Jair Bolsonaro já havia decidido parar de trabalhar naquela
tarde, uma das primeiras de julho, quando recebeu dois de seus principais
correligionários no Palácio da Alvorada. A dupla, fiel aliada do presidente,
estava preocupada em esclarecer informações que haviam chegado ao ex-capitão
por meio de sua advogada, Karina Kufa. Bolsonaro ouviu com atenção o relato.
Era a quinta reclamação recebida em poucas semanas pelo presidente sobre Kufa,
sua representante em diferentes casos eleitorais e um dos poucos rostos
femininos num projeto de poder essencialmente masculino.
Nos dois meses anteriores, Bolsonaro havia sido procurado
por ministros, deputados e integrantes da cúpula do Aliança pelo Brasil, o
partido que ele tenta fundar há quase um ano, com queixas diversas sobre a
advogada. Todos os reclamantes diziam-se vítimas de intrigas criadas por ela,
feitas diretamente ao próprio presidente ou por meio de seus filhos e
principais assessores. Uma das acusações chegava a atribuir a Luís Felipe
Belmonte, o vice-presidente do Aliança, a intenção de pagar propina a
assessores do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para alavancar a sigla — ele
nega, enquanto ela afirma a interlocutores ter documentos para provar o que
diz. Mesmo na família presidencial, Kufa criou adversários. Um dos mais
irritados era — e ainda é — o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), por
causa de movimentos dela para isolar Frederick Wassef, seu ex-advogado, que
escondeu Fabrício Queiroz. Mas o rosário de lamúrias ao presidente tem sido
longo.
Chegaram a Bolsonaro relatos críticos a Kufa da parte de
Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação; Sergio Lima, marqueteiro do
Aliança pelo Brasil; Admar Gonzaga, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral
e advogado eleitoral do presidente, ao lado de Kufa; Célio Ribeiro, chefe de
gabinete de Bolsonaro; Luís Felipe Belmonte, vice-presidente do Aliança, e,
principalmente, de maneira irada, de Frederick Wassef.
O advogado que defendeu Flávio Bolsonaro durante meses e,
enquanto escondia Queiroz, desfilava pelos gabinetes do poder em Brasília e até
em programa de TV afirmando também representar o presidente, pediu a cabeça de
Kufa. Foi o único a ser tão explícito com a família presidencial sobre o que
achava que eles deveriam fazer com a advogada.
Não foi atendido de primeira, mas, desde os primeiros dias
de julho, quando Bolsonaro ouviu de dois de seus interlocutores de confiança
mais críticas a sua advogada, o presidente decidiu que afastaria Kufa,
gradativamente, como se não configurasse um rompimento. Assim, evitaria o
surgimento de um novo Gustavo Bebianno (ex-ministro), Alexandre Frota (deputado
federal), Joice Hasselmann (deputada federal), Luiz Henrique Mandetta e Sergio
Moro (ambos, ex-ministros), entre outros ex-aliados que saíram atirando. A
ideia agora é mantê-la a uma “distância segura”, para usar a terminologia
empregada por um de seus principais críticos.
Kufa, aos 40 anos, havia se tornado uma das mais poderosas
advogadas que orbitam no entorno da família presidencial. Foi Bebianno, o
ex-ministro de Bolsonaro que havia sido o coordenador da campanha de 2018, que
a indicou para equacionar junto à Justiça Eleitoral em São Paulo a situação do
diretório paulista do PSL, na época o partido do presidente. E foi em seu
escritório lilás, no Jardim Paulista, que Kufa se debruçou sobre a bagunça das
contas do PSL no estado, algo que precisava ser resolvido para que Eduardo
Bolsonaro não tivesse nenhum embaraço em sua candidatura a deputado federal.
O bom trabalho foi o que a catapultou para ser uma das
advogadas eleitorais da campanha, ao lado de Tiago Ayres, indicado por Bebianno
para coordenar a área do Direito Eleitoral. Havia sido Ayres quem indicara o
nome de Kufa, que ele havia conhecido anos antes em um evento em Brasília.
Nas semanas após a campanha, quando começaram os primeiros
atritos entre Bebianno e Eduardo — os ataques de Carlos Bolsonaro a Bebianno
ganharam mais holofotes, mas o zero três e o advogado também se desprezavam
mutuamente —, Kufa galgou os primeiros degraus do bolsonarismo.
Em meio à debacle de Bebianno no primeiro semestre de 2019,
Kufa foi aos poucos ascendendo. Outros advogados do entorno bolsonarista
atribuem a ela o afastamento de Ayres, ao afirmar para Eduardo que ele era mais
leal a Bebianno do que à família Bolsonaro. Pouco importava o fato de que havia
sido Ayres quem redigira o pedido de impugnação da candidatura de Lula ao TSE.
Espécie de padrinho de Kufa no governo até hoje, foi Eduardo
quem a recomendou para o pai. Em abril, ela recebeu um telefonema do Palácio do
Planalto. Bolsonaro queria vê-la. Dizendo na conversa confiar nela por causa
dos elogios de Eduardo, o desconfiado Bolsonaro entregou-lhe suas causas
eleitorais.
No segundo semestre de 2019, a ascensão de Kufa foi
meteórica. Em julho, deixou seu escritório em São Paulo e, separada, se mudou
com os dois filhos para uma casa no Lago Sul, em Brasília. Aproximou-se de
Luciano Bivar, presidente do PSL, de Antonio de Rueda, vice do partido, e de
algumas das principais figuras da sigla — hoje, é detestada por ambos. Passou a
transitar pelos jantares, palácios e gabinetes com cada vez mais desenvoltura.
Tornou-se amiga de Dias Toffoli e interlocutora de outros
ministros do Supremo Tribunal Federal. Com Augusto Aras e Humberto Jacques,
respectivamente o procurador-geral da República e vice-PGR, troca mensagens por
WhatsApp. Tem bom trânsito no Superior Tribunal de Justiça e criou laços também
nas embaixadas. Quem não gostaria de ser próximo da advogada do presidente?
Fez amigos, fiéis a ela mesmo diante da fritura. Disse Carla
Zambelli: “Karina faz pontes entre as pessoas. Até hoje deu indícios de ser
fiel ao presidente. Tem demonstrado nos últimos tempos abrir mão do poder
facilmente. No Aliança, ela está abrindo mão de poder para que outras pessoas
participem”.
Kufa tem atributos raros entre muitos dos bolsonaristas no
governo. Com boa retórica e carisma, sabe cativar. Gosta de dar entrevistas,
tem boa relação com jornalistas — uma das razões que fizeram Wajngarten se
queixar dela. É bem formada e tem nível cultural acima da média da Esplanada.
Suas redes sociais foram usadas ao longo desse tempo como uma vitrine de suas
relações, principalmente com o presidente e seus rebentos.
Recentemente, já escanteada, postou uma imagem à mesa da
sala do apartamento de Eduardo Bolsonaro, em Brasília, ao lado dele e de
Carlos, anunciando que também havia se tornado advogada do zero dois. A foto
foi postada em 9 de julho, mês em que Kufa procurou muitos dos que se queixaram
para Bolsonaro sobre ela para tentar se redimir.
Não conseguiu estabelecer esse canal de reconciliação com
Flávio Bolsonaro. O filho do presidente foi o primeiro a, irado, procurar o pai
para se queixar sobre a postura de Kufa no dia seguinte à prisão de Queiroz,
quando ela publicara uma nota afirmando que Wassef não era de fato
representante do presidente.
Naquela ocasião, Bolsonaro quase se indispôs com Célio
Faria, assessor-chefe de seu gabinete. Confrontada sobre o porquê de haver dito
aquilo oficialmente, Kufa afirmou que Faria lhe dissera que o presidente
autorizara. O presidente perguntou então a Faria, que negou ter respondido
positivamente a Kufa, quando ela o consultara.
Naquela semana, não era a primeira indisposição de Kufa com
o presidente. No dia em que a Polícia Federal bateu à porta de 26 bolsonaristas
suspeitos de atuar ou financiar atos antidemocráticos, Kufa deu uma entrevista
ao vivo, diretamente do estúdio de uma emissora de TV. Disse que aqueles que
tivessem se envolvido em algum ato ilegal, que atentassem contra a Lei de
Segurança Nacional, aliados do presidente ou da oposição, teriam de ser
responsabilizados. A entrevista irritou boa parte dos investigados, de
deputados a empresários amigos do governo.
Luís Felipe Belmonte é um homem já grisalho, com um sorriso
que o faz parecer o ator Carlos Alberto de Nóbrega e uma conta bancária que o
coloca no pódio do financiamento do Aliança pelo Brasil. Na última semana de
agosto, enquanto bebericava um suco de uva integral numa das diversas
cafeterias gourmet que tanto sucesso fazem em Brasília, Belmonte evitou
analisar a trajetória de Kufa, mas repetiu o que admitiu ter contado a
Bolsonaro para se defender das acusações que lhe eram imputadas.
Kufa sustenta que Belmonte, diante da dificuldade para tirar
o Aliança do papel, teria vindo com uma solução de fazer corar até os mais
encrencados pela Lava Jato: contratar assessores do TSE para validarem em dez
dias as assinaturas necessárias para a criação do partido.
Belmonte diz conhecer as acusações que rondam contra ele em
Brasília, mas nega que sejam verdadeiras. Ele conta que os problemas para
validar assinaturas começaram em fevereiro, quando integrantes do Aliança
perceberam que teriam somente cerca de dois meses para coletar todas as
assinaturas e validá-las a tempo de colocar o partido para concorrer às
eleições deste ano. Diz ter sugerido, então, a contratação de digitadores que
subiriam as informações no sistema. Nada ilegal. “Conversei com uma pessoa, que
me falou da dificuldade de colocar as fichas no sistema. Essa pessoa me disse
que, para colocar no sistema, você tem de contratar gente. Um exército de até
500 pessoas”, contou, desviando-se do sol da manhã que o incomodava.
Ainda segundo Belmonte, em fevereiro, ele foi à Câmara
consultar Eduardo Bolsonaro para saber se poderia seguir com a empreitada.
Recebeu do zero três uma negativa. Eduardo disse a ele que o pai não fazia
questão de ter o Aliança pronto para o pleito deste ano. Sem pressa, Belmonte
afirmou ter desistido e não ter levado a ideia de contratar os digitadores à
frente. Procurado para confirmar a informação, Eduardo não respondeu aos
pedidos de entrevista.
Sobre se Kufa poderia de fato ter provas contra ele, conforme
ela afirma a diferentes interlocutores, Belmonte foi taxativo: “Tenho certeza
absoluta de que ela não tem, mas também não guardo mágoa da Karina. Conversamos
depois disso e nos entendemos”, afirmou, em tom conciliador.
No Planalto, nem todos seguem esse tom. Wajngarten mostrou a
meio Palácio um print de uma mensagem de Kufa num grupo de WhatsApp em que ela
propunha, brincando, “subir a #sergiolimanasecom”. Sergio Lima, o marqueteiro
do Aliança, havia sido levado para o partido pela própria Kufa, mas, desde que
a história de que ele queria derrubar Wajngarten passou a circular no Planalto,
pessoas simpáticas a Wajngarten passaram a evitá-lo. O próprio secretário,
cioso que é de garantir seu espaço perto do presidente, passou a tratar Lima
friamente. No fim de julho, Lima aproveitou a ida ao Planalto para um evento e
puxou Wajngarten pelo braço. “Fui até o Fabio e disse que não queria o lugar
dele. Disse que não é nem um pouco meu objetivo sentar na cadeira dele. Ele me
disse: ‘Ainda bem que você acordou, porque você foi usado’”, contou Lima, em
uma conversa recente. E emendou: “Karina não é uma má pessoa. Sei que todo esse
episódio vai ajudar ela a ver como mudar”.
A relação de Kufa e Wajngarten não é boa há tempos. Certa
vez, depois de criticar a diferentes interlocutores a comunicação do governo,
Kufa não poupou palavras para, numa reunião em que estava o próprio Bolsonaro,
dar sua opinião sobre a política de comunicação do governo: “É horrível”.
Wajngarten ouviu calado naquele dia, mas anotou.
Há quem defenda Kufa. Admar Gonzaga, a quem a advogada
acusou de ter sido desleixado com o memorial de uma defesa de Bolsonaro no TSE
e ter cometido erros no processo de criação do Aliança, evitou polemizar.
Afirmou ser grato a Kufa por ela tê-lo defendido no caso, mostrado por ÉPOCA,
em que ele é réu por supostamente agredir sua mulher, Élida Souza Matos. “Não
quero comentar sobre nada disso. Sou grato a ela por ter me defendido”, disse.
Entre os deputados, apesar dos que ficaram insatisfeitos com
suas palavras à rede de TV CNN no dia dos atos antidemocráticos, é mais fácil
encontrar quem queira defender Kufa do que criticá-la. Ao menos publicamente.
“As pessoas ficam arranjando coisas contra ela. Ela não conspira, só fala bem
das pessoas. Ela representa tudo que o presidente precisa ter em seu entorno.
Uma conselheira capaz”, derreteu-se José Medeiros, deputado do Podemos de Mato
Grosso.
Procurada por ÉPOCA, para comentar ou rebater cada um dos
episódios que seriam contados, Kufa não quis responder.
Eduardo e Flávio Bolsonaro, respectivamente o filho que
defende e o que acusa — Carlos é neutro nisso —, não quiseram entrar
publicamente no tema. Nem o presidente e Wajngarten. Os quatro foram procurados,
informados sobre o teor da reportagem, mas se esquivaram de criticar ou
defender Kufa.
Entre estocadas mais duras, críticas sutis e afagos, houve
um padrão nas respostas das 16 entrevistas feitas por ÉPOCA para reconstruir
essa rede de intrigas em torno de Kufa. Ninguém quis ficar mal com a advogada.
Até porque muitos deles suspeitam que ela possa nestes 20 meses de governo ter
gravado muitas das conversas de que participou — o que Kufa nega para amigos.
Mas vai saber: Brasília ensina rápido.
Com Naomi Matsui
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