sexta-feira, 26 de junho de 2020

O PAI DE TODOS

Carlos Marchi, Fundação Astrojildo Pereira

Ante a guerra iminente, no dia 2 de setembro de 1792, George Jacques Danton, o personagem mais encantador da Revolução Francesa, ditou um caminho para a França: “Il nous faut de l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace!” (*) Ele falava de enfrentamento da guerra, mas bem caberia como o discurso do paraninfo de uma turma de formandos em Jornalismo, evocando a maior virtude que aqueles jovens deveriam cultuar e praticar em sua futura vida profissional, posto que a audácia é a maior virtude do jornalista – desde que haja, nele, coragem necessária para forjá-la. Não será bom jornalista o que não for audaz.

Em vida, nunca ninguém se deu conta de que essas virtudes eram fartas em Carlos Castello Branco, o Castelinho, talvez por seu biótipo frágil, a voz débil, o falar engrolado e quase ininteligível, o perfil discreto, o horror aos exercícios físicos. Mas elas sobejavam nele, até porque lhe seria impraticável enfrentar de peito aberto a ditadura militar durante dezenove anos – em especial, nos anos de chumbo – sem ser audaz e sem dispor da indispensável coragem para sê-lo. Não era fácil enfrentar uma ditadura militar que perdera os freios – e Castelinho era o adversário número 1 escalado pelos militares, aquele que pacientemente debulhava os atos e explicava seu sentido autoritário, para que os leitores entendessem a tragédia da ditadura.

E, no entanto, ele nunca foi temerário, era cirúrgico; nunca foi abusado, era resolutivo; e nunca foi apressado, era paciente. Ao longo de trinta anos consecutivos, chovesse ou fizesse sol, escreveu 7.446 colunas, entre janeiro de 1963 e abril de 1993, lidas sofregamente todos esses anos pela inteligência brasileira. Seu artigo diário na página 2 do Jornal do Brasil contava ao lado consciente da sociedade o que estava acontecendo na República. Castelinho atravessou regimes e governos; começou sob o governo caótico de João Goulart, entrou pelo golpe de 1964, sustentou-se aos solavancos no autogolpe de 1968 e voltou ao esplendor no processo de redemocratização – seu canto de cisne.

Por que Castelinho foi um jornalista político referencial, diria, o pai de todos? Porque reunia um conjunto seletivo de atributos, além da natural audácia e da indispensável coragem.

A primeira qualidade primorosa de Castelinho era usar acurácia na apuração de dados para suas análises. Nunca se soube como ele obtinha informações, se por telefone, se por conversas reservadas com as melhores fontes da República. Por telefone não deveria ser, porque os telefones eram interceptados pelo SNI; mas o fato é que ele escrevia sua coluna nas manhãs, entre 10 horas e meio-dia; depois ia almoçar com seu grupo de amigos, sempre no mesmo restaurante. Por volta das 18 horas, saíam bêbados, cada um para sua casa. O único horário disponível para apurar era, portanto, a noite – e bêbado.

(A bebida não lhe alterava a coordenação mental, apenas aguçava os sentidos. Num sábado de manhã, eu estava sozinho no plantão da sucursal do JB, em Brasília, quando a porta da redação se escancarou bruscamente; era Castelinho completamente bêbado, com três laudas emboladas na mão – a coluna do domingo. Enrolando a voz, me disse: “Mande transmitir pro Rio.” Transmitir significava repassar por telex, o instrumento da época. Antes de me entregar, esbarrou numa mesa e as laudas caíram ao chão. Pensei: ‘Se o texto corresponder ao estado geral do autor, não teremos coluna do Castello amanhã’. Peguei as laudas, desamassei e li. O texto era uma perfeição).

Em segundo lugar, o refinamento, a elegância do texto. Castelinho usava frases não muito longas, sempre em sentido direto; poucos, mas bem ajustados adjetivos, sem maiores firulas ou ornamentos. Não fosse o requinte, o texto poderia parecer um relatório burocrático, porque apenas alinhava informações e dados que o leitor precisava saber para fechar um diagnóstico sobre a situação política relatada. Mas aquelas linhas pareciam saídas de um romance. E essa riqueza do texto vinha do seu conhecimento literário e dos tempos em que tentou ser romancista e se frustrou. Ele era impecável para narrar situações, mas talvez não dominasse a técnica da tessitura dramática de longo curso.

(No Rio e em Belo Horizonte, seus melhores amigos eram romancistas e poetas. Integrou a Turma de Minas, com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Murilo Rubião. No Rio, andava com Dalton Trevisan, de quem invejava o método, e Autran Dourado. Brigou com Carlos Drummond de Andrade quando eram jovens, mas os dois produziram uma emocionante reconciliação na velhice. Vivia envolto nesse mundo de criação literária, mas sua primeira e única novela, Arco de triunfo, não funcionou; ele percebeu e optou pelo jornalismo.)
Em terceiro lugar, ao longo dos anos, Castelinho ganhou a absoluta confiança de suas fontes e de seus leitores. Para um analista político, a confiança das fontes é a garantia da continuidade da fluidez de boas informações através dos tempos; e a confiança dos leitores é vital para manter o prestígio intocado e aceso. Ele manteve essa situação equilibrada, ininterruptamente, por mais de 50 anos de atuação profissional, cada vez mais prestigiado.

(O Jornal do Brasil se tornou a referência de jornal de qualidade no país. Ostentava algumas grifes e Castelinho era a principal delas; o Informe JB, feito por uma infinidade de ótimos jornalistas, sendo Ancelmo Góis, hoje em O Globo, um dos últimos; as outras eram a coluna de Zózimo Barroso do Amaral e Carlos Drummond de Andrade, no Caderno B, o melhor caderno de cultura e variedades do país. Era um jornal de texto primoroso e edição sempre brilhante. Era chique trabalhar no JB. Eu me gabo de ter ficado lá por 7 anos).

Em quarto lugar, não fugia das verdades incômodas. Castelinho as narrava do jeito que elas tinham acontecido, com as cores (ou ausência de cores) originais. Naturalmente, agregava ponderação às situações mais conflituosas ou difíceis, de forma a evitar que a narrativa induzisse o leitor para uma interpretação apaixonada. Mas não edulcorava fatos, falas ou personagens.

(Todo político queria ser citado na Coluna do Castello. Eu fui repórter do jornal e ouvia frequentemente pedidos de parlamentares que queriam ser apresentados a Castelinho).

Em quinto, era dono de uma memória elástica, mágica, surpreendente, que lhe permitia nunca fazer anotações de conversas e entrevistas, o que sabidamente estimula a fonte a falar mais e mais. Gravar uma conversa inibe instantaneamente a fonte; anotar frases e dados freia a liberdade de falar das fontes; não gravar e não anotar transmite confiança – e a fonte fala mais.

(Mário Andreazza era candidato a presidente pela Arena e achava que sua candidatura só ficaria madura se Castelinho fizesse uma coluna sobre ele. Pressionou seu assessor até que Castelinho topou jantar com ele. Andreazza falou por longas horas, Castelinho não fez nenhuma anotação. À saída era um Andreazza furioso: “Ele não fez nenhuma anotação! Não achou nada do que eu falei importante!” No dia seguinte, a coluna mencionava todas as ideias do candidato).

Em sexto lugar, Castelinho incorporou a seu estilo, ao longo do tempo, a virtude mais cultuada no Jornalismo – a dita imparcialidade. Tinha cuidados extremados para não se flagrar debruçado com certo engajamento em alguma posição político-partidária; o que revelava de suas filiações era apenas que prezava as liberdades públicas e as garantias de cidadania, a democracia e o respeito às instituições.

Enfim, com a mineiridade apreendida em minúcias, seus artigos diários alinhavam os fatos, mas também construíam uma proposta narrativa que se ordenava a partir de sua própria crença geral – chamemos assim o liberalismo clássico que era seu credo político-ideológico. Disse-me uma vez um professor de Comunicação da USP: “Ler a sequência das colunas de Castelinho significava fazer uma graduada incursão pela História do Brasil.” Sua coluna não era um texto de repórter ou redator, mas de comentarista – talvez dissesse melhor, de cronista político. Mas um cronista que tinha o minucioso cuidado de fazer interpretações sem parecer comprometido com elas.

Até que chegou a ditadura, e a fórmula antiga deixou de funcionar à perfeição. À medida que a ditadura encorpava e ficava raivosa, a elaboração diária de Castelinho passou a agregar uma linguagem meio cifrada, cheia de encriptações, as quais, curiosamente, foram captadas, decifradas e interpretadas por seus leitores. Castelinho passou a usar eufemismos e certas construções indiretas que suavizavam a narrativa – era o que dava para fazer na época. Na medida do possível, manteve a linguagem direta e objetiva, ancorada em fatos, pessoas e datas, confrontando suavemente versões díspares; mas nem sempre a censura aceitava isso.

A CENSURA
Por razões gerais e razões pessoais, nunca nutriu simpatia pelos militares brasileiros, talvez por detectar neles um repetido – ele talvez dissesse cansativo – e sintomático quisto autoritário. As razões gerais eram óbvias – o golpe de 1964, a agudização do endurecimento em sucessiva escalada contra as instituições democráticas; as pessoais, eram doridas – a morte do filho Rodrigo, em 1976, num acidente de carro inexplicável, que lhe legaria uma suspeição e uma dúvida irrespondível para o resto da vida.

Quando a ditadura militar sobreveio, ele já trazia a experiência de do enfrentamento de outra ditadura, a varguista, com a qual conviveu no começo da carreira jornalística. Quando teve de lidar com as “recomendações” do Dops percebeu que elas eram tão estúpidas quanto (e muito parecidas com) as instruções do DIP, na década dos 40, e, portanto, similares em causa e efeito.

Os censores militares eram reproduções do velho Ataliba, o censor que toda noite ia à redação do Estado de Minas para censurar a edição do dia seguinte. E Castelinho aprendera a lidar com eles.

(O aprendizado com Ataliba fora assim. No dia 22 de fevereiro de 1945, com o ditador Getúlio Vargas balançando no poder, o Correio da Manhã publicou, à revelia da censura, a entrevista de Carlos Lacerda com José Américo de Almeida. Alguém pular o muro da censura era a senha para os outros jornais; esperto, Assis Chateaubriand determinou a seus jornais que não aceitassem mais a presença dos censores.

No Estado de Minas, Castelinho, então secretário de redação, recebeu a ordem e esfregou as mãos – era o seu dia da caça. Ataliba chegou à hora aprazada, pendurou o chapéu panamá no cabideiro, pôs o paletó de linho HJ branco no espaldar, esparrachou-se na cadeira e pediu o jornal. Castelinho lhe disse secamente:
– Se você quiser ler o jornal, vai ter de comprar amanhã na banca. Porque aqui você não vai ler mais, não.
Calmo, Ataliba não se apoquentou. Levantou-se, vestiu o paletó, pegou o chapéu panamá e disse a Castelinho:
– Não tem importância. Um dia eu volto.
Saiu em silêncio. Voltou vinte e três anos depois, em 1968. Mas aí Castelinho já sabia como enfrentar e como driblar os novos Atalibas).

O difícil foi enfrentar a pressão interna, a partir de 1968, quando a censura apareceu na redação. Castelinho não convivia com os censores, pois escrevia de Brasília, mas seus textos faziam babar os militares. Ele aperfeiçoou os eufemismos, abrandou até o limite o que pudesse ser interpretado como crítica, mas evidentemente nunca satisfazia a censura – quando acionados, censores ampliam suas exigências a cada dia, como se tivessem índices de produtividade a cumprir.

A partir de 1969, com o governo Médici, tudo piorou para ele. Não porque a censura tivesse arrochado mais, mas porque o dono do Jornal do Brasil, Nascimento Britto, em intermináveis dificuldades financeiras, fechara um polpudo acordo de propaganda oficial para apoiar o governo. E aí Castelinho passou a ser o impasse central dessa desditosa aventura, não porque vivesse atirando pedras no governo, mas porque o governo militar pedia elogios, nada menos – e isso Castelinho não dava, nem mesmo de graça.

A situação se agravou a ponto de Nascimento Britto pedir que ele parasse de escrever sobre política e passasse a comentar fait-divers. Castelinho ligou para Fernando Pedreira e sondou se o Estadão o acolheria; Pedreira consultou Júlio de Mesquita Filho e ligou de volta – a resposta era um sim vigoroso. Castelinho pediu demissão e Nascimento Brito teve de recuar, porque não podia perder a maior grife do seu jornal. A solução era buscar uma forma de convivência; e Castelinho conviveu razoavelmente com o ditador, criticando-o em um nível suportável e sendo admirado por ele.

Em depoimento ao CPDOC, Roberto Médici contou que a Coluna do Castello era a primeira leitura de seu pai todos os dias, pareada com as informações recebidas do SNI, no auge da ditadura. Na viagem oficial que fez aos EUA, Médici apresentou Castelinho ao então presidente Richard Nixon como “o mais importante jornalista brasileiro”.

No governo Ernesto Geisel, que prometera a abertura lenta, gradual e responsável, Castelinho cobrava sempre que a velocidade da abertura aumentasse. Certa vez, criticou a renovação política na ditadura (como uma ditadura poderia propiciar renovação política?), que, a seu ver, fracassara. No fundo, não estava criticando o que (não) se fizera, mas cobrando que, doravante, houvesse mais abertura e democracia. Ele agia sempre assim, embrenhando-se nas frestas possíveis para disparar suas flechas democráticas, denunciando com moderação o autoritarismo e atropelando com habilidade as interdições decretadas pelo regime. Sempre em linguagem contida e elegante, impossível de ser rotulada como radical.

Quatro dias após o Pacote de Abril (1977), disse o que a imprensa não podia dizer: “Estamos definitivamente num Estado ditatorial, fundado em identidade ideológica dos seus chefes.” Na imensa maioria das vezes, acertava a dosagem. Em algumas, raras, errou. Foi preso uma vez, em 1968, após o AI-5 – e tratado com respeito pelos carcereiros.

E hoje? Como seria se Castelinho ainda escrevesse? Para quem enfrentou uma ditadura que esquartejou a Constituição e subverteu a hierarquia jurídico-institucional, explicar os arroubos pré-ditatoriais de hoje seria café pequeno para ele. Mas se escrevesse agora, ele estaria ajudando os brasileiros a entenderem consciente e objetivamente a proposital desarrumação institucional a que o Brasil tem sido submetido. Esta era a sua melhor função, que ele aperfeiçoou ao conviver com a ditadura: explicar os absurdos que se cometem fora da democracia.

Ao fim, quero explicar que Danton tem pouco – e, ao mesmo tempo, muito – a ver com Castelinho. O combativo tribuno francês se notabilizava pela oratória violenta – e nisto os dois estão em extremos opostos, pois Castelinho era péssimo de discurso (além de ninguém entender uma frase proferida por ele). A parecença dos dois, no entanto, está na devoção ao iluminismo e na crença de que o homem pode ser sempre melhor se absorver os princípios das ideias que promovem avanços civilizatórios. Na crença de que o homem deve ser, ao mesmo tempo, exigente e indulgente.
(*) “Precisamos de audácia, ainda audácia, sempre audácia!”

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