpretaram seus atos, gestos e silêncios. Mesmo o que é óbvio se torna
polêmico. Quis o comandante do Exército, Edson Pujol,
chamar a atenção do presidente ao lhe oferecer o cotovelo em vez da mão em
um comprimento público? Qual a
razão de o bolsonarismo pagar penduricalhos ao militares em meio à crise fiscal?
A outra face desse fenômeno, com suas implicações
institucionais, envolve a confusão entre Exército e Nação e o ressurgimento de
um certo bacharelismo entre os militares. Ele tem como alvo o
artigo 142 da Constituição Federal e os limites da ação de cada
Poder. Muitos falam, mas poucos sabem do que se trata; e a velha confusão entre
doxa e episteme, tão antiga quanto o Partenon, reaparece. Só o Comando até
agora não falou. “Por dever de ofício”, disse um general. Nas últimas semanas,
o Exército se sentiu como um paciente em coma, ouvindo vozes ao redor. Em torno
da cama, muitos passavam e se perguntavam se ele os poderia ouvir. O paciente
se fingiria de morto, enquanto os doutores falavam…
Alguns vozes não passaram despercebidas. Uma delas foi a do ex-ministro da
Justiça Sérgio Moro. Ele escreveu um artigo na revista Crusoé com
o título Honra e Fuzis. Se tantos militares se puseram a
interpretar a Constituição, Moro se achou no direito de interpretar os
militares. O ex-juiz começou confessando o desconforto com os grupos que usavam
a Lava Jato para pregar um golpe de Estado em 2016, ano do impeachment de Dilma
Rousseff. Revela que, discretamente, pediu, por meio de um bilhete, a
manifestantes que carregavam uma faixa com os dizeres “intervenção militar constitucional”
que a recolhessem para evitar a confusão entre a luta contra a corrupção e a
pregação liberticida. Os turiferários atenderam ao magistrado.
O ex-ministro diz que tinha receio de que a Lava Jato
fosse identificada com a pauta antidemocrática, que seu objetivo não era
criminalizar a política, mas a “punição de políticos corruptos”. O
homem, que foi o mais popular ministro de Bolsonaro entre os militares,
concluiu: “Democracia é o temos como melhor forma de governo e a
única medida a fazer é melhorá-la, não acabar com ela.” Em vez de se juntar aos
amalucados, como fez Bolsonaro
em frente ao quartel do Exército, em Brasília, o ex-magistrado quis
mostrar juízo e responsabilidade, qualidades de quem sabe que não se defende a
democracia em manifestação que busca matá-la.
Moro quis mais: desejou exibir conhecimento da liturgia que
acompanha as autoridades que não se deixam levar por uma ralé composta por
oportunistas rancorosos e extremistas ressentidos, todos incompetentes para
obter reconhecimento social por seus próprios méritos, o que caracteriza os
setores radicais
do bolsonarismo. O ex-juiz procura distância de um governo
que, até 15 dias atrás, flertava com o caos de uma ruptura institucional nas
palavras do presidente ou nas notas oficiais dos generais-ministros.
“Intervenção militar constitucional era algo totalmente estranho à Lava
Jato. Nenhum dos agentes de lei envolvidos tratou desse tema ou
defendeu medida dessa espécie.”
Pode-se questionar o magistrado: se nenhum dos agentes da
lei flertavam com grupos autoritários, por que não os desautorizou publicamente
em vez de usar bilhetinhos? Por fim, Moro escreveu: “Não há lugar, porém,
para uma inusitada ‘intervenção
militar constitucional‘ para resolução de conflito entre
Poderes”. Ou mesmo invocar uma tutela do Exército sobre a República.
E conclui: “Os militares precisam ser honrados. A história mostra que
fizeram jus à confiança neles depositada nas batalhas mais difíceis. (…) Na
presente crise política, sanitária e econômica, precisamos dos militares,
mas não dos seus fuzis e sim de exemplos costumeiros de honra e disciplina.”
Moro precisa explicar para que, afinal, precisa de
militares, mas não de seus fuzis, se é justamente a posse das armas que os
caracteriza. O ex-ministro – como notou um general – parece incensar o soldado
cidadão e a visão
positivista de Benjamin Constant, tantas vezes presente em
rebeliões e intervenções na República, causando instabilidade política e
indisciplina na tropa. “Ele quer o soldado cidadão para impedir uma intervenção
do soldado cidadão”, disse um general. Não se vislumbra o ideal do soldado
profissional e apartidário bem como a defesa da neutralidade de seus
atos. Talvez o ex-magistrado conheça tanto os dilemas das relações
entre o Poder Civil e o Militar quanto o general-ministro Heleno
é um bom intérprete da Constituição.
O militar não deve servir de instrumento às conspirações do
Planalto e às da Planície. Saiu-se, no Brasil, de um
desconhecimento das questões ligadas à defesa nacional e aos militares para uma
“verborragia sem fundamento”, imprudente. Enquanto isso, “os profetas do
artigo 142 ganham holofotes e produzem mais confusão”. O silêncio das últimas
semanas recorda, para uns, a drôle
de guerre, o período de relativa calma que antecedeu a grande
ofensiva alemã de 1940. Para outros, ela seria uma détente? Constatação
de que a guerra entre os atores seria catastrófica, daí a necessidade de
reduzir tensões e buscar a convivência entre os Poderes, como em uma Guerra
Fria?
O general e deputado federal
Roberto Peternelli (PSL-SP), expoente da bancada militar no Congresso,
está otimista. Acredita que a tempestade passou, os gafanhotos não vieram e
agronegócio vai redimir o País. A queda
do ministro Abraham Weintraub é uma das razões de seu
otimismo. Acredita que agora seja possível desembaraçar as ações de um
ministério estratégico, como a Educação. Peternelli sempre foi assim:
acreditava que tudo se resolveria. Mas, de fato, livrar-se de um ministro
que mal sabia dançar ou escrever, mas se expunha ao ridículo por vaidade, em
vez de lealdade ao chefe, foi um feito para este governo.
Bolsonaro
sentou-se na cadeira presidencial como se fosse um tenente. Fez
o memento de patrulha, o documento em que devem constar as informações
necessárias à missão. O valentão escreveu ali que só precisava de faca e cantil
como “meios disponíveis” para governar sem coalizão. E foi o que recebeu. Sem
mapa, bússola, relógio, comida ou fuzil saiu com seus homens. Esgotada, a tropa
quer voltar à base e se reforçar com o Centrão. Se ele e os que o acompanhavam
confundiram o governo com uma aventura na selva, as instituições e a sociedade
mostraram ao presidente que não se governa com uma lâmina e um pouco de
água. E o pior: não há nada que garanta que, ao fim de tudo isso, haverá mais
compreensão entre militares e civis.
*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
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