Os tempos modernos
caracterizam-se pela racionalização crescente, dizem os cientistas sociais. Se
é verdade que nas culturas mais simples as crenças ditavam o que se devia
fazer, com a complexidade do mundo contemporâneo, sobretudo
pós-industrialização, a ciência substituiu as crenças. Se isso não vale para o
transcendental, devia valer como baliza para as decisões, em especial as que
implicam responsabilidade pública.
A ciência serve de
guia para recomendar o provado, não elimina a necessidade de juízo político e
moral sobre decisões a tomar. Dilemas difíceis chegam em situações de grande
incerteza, como agora, pois não só o futuro parece indefinido, mas o presente
se mostra volátil. Nestas horas é que mais se requerem lideranças para
responder a desafios que exigem soluções complexas. É tarefa de todos ajudar
nos resultados a partir do que se alcançou com o conhecimento. Mas os rumos são
de responsabilidade moral dos que lideram. Cabe a eles decidir com base no
conhecimento, pensando no que é bom ou mau para as pessoas.
Comentaristas
repetem que enfrentamos uma “tempestade perfeita”. Chove e venta copiosamente:
o coronavírus é pandêmico, a economia mundial está capenga, para não dizer
paralisada ou regredindo, e em muitos países os donos do poder creem em mitos –
que não são como os dos primitivos, aos quais não havia saber que se
contrapusesse.
Assustados com a
tempestade, os que, além de crer neles, pensam encarnar mitos, assumem ares de
valentia. Na verdade, receiam que sua força se esvaia no confronto com a
realidade, que não compreendem. Buscam culpados e inimigos, em vez de diálogo e
convergência para atravessar o temporal com o menor dano possível para a
economia e as pessoas, sobretudo as do andar de baixo.
Os que mandam nem
sempre entendem os sinais de outros setores da sociedade. Desde que inventaram
o “nós” contra “eles”, o adversário virou inimigo. E com inimigo não se
conversa, se destrói. A menos que se renda e, ajoelhado, repudie suas ideias
“subversivas”, que corroem a “ordem”. Não foi o atual governo que nos enredou e
se amarrou nessa disjuntiva sinistra, mas a responsabilidade por sua solução é
também de quem nos governa.
Em nosso país, com
uma tempestade perfeita, o “nós” contra “eles” é criminoso. A vítima é a
estabilidade da democracia, conquista civilizatória que nos tem permitido
resolver os conflitos políticos de modo pacífico. Quem a põe em xeque ou
silencia ante vozes autoritárias não é conservador, é atrasado, tem teias de
aranha na alma. É promotor da instabilidade e conivente com o retrocesso
civilizatório. Alguns são cultores da violência, do fanatismo e da ignorância.
Subversivos são os que assim procedem, não quem ergue a voz para preservar o
patrimônio comum de todos os brasileiros: a democracia que construímos.
Esta consideração alcança
todos, mulheres e homens, civis e militares, conservadores, liberais ou
progressistas. Só os reacionários, que têm no atraso sua bússola, não veem a
distinção entre inimigos e adversários. Estes podem ter visões e objetivos
diferentes dos que prevalecem nos que mandam, mas, se respeitadas as decisões
da maioria, as leis e a Constituição, a diversidade, a diferença, fazem parte
do jogo da democracia. Quando se substitui esta noção pela distinção entre
“bons” e “maus” como se houvesse uma guerra permanente, começa-se por querer
eliminar os “inimigos” e se termina por matar a democracia.
São tempos incertos
os que vivemos. Neles a liderança deve apelar à racionalidade, ao bom senso, ao
sentimento de solidariedade e de unidade nacional, admitir que não há caminhos
fáceis nem soluções mágicas, e o País deve buscá-los de braços dados. O Brasil
tem vulnerabilidades, como os grandes aglomerados urbanos onde milhões vivem do
trabalho informal em moradias precárias. Sem falar dos desempregados e dos que
perderam condições de se empregar. Tem limitações fiscais, que podem e devem
ser flexibilizadas num momento de emergência social e econômica, mas não podem
ser desconsideradas. E tem ativos como o SUS, instituições de pesquisa
científica como a Fiocruz, universidades como a USP e outras, epidemiologistas
de categoria internacional, militares e funcionários devotados ao serviço
público, uma sociedade civil ativa, governadores e prefeitos que arregaçaram as
mangas para enfrentar o desafio, uma imprensa atenta e instituições públicas de
controle a zelar pelo bem comum, etc.
O que nos tem
faltado é quem inspire, em vez de ódio e rancor, confiança em nós mesmos. Esta
requer serenidade de quem busca despertá-la nos compatriotas; exige compostura,
capacidade de convencer pelas ideias, e não pela ameaça.
O Brasil já contou
com políticas e políticos que despertavam confiança. Convivi com Tancredo
Neves, homem de fala mansa, mas de valores firmes. Foi um político de diálogo,
atento à necessidade de buscar denominadores comuns em momentos críticos. E com
Ulysses Guimarães, que sabia aliar ao diálogo a firmeza, quando necessário. E
assim outros.
Que sua lembrança
nos inspire a fazer frente aos arreganhos autoritários com firmeza e
serenidade. E novos líderes encarnem o espírito enérgico e conciliador que
marcou boa parte de nossa liderança, para em 2022 não se repetir a escolha
trágica de quatro anos atrás.
*Sociólogo, foi presidente da República
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