Ante a guerra iminente, no dia 2 de setembro de 1792, George
Jacques Danton, o personagem mais encantador da Revolução Francesa, ditou um caminho
para a França: “Il nous faut de l’audace, encore de l’audace, toujours de
l’audace!” (*) Ele falava de enfrentamento da guerra, mas bem caberia como o
discurso do paraninfo de uma turma de formandos em Jornalismo, evocando a maior
virtude que aqueles jovens deveriam cultuar e praticar em sua futura vida
profissional, posto que a audácia é a maior virtude do jornalista – desde que
haja, nele, coragem necessária para forjá-la. Não será bom jornalista o que não
for audaz.
Em vida, nunca ninguém se deu conta de que essas virtudes
eram fartas em Carlos Castello Branco, o Castelinho, talvez por seu biótipo
frágil, a voz débil, o falar engrolado e quase ininteligível, o perfil
discreto, o horror aos exercícios físicos. Mas elas sobejavam nele, até porque
lhe seria impraticável enfrentar de peito aberto a ditadura militar durante
dezenove anos – em especial, nos anos de chumbo – sem ser audaz e sem dispor da
indispensável coragem para sê-lo. Não era fácil enfrentar uma ditadura militar
que perdera os freios – e Castelinho era o adversário número 1 escalado pelos
militares, aquele que pacientemente debulhava os atos e explicava seu sentido
autoritário, para que os leitores entendessem a tragédia da ditadura.
E, no entanto, ele nunca foi temerário, era cirúrgico; nunca
foi abusado, era resolutivo; e nunca foi apressado, era paciente. Ao longo de
trinta anos consecutivos, chovesse ou fizesse sol, escreveu 7.446 colunas,
entre janeiro de 1963 e abril de 1993, lidas sofregamente todos esses anos pela
inteligência brasileira. Seu artigo diário na página 2 do Jornal do Brasil
contava ao lado consciente da sociedade o que estava acontecendo na República.
Castelinho atravessou regimes e governos; começou sob o governo caótico de João
Goulart, entrou pelo golpe de 1964, sustentou-se aos solavancos no autogolpe de
1968 e voltou ao esplendor no processo de redemocratização – seu canto de
cisne.
Por que Castelinho foi um jornalista político referencial,
diria, o pai de todos? Porque reunia um conjunto seletivo de atributos, além da
natural audácia e da indispensável coragem.
A primeira qualidade primorosa de Castelinho era usar
acurácia na apuração de dados para suas análises. Nunca se soube como ele
obtinha informações, se por telefone, se por conversas reservadas com as
melhores fontes da República. Por telefone não deveria ser, porque os telefones
eram interceptados pelo SNI; mas o fato é que ele escrevia sua coluna nas
manhãs, entre 10 horas e meio-dia; depois ia almoçar com seu grupo de amigos,
sempre no mesmo restaurante. Por volta das 18 horas, saíam bêbados, cada um para
sua casa. O único horário disponível para apurar era, portanto, a noite – e
bêbado.
(A bebida não lhe alterava a coordenação mental, apenas
aguçava os sentidos. Num sábado de manhã, eu estava sozinho no plantão da
sucursal do JB, em Brasília, quando a porta da redação se escancarou
bruscamente; era Castelinho completamente bêbado, com três laudas emboladas na
mão – a coluna do domingo. Enrolando a voz, me disse: “Mande transmitir pro
Rio.” Transmitir significava repassar por telex, o instrumento da época. Antes
de me entregar, esbarrou numa mesa e as laudas caíram ao chão. Pensei: ‘Se o
texto corresponder ao estado geral do autor, não teremos coluna do Castello
amanhã’. Peguei as laudas, desamassei e li. O texto era uma perfeição).
Em segundo lugar, o refinamento, a elegância do texto.
Castelinho usava frases não muito longas, sempre em sentido direto; poucos, mas
bem ajustados adjetivos, sem maiores firulas ou ornamentos. Não fosse o
requinte, o texto poderia parecer um relatório burocrático, porque apenas
alinhava informações e dados que o leitor precisava saber para fechar um
diagnóstico sobre a situação política relatada. Mas aquelas linhas pareciam
saídas de um romance. E essa riqueza do texto vinha do seu conhecimento
literário e dos tempos em que tentou ser romancista e se frustrou. Ele era
impecável para narrar situações, mas talvez não dominasse a técnica da
tessitura dramática de longo curso.
(No Rio e em Belo Horizonte, seus melhores amigos eram
romancistas e poetas. Integrou a Turma de Minas, com Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Murilo Rubião. No Rio,
andava com Dalton Trevisan, de quem invejava o método, e Autran Dourado. Brigou
com Carlos Drummond de Andrade quando eram jovens, mas os dois produziram uma emocionante
reconciliação na velhice. Vivia envolto nesse mundo de criação literária, mas
sua primeira e única novela, Arco de triunfo, não funcionou; ele percebeu e
optou pelo jornalismo.)
Em terceiro lugar, ao longo dos anos, Castelinho ganhou a absoluta confiança de
suas fontes e de seus leitores. Para um analista político, a confiança das
fontes é a garantia da continuidade da fluidez de boas informações através dos
tempos; e a confiança dos leitores é vital para manter o prestígio intocado e
aceso. Ele manteve essa situação equilibrada, ininterruptamente, por mais de 50
anos de atuação profissional, cada vez mais prestigiado.
(O Jornal do Brasil se tornou a referência de jornal de
qualidade no país. Ostentava algumas grifes e Castelinho era a principal delas;
o Informe JB, feito por uma infinidade de ótimos jornalistas, sendo Ancelmo
Góis, hoje em O Globo, um dos últimos; as outras eram a coluna de Zózimo
Barroso do Amaral e Carlos Drummond de Andrade, no Caderno B, o melhor caderno
de cultura e variedades do país. Era um jornal de texto primoroso e edição
sempre brilhante. Era chique trabalhar no JB. Eu me gabo de ter ficado lá por 7
anos).
Em quarto lugar, não fugia das verdades incômodas.
Castelinho as narrava do jeito que elas tinham acontecido, com as cores (ou
ausência de cores) originais. Naturalmente, agregava ponderação às situações
mais conflituosas ou difíceis, de forma a evitar que a narrativa induzisse o
leitor para uma interpretação apaixonada. Mas não edulcorava fatos, falas ou
personagens.
(Todo político queria ser citado na Coluna do Castello. Eu
fui repórter do jornal e ouvia frequentemente pedidos de parlamentares que
queriam ser apresentados a Castelinho).
Em quinto, era dono de uma memória elástica, mágica,
surpreendente, que lhe permitia nunca fazer anotações de conversas e
entrevistas, o que sabidamente estimula a fonte a falar mais e mais. Gravar uma
conversa inibe instantaneamente a fonte; anotar frases e dados freia a
liberdade de falar das fontes; não gravar e não anotar transmite confiança – e
a fonte fala mais.
(Mário Andreazza era candidato a presidente pela Arena e
achava que sua candidatura só ficaria madura se Castelinho fizesse uma coluna
sobre ele. Pressionou seu assessor até que Castelinho topou jantar com ele.
Andreazza falou por longas horas, Castelinho não fez nenhuma anotação. À saída
era um Andreazza furioso: “Ele não fez nenhuma anotação! Não achou nada do que
eu falei importante!” No dia seguinte, a coluna mencionava todas as ideias do
candidato).
Em sexto lugar, Castelinho incorporou a seu estilo, ao longo
do tempo, a virtude mais cultuada no Jornalismo – a dita imparcialidade. Tinha
cuidados extremados para não se flagrar debruçado com certo engajamento em
alguma posição político-partidária; o que revelava de suas filiações era apenas
que prezava as liberdades públicas e as garantias de cidadania, a democracia e
o respeito às instituições.
Enfim, com a mineiridade apreendida em minúcias, seus
artigos diários alinhavam os fatos, mas também construíam uma proposta narrativa
que se ordenava a partir de sua própria crença geral – chamemos assim o
liberalismo clássico que era seu credo político-ideológico. Disse-me uma vez um
professor de Comunicação da USP: “Ler a sequência das colunas de Castelinho
significava fazer uma graduada incursão pela História do Brasil.” Sua coluna
não era um texto de repórter ou redator, mas de comentarista – talvez dissesse
melhor, de cronista político. Mas um cronista que tinha o minucioso cuidado de
fazer interpretações sem parecer comprometido com elas.
Até que chegou a ditadura, e a fórmula antiga deixou de
funcionar à perfeição. À medida que a ditadura encorpava e ficava raivosa, a
elaboração diária de Castelinho passou a agregar uma linguagem meio cifrada,
cheia de encriptações, as quais, curiosamente, foram captadas, decifradas e
interpretadas por seus leitores. Castelinho passou a usar eufemismos e certas
construções indiretas que suavizavam a narrativa – era o que dava para fazer na
época. Na medida do possível, manteve a linguagem direta e objetiva, ancorada
em fatos, pessoas e datas, confrontando suavemente versões díspares; mas nem
sempre a censura aceitava isso.
A CENSURA
Por razões gerais e razões pessoais, nunca nutriu simpatia pelos militares
brasileiros, talvez por detectar neles um repetido – ele talvez dissesse
cansativo – e sintomático quisto autoritário. As razões gerais eram óbvias – o
golpe de 1964, a agudização do endurecimento em sucessiva escalada contra as
instituições democráticas; as pessoais, eram doridas – a morte do filho
Rodrigo, em 1976, num acidente de carro inexplicável, que lhe legaria uma
suspeição e uma dúvida irrespondível para o resto da vida.
Quando a ditadura militar sobreveio, ele já trazia a
experiência de do enfrentamento de outra ditadura, a varguista, com a qual
conviveu no começo da carreira jornalística. Quando teve de lidar com as
“recomendações” do Dops percebeu que elas eram tão estúpidas quanto (e muito
parecidas com) as instruções do DIP, na década dos 40, e, portanto, similares
em causa e efeito.
Os censores militares eram reproduções do velho Ataliba, o
censor que toda noite ia à redação do Estado de Minas para censurar a edição do
dia seguinte. E Castelinho aprendera a lidar com eles.
(O aprendizado com Ataliba fora assim. No dia 22 de fevereiro
de 1945, com o ditador Getúlio Vargas balançando no poder, o Correio da Manhã
publicou, à revelia da censura, a entrevista de Carlos Lacerda com José Américo
de Almeida. Alguém pular o muro da censura era a senha para os outros jornais;
esperto, Assis Chateaubriand determinou a seus jornais que não aceitassem mais
a presença dos censores.
No Estado de Minas, Castelinho, então secretário de redação,
recebeu a ordem e esfregou as mãos – era o seu dia da caça. Ataliba chegou à
hora aprazada, pendurou o chapéu panamá no cabideiro, pôs o paletó de linho HJ
branco no espaldar, esparrachou-se na cadeira e pediu o jornal. Castelinho lhe
disse secamente:
– Se você quiser ler o jornal, vai ter de comprar amanhã na banca. Porque aqui
você não vai ler mais, não.
Calmo, Ataliba não se apoquentou. Levantou-se, vestiu o paletó, pegou o chapéu
panamá e disse a Castelinho:
– Não tem importância. Um dia eu volto.
Saiu em silêncio. Voltou vinte e três anos depois, em 1968. Mas aí Castelinho
já sabia como enfrentar e como driblar os novos Atalibas).
O difícil foi enfrentar a pressão interna, a partir de 1968,
quando a censura apareceu na redação. Castelinho não convivia com os censores,
pois escrevia de Brasília, mas seus textos faziam babar os militares. Ele
aperfeiçoou os eufemismos, abrandou até o limite o que pudesse ser interpretado
como crítica, mas evidentemente nunca satisfazia a censura – quando acionados,
censores ampliam suas exigências a cada dia, como se tivessem índices de
produtividade a cumprir.
A partir de 1969, com o governo Médici, tudo piorou para
ele. Não porque a censura tivesse arrochado mais, mas porque o dono do Jornal
do Brasil, Nascimento Britto, em intermináveis dificuldades financeiras,
fechara um polpudo acordo de propaganda oficial para apoiar o governo. E aí
Castelinho passou a ser o impasse central dessa desditosa aventura, não porque
vivesse atirando pedras no governo, mas porque o governo militar pedia elogios,
nada menos – e isso Castelinho não dava, nem mesmo de graça.
A situação se agravou a ponto de Nascimento Britto pedir que
ele parasse de escrever sobre política e passasse a comentar fait-divers.
Castelinho ligou para Fernando Pedreira e sondou se o Estadão o acolheria;
Pedreira consultou Júlio de Mesquita Filho e ligou de volta – a resposta era um
sim vigoroso. Castelinho pediu demissão e Nascimento Brito teve de recuar,
porque não podia perder a maior grife do seu jornal. A solução era buscar uma
forma de convivência; e Castelinho conviveu razoavelmente com o ditador,
criticando-o em um nível suportável e sendo admirado por ele.
Em depoimento ao CPDOC, Roberto Médici contou que a Coluna
do Castello era a primeira leitura de seu pai todos os dias, pareada com as
informações recebidas do SNI, no auge da ditadura. Na viagem oficial que fez
aos EUA, Médici apresentou Castelinho ao então presidente Richard Nixon como “o
mais importante jornalista brasileiro”.
No governo Ernesto Geisel, que prometera a abertura lenta,
gradual e responsável, Castelinho cobrava sempre que a velocidade da abertura
aumentasse. Certa vez, criticou a renovação política na ditadura (como uma
ditadura poderia propiciar renovação política?), que, a seu ver, fracassara. No
fundo, não estava criticando o que (não) se fizera, mas cobrando que,
doravante, houvesse mais abertura e democracia. Ele agia sempre assim,
embrenhando-se nas frestas possíveis para disparar suas flechas democráticas,
denunciando com moderação o autoritarismo e atropelando com habilidade as
interdições decretadas pelo regime. Sempre em linguagem contida e elegante,
impossível de ser rotulada como radical.
Quatro dias após o Pacote de Abril (1977), disse o que a
imprensa não podia dizer: “Estamos definitivamente num Estado ditatorial,
fundado em identidade ideológica dos seus chefes.” Na imensa maioria das vezes,
acertava a dosagem. Em algumas, raras, errou. Foi preso uma vez, em 1968, após
o AI-5 – e tratado com respeito pelos carcereiros.
E hoje? Como seria se Castelinho ainda escrevesse? Para quem
enfrentou uma ditadura que esquartejou a Constituição e subverteu a hierarquia
jurídico-institucional, explicar os arroubos pré-ditatoriais de hoje seria café
pequeno para ele. Mas se escrevesse agora, ele estaria ajudando os brasileiros
a entenderem consciente e objetivamente a proposital desarrumação institucional
a que o Brasil tem sido submetido. Esta era a sua melhor função, que ele
aperfeiçoou ao conviver com a ditadura: explicar os absurdos que se cometem
fora da democracia.
Ao fim, quero explicar que Danton tem pouco – e, ao mesmo
tempo, muito – a ver com Castelinho. O combativo tribuno francês se
notabilizava pela oratória violenta – e nisto os dois estão em extremos
opostos, pois Castelinho era péssimo de discurso (além de ninguém entender uma
frase proferida por ele). A parecença dos dois, no entanto, está na devoção ao
iluminismo e na crença de que o homem pode ser sempre melhor se absorver os
princípios das ideias que promovem avanços civilizatórios. Na crença de que o
homem deve ser, ao mesmo tempo, exigente e indulgente.
(*) “Precisamos de audácia, ainda audácia, sempre audácia!”
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