sábado, 31 de outubro de 2020

PRECISAMOS FALAR DAS MILÍCIAS

Flavia Lima, Folha de S.Paulo

Em 19 de setembro, a Folha produziu uma boa reportagem sobre a atuação de milícias no Rio de Janeiro. A matéria indicava que esses grupos vêm adaptando comportamentos para atuar em áreas ricas do Rio e oferecer o que já fazem em bairros periféricos: "proteção".

Com o objetivo de comentar a reportagem em crítica interna, fiz uma busca rápida na internet e, curiosamente, o que apareceu primeiro foi outra matéria da Folha com título bastante semelhante ("Milícia de policiais assedia área nobre do Rio"), porém publicada em dezembro de 2006.

Foi então que me dei conta de que os jornais cobrem pontualmente a questão, muitas vezes tratando como novidade um fenômeno antigo, o que contribui para a invisibilidade da questão, seu fortalecimento e incompreensão.

Um mês depois daquela matéria, o tema foi recolocado nas manchetes de todos os jornais a propósito de uma operação feita pela polícia do Rio de Janeiro que resultou na morte de 17 supostos milicianos.

Dias depois, em 19 de outubro, estudo inédito feito por uma rede de pesquisadores deu novo impulso a reportagens, ao mostrar que as milícias controlam 41 dos 161 bairros do Rio de Janeiro, o que corresponde a 57,5% da superfície territorial da cidade e compreende mais de 2 milhões de moradores.

Formadas no início dos anos 2000, as milícias são grupos constituídos por agentes do Estado (policiais e bombeiros), ex-agentes e civis, que controlam territórios por meio de extorsão de todo tipo de taxa a moradores e comerciantes, além de fazerem negócios nas áreas de construção irregular, manejo de lixo, contrabando e tráfico de armas e de drogas.

O domínio das milícias, sobretudo nas comunidades mais pobres do Rio, é assunto tão importante quanto a violência policial ou o tráfico. Portanto, é evidente o interesse público em entender como operam e de que forma as autoridades constituídas lidam com a questão.

Não é de hoje que a imprensa tenta abordar o fenômeno, com jornalistas experientes dedicados ao tema, em especial no Rio de Janeiro.

As eleições municipais também costumam trazer o assunto de volta ao debate, dado que é cada vez mais evidente a influência dos grupos paramilitares sobre vereadores e prefeitos das regiões que controlam.

Muitas vezes, no entanto, essa cobertura é feita de forma intermitente e, pior, sob risco.

Em maio de 2008, repórteres do jornal O Dia foram mantidos em cárcere privado e torturados por mais de sete horas quando preparavam uma série de reportagens sobre a atuação de milicianos na favela do Batan, na zona oeste do Rio.

Dez anos depois, milicianos foram apontados como responsáveis por matar a vereadora Marielle Franco, em uma demonstração de que nem imprensa, nem governos, nem polícia e Forças Armadas são obstáculos para um grupo que só se expandiu e se fortaleceu.

Há inúmeros desafios nesse tipo de cobertura. Um deles é que, para levá-la adiante, jornalistas dependem das fontes da polícia, um complicador em casos que envolvem quadros da própria polícia.

É comum que repórteres acabem reproduzindo o olhar punitivo das suas fontes do Judiciário, do MP ou da polícia, sem muita reflexão.

Muitas vezes também, os jornais se deixam pautar por operações vistosas, que certamente rendem publicidade aos chefes de polícia de ocasião, mas não atingem os modelos de negócio desses grupos, fazendo apenas com que troquem de mãos.

Por fim, esse tipo de corrupção das forças do Estado (reforço aqui a palavra corrupção) não deveria ser assunto exclusivo das editorias policiais—mas também de política.

Em entrevista ao Globo, o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso disse que é impossível pensar nos domínios exercidos por milicianos sem a conivência de batalhões, delegacias e políticos e, acrescento, a pouca atenção da mídia.

Paes Manso lembrou também, em artigo para a Folha, que o hoje presidente Jair Bolsonaro e seus filhos são defensores de longa data da violência fardada, inclusive da miliciana, próximos que sempre foram de figuras como o ex-PM Adriano da Nóbrega, que teve a mãe e a ex-mulher empregadas em gabinetes da família e que trabalhava, segundo depoimento, para um bicheiro quando foi homenageado por Bolsonaro.

Na leitura de Paes Manso, a eleição de Jair Bolsonaro marcou o fim da Nova República para inaugurar a imprevisível república das milícias.

Se isso é verdade, não dá para voltar a se dedicar ao tema daqui a outros dez anos, sob risco de nos depararmos sabe-se lá com que país.

É uma cobertura à qual a imprensa que se diz nacional precisa prestar mais atenção, dedicando mais tempo e investimento ao assunto, dando visibilidade a ele e fomentando o debate.

Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.

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ANARQUIA DE ALOPRADO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Com ares de ironia, como lhe era peculiar, o constituinte e antológico economista, pai do liberalismo nativo, Roberto Campos, alertou, décadas atrás, sobre o pendor ao casuísmo latente de seus pares de Congresso, de ontem e de hoje: “cada parlamentar sente uma tentação insopitável de inscrever no texto sua utopia particular”, disse o mestre Campos. Alguns deles vão ainda mais adiante na ambição e querem refazer o texto todo, rasgar a Carta e começar outra, para acomodar anseios quase sempre inconfessáveis – invariavelmente autoritários. E eis que o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, animou-se também a tirar a sua casquinha, jogando a ideia como balão de ensaio para ganhar uns minutos de fama, na esteira de uma interpretação às avessas do que ocorreu no Chile recentemente.

Lá foi aprovada a convocação de uma assembleia constituinte para finalmente enterrar a peça constitucional alinhavada pela ditadura militar de Pinochet com toda sorte de limitações aos direitos fundamentais, que vingava até hoje. O Chile andou de uns anos para cá no trilho dos princípios democráticos, embora amarrado a uma Carta repleta de retrocessos. Tenta agora a transição, sonhando com o modelo, que considera ideal, de uma constituição cidadã, tal e qual a brasileira, movida a compromissos sociais, em consonância com a modernidade do mundo.

No Brasil, ao contrário, foi redigida a Carta justamente quando o País saiu do regime das botinas militares, do obscurantismo que nos legou atos constitucionais espoliadores da liberdade, e ali, nos idos de 1988, a duras penas, iniciou a sua escalada bem sucedida de redemocratização. Situações distintas, objetivos inversos. Ricardo Barros, no incorrigível cacoete de varrer da frente obstáculos aos planos mirabolantes e ímpeto gastador dos atuais aliados do capitão, almeja empurrar o País no caminho de volta, de regresso institucional, mandando pelos ares avanços conquistados. Casuísmo na veia.

Barros é um prócere do Centrão. Como todos sabem, a alcunha de “Centrão” classifica aquele amontoado disforme de políticos aloprados, sem compromisso com nada, cuja convicção varia ao sabor dos interesses, sempre ligado ao oportunismo para levar vantagem onde der, que já apoiou o PT, pulando de galho em galho, até vir parar no outro extremo, nas hostes bolsonaristas, que lhe deram guarida porque o capitão assim quis. Ali aboletados, Barros e a tropa rasa baixo clero de Messias tentam esconder a incompetência jogando a culpa na Constituição que nada fez para o caos erigido por eles. Cabe a pergunta: mudar a Carta Magna a título de que? Quem levanta tamanha idiotice não entende nada de história, de governabilidade, de sentido das regras que regem uma nação e as sociedades em geral em qualquer parte do mundo.

Constituições são revistas, mudadas, quando se enfrentam transições de regime. O Brasil, ao declarar independência de Portugal, teve a primeira assembleia constituinte, convocada por Dom Pedro I, que quase dois anos depois outorgou a Carta pioneira desse imenso território. Ao sair da Monarquia para a República, o País refez o documento. Nos idos de 30, na entrada e saída de uma nova ditadura, mais duas cartas. E, assim, sucessivamente, cada uma delas prenunciando reviravoltas no sistema em vigor.

A hipótese de nova constituinte em pleno estado democrático de direito teria, como bem classificou o ex-presidente Michel Temer, constitucionalista por formação, odor de golpe. E nem poderia ser interpretada de outra maneira a artimanha, de caráter vil, grotesco e estapafúrdio. Diga-se, de passagem, que Barros não é o primeiro a levantar uma sugestão como essa fora de contexto. O quadrilheiro e ex-presidiário Lula aventou também a patacoada. Sua sucessora e poste, Dilma Rousseff impichada, idem. É típico dos espertalhões sem causa.

Hugo Chaves, na Venezuela, fez um lixo constitucional, acabou por dominar a suprema corte local, o parlamento e deu no que deu. Na Hungria a mesma coisa. Uma bobajada inominável. E todos precisam estar atentos à recorrente lição e importante aviso: sabe-se como começa uma assembleia constituinte, jamais como termina. Que monstro sairia daí, mexidas costuradas em pleno momento de instabilidade e sob o domínio do bloco do Centrão? Dá até medo imaginar.

No varejo, naturalmente, qualquer constituição apresenta falhas, defeitos de método e objetivo. Basta mudá-los. Se existem capítulos a melhorar, pactuem o ajuste dentro da lei. Como? Enviando projetos de emenda constitucional, conquistando três quintos dos congressistas na Câmara e no Senado, em duas votações, e emplacando os tais arranjos — se é que eles são mesmos necessários, muitos, com certeza, não. Dentro da normalidade do sistema é possível mexer em tudo! À exceção das cláusulas pétreas, o resto pode. Por que não buscar o roteiro convencional? Falta articulação, poder de convencimento, propostas razoáveis? E a culpa é de quem? Da Carta Magna é que não é.

Então, senhor Ricardo Barros, trate de realizar o seu trabalho, cumpra com a missão que lhe cabe de harmonizar interesses e negociações. Não consegue encaminhar as reformas? Incompetência sua! Não venha querer apagar uma Carta, pilar de nossa democracia, filosoficamente humanista, culturalmente civilizada, para cumprir etapas das tarefas devidas a sua pessoa. Do contrário, peça para sair. Não se pode violentar um arcabouço regimental da magnitude e beleza institucional como o que está em vigor — sem dúvida, o melhor já entregue ao País — para acobertar desajustes de uma gestão sem pé nem cabeça. Na gambiarra, não vai. Quer mexer em direitos? Por que não começa pelos seus e da comunidade elitizada dos servidores públicos? Os direitos do cidadão, ali contemplados na Carta — e dos quais o senhor reclama, por achar exagerados —, são os deveres do Estado.

O senhor quer cortá-los para acomodar propostas que outorgam mais poder a patota de sempre. Não é a Constituição que não cabe no Brasil de hoje, como alega. São intentos oportunistas, manobras usurpadoras como os que o senhor trouxe, que não cabem no instrumento normativo por todos nós referendado lá atrás. Vá trabalhar parlamentarmente. Quer aumentar a força do Executivo ou mexer na relação de poderes? Saiba que constitui uma ameaça gritante à democracia, algo que o povo não irá aceitar. O Brasil não tem problema constitucional. Tem, no momento, problema operacional, de controle, eficácia e competência de quem está sentado na cadeira do Planalto.

É patética uma discussão constitucional como a que foi proposta pelo deputado, líder de ocasião — quiçá com o aval velado do supremo comandante. Conversa jogada fora. Ele e os demais ali querem escamotear o fato de um governo que não consegue formar maioria, buscando mudar o País na marra. Vão catar coquinho! É melhor conviver com a incapacidade crônica do elenco, a falta de rumo, do que uma saída delinquente como tal. Cadê o projeto de governo? Não tem nenhum. Não há proposta de desenvolvimento, caminhos estruturantes. No que acredita a administração Bolsonaro? Quais os valores ali instaurados? Inexistem projetos para a Educação, para a Saúde, para o Meio Ambiente, para os Direitos Humanos, para a Cultura, para as Relações Externas. Nada avança. É desordem generalizada e com desmonte sistemático do aparato em funcionamento até a chegada dessa tropa ao poder.

Os ministros, os líderes de governo, o núcleo duro do pelotão de frente da era bolsonarista expõem em praça pública inabilidades notórias e para escaparem da balbúrdia rogam pela “solução mágica”. Presidente Bolsonaro e deputado Ricardo Barros, que lhe presta vassalagem, vão cobrar resultados dos ministros e façam alguma coisa de útil também. Não venham pressionar a sociedade para fazer uma nova Constituição. Que conversa é essa? Típica de governo encrenqueiro, retrógrado, perdido como o atual. De uma vez por todas, é bom que fique claro depois dos seguidos episódios de afrontas registrados nos últimos tempos: Não se pode mexer na forma do poder, nos direitos e garantias.

Sobre corte de direitos e vantagens, comecem por onde eles estão mais evidentes: na máquina do Estado, no Legislativo, no Judiciário e no Executivo. Depois disso, sim, o Brasil será diferente. É preciso que os políticos comecem a trabalhar a favor da sociedade e não o contrário. Fim dos privilégios é possível, desde que haja boa vontade de quem decide. Como pode um Centrão, que nunca foi para a oposição, falar em incoerência constitucional? É um escárnio o que se ouve desses políticos. Centrão apoiou o petismo e, logo a seguir, o bolsonarismo, fez e faz parte da base dos dois, e a incoerência é da Carta Magna? Os factoides precisam ceder vez a ações e projetos efetivos. Patética anarquia promove uma administração que não sabe priorizar os reais anseios do cidadão.

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CONTRATOS MILIONÁRIOS, DOAÇÕES GENEROSAS

João Pedroso de Campos, coluna MAQUIAVEL, VEJA

Irmão de Ciro, prefeito no CE recebe doações de empresários que contratou

Caçula dos irmãos Ferreira Gomes, que têm como expoentes o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), presidenciável de 2018, e o senador Cid Gomes (PDT), o prefeito da cidade de Sobral (CE), Ivo Gomes (PDT), busca a reeleição em 2020 naquele que é o berço do clã pedetista cearense e onde seu grupo político é hegemônico desde 1996.

Na disputa contra Oscar Rodrigues (MDB), Ivo tem tido em sua campanha a colaboração financeira de empresários com contratos milionários em sua gestão na prefeitura. Dos 831.000 reais arrecadados pela campanha do prefeito até o momento, 31.000 vieram de sócios de empresas cujos contratos em vigor somam 5,1 milhões de reais com a Secretaria de Infraestrutura de Sobral, conforme informações da prefeitura. Se considerados os contratos encerrados recentemente, em 2020, o valor chega a 5,6 milhões de reais. Na resolução que trata sobre financiamento de campanhas em 2020, Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não proíbe que empresários com contratos públicos façam doações políticas.

Sócio da Copa Engenharia Ltda, Carlos Eduardo Benevides Neto doou 20.000 reais à campanha de Ivo Gomes por meio de uma transferência eletrônica no último dia 14. A empresa dele tem um contrato em vigor com a prefeitura no valor inicial de 3,4 milhões de reais para pavimentação asfáltica e “tapa buraco”, firmado em janeiro deste ano e que vai até janeiro de 2021. Outro contrato da construtora com a gestão de Ivo Gomes, no valor de 441.216 reais, vigorou entre maio e setembro de 2020, para pavimentação de asfalto nas ruas de um bairro do município.

Outro fornecedor da prefeitura cearense que fez doação à campanha de Ivo Gomes é o português Pedro David Virgílio Santiago, que colaborou com 8.000 reais, também por meio de transferência eletrônica em 15 de outubro. Ele assinou dois contratos entre a Veco BR Comércio, Exportação e Importação de Parques Infantis e Mobiliários Urbanos e a prefeitura de Sobral em maio: um deles, com valor inicial de 1.037.550 reais, é para “aquisição de aparelhos de academia ao ar livre para instalação em praças” de Sobral; o outro, com valor inicial de 590.440 reais, prevê “aquisição com montagem de parques infantis nos espaços públicos” da cidade. Os dois contratos foram assinados em maio de 2019 e valem até 22 de maio de 2021.

O irmão de Ciro e Cid Gomes ainda recebeu 3.000 reais do empresário Allan Araújo de Aguiar, dono de uma construtora que leva seu nome. A doação foi feita por transferência eletrônica em 8 de outubro. A Allan Araújo de Aguiar Construtora tem um contrato em vigor com a gestão de Ivo Gomes, no valor de 35.372 reais, para construção do acesso a uma quadra na Vila Olímpica de Sobral. A data final do contrato é 17 de dezembro. A mesma empresa também foi contratada para obras de “requalificação” de uma praça no distrito de Patos, em Sobral, em um acordo no valor de 88.534 reais, fechado em setembro de 2019 e que vigorou até fevereiro de 2020.

Além dos empresários com contratos na prefeitura de Sobral, os irmãos Pedro e Alexandre Grendene Bartelle, da Grendene, doaram 300.000 reais à campanha de Ivo Gomes. A empresa dos Grendene é sediada em Sobral, onde tem seis fábricas de calçados, uma fábrica de PVC e um centro de distribuição.

A direção nacional do PDT também aportou 300.000 reais na campanha do prefeito, enquanto o empresário José Carlos Valente Pontes, outros 200.000 reais.

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ANATOMIA DO AMORALISMO BRASILEIRO

Bolívar Lamounier, O Estado de S.Paulo

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.

Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.

De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.

O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.

No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.

O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.

Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

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CINCO ANOS DE LAMA E IMPUNIDADE

Cristina Serra, Folha de S.Paulo

Cinco anos depois do maior desastre socioambiental do Brasil —o colapso da barragem de Fundão, em Mariana (MG)—, os atingidos vivem uma tragédia judicial. Até hoje ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama e de descaso que matou 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Dos 22 denunciados, 15 já se livraram do processo.

Além disso, as vítimas têm que lidar com uma disparidade de forças descomunal no Judiciário para tentar obter justas reparações. É difícil entender que as duas maiores mineradoras do mundo, Vale e BHP (controladoras da Samarco, dona da barragem), não tenham sido capazes de realizar estudos sobre o impacto da lama de rejeitos de minério na saúde dos moradores da bacia do rio Doce.

Sem esses estudos, como estabelecer valores adequados para as compensações? É sobre esse pano de fundo que se desenrola a trama judicial. Um episódio recente é esclarecedor. O Ministério Público Federal entrou com mandado de segurança contra atos do juiz Mário de Paula Franco Júnior, encarregado dos processos cíveis.

Segundo o MPF, nos acordos de indenizações, homologados pelo juiz, as pessoas só recebem os pagamentos se assinarem a quitação definitiva e a desistência de qualquer ação no exterior. A cláusula chama atenção porque a Justiça britânica está para decidir se aceitará uma ação bilionária contra a BHP, que tem uma de suas sedes no Reino Unido. Um escritório de lá representa 200 mil atingidos, alegando a morosidade do Judiciário brasileiro.

As indenizações, segundo o MPF, foram fixadas em tempo recorde, sem prévia análise de danos e em valores irrisórios. O dano moral, por exemplo, foi calculado em R$ 10 mil. Os procuradores levantam suspeitas de “lide simulada” entre o escritório de advocacia que lidera os pedidos de indenização (formado em junho deste ano) e as mineradoras, que, de forma inusual, não contestaram as sentenças. O juiz Mário Franco Júnior disse que não se manifestará.

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UMA PARTE DE MIM É TODO MUNDO

Cleomar Almeida, Fundação Astrojildo Pereira

Henrique Brandão faz homenagem aos 90 anos do poeta Ferreira Gullar

No mês de setembro deste ano, o poeta Ferreira Gullar completaria 90 anos. Não conseguiu receber as devidas homenagens. Faleceu em dezembro de 2016, dois meses depois de completar 86 anos, como lembra o jornalista Henrique Brandão. Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, ele lembra que o poeta, cujo nome de batismo era José Ribamar Ferreira, “era um homem de hábito simples”.

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. “Magro, com a cabeleira escorrida ao longo do rosto, o nariz adunco e as mãos expressivas – que gesticulavam sem parar enquanto falava – não passava despercebido onde quer que estivesse”, escreve Brandão sobre Gullar.

Além de poeta, Gullar foi jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista e dramaturgo. Participou ativamente do Concretismo e do Neoconcretismo, movimentos importantes no cenário da cultura brasileira, nos anos 1950. “Gullar entrou tarde na política. Já rompido com o Neoconcretismo, participava do Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), quando ocorreu o golpe de 1964”, lembra Brandão.

“Eu me filiei ao PCB [Partido Comunista Brasileiro] no dia do golpe de 64. Eu queria participar da resistência a um regime que se impunha ao país pela força”. Após o fechamento da UNE (União Nacional dos Estudantes), Gullar e seus companheiros fundaram o grupo Opinião, que, segundo Brandão, teve grande repercussão com suas peças e shows musicais.

Após o AI-5, em 1968, o regime militar apertou o cerco. “Sobrou para todo mundo que se opunha à ditadura, até mesmo para os comunistas ligados ao PCB, que não defendiam a luta armada. A essa altura, Gullar fazia parte do Comitê Cultural do PCB”, escreve o autor do artigo na Política Democrática Online.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

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MOURÃO, O VICE-PRESIDENTE, DESAFIA O DONO DA CANETA BIC


Do Blog do Noblat, VEJA

Beleza! À falta de com quem mais brigar, o presidente Jair Bolsonaro, que não consegue que seus ministros parem de brigar, decidiu enfrentar o general Hamilton Mourão, o vice-presidente e seu substituto imediato. É verdade que Mourão fez por onde.

Bolsonaro disse e não se cansa de repetir que o governo federal não comprará a vacina chinesa para não dar gosto ao governador de São Paulo João Doria (PSDB), seu patrocinador. Sabe-se que isso não passa de marola, mas não vem ao caso.

Em entrevista à VEJA, Mourão disse o contrário: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai. Já colocamos os recursos no Butantan para produzir a vacina. O governo não vai fugir disso aí”. Foi o que bastou. “A caneta Bic é minha”, respondeu Bolsonaro.

Mourão passou a falar para dentro da caserna, mas também para fora, desde que concluiu que não tem futuro como candidato na chapa de Bolsonaro à reeleição. Sonha com uma cadeira no Senado, como admitiu à VEJA. Talvez pelo Rio Grande do Sul.

Os militares cavalgaram a candidatura de Bolsonaro a presidente só para barrar as chances de o PT ganhar a eleição de 2018. Em 2022, se o PT não tiver chance, poderão abandonar Bolsonaro e cavalgar outro nome. Os generais andam irritados com o capitão.

A derrota bate à porta de Russomanno e de Crivella

Os candidatos de Bolsonaro

A história ensina que a duas semanas do dia da eleição, é mais fácil que cresça um candidato atrás nas pesquisas de intenção de voto do que se recupere outro que só tem feito cair. Este é o drama que enfrentam Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio, ambos candidatos do partido Republicanos a prefeito.

A situação de Crivella é pior. 55% dos eleitores entrevistados pelo Ibope esta semana disseram que não votarão nele de jeito nenhum. Crivella aparece empatado com a Delegada Martha Rocha (PDT) que subiu de oito pontos percentuais para 14. Crivella oscilou dois pontos percentuais para cima, dentro da margem de erro.

Em São Paulo, enquanto Bruno Covas (PSDB), candidato à reeleição, cresceu quatro pontos e alcançou 26% nas intenções de voto, Russomanno perdeu cinco pontos e está com 20%. Poderá ser ultrapassado por Guilherme Boulos (PSOL) que saltou de 10% para 13%, ou até por Márcio França que passou de 7% para 11%.

Covas torce para enfrentar Boulos. No Rio, o líder da pesquisa, o Eduardo Paes (DEM), torce para que Crivella reaja. O perigo para Paes seria Martha Rocha. Em apuros, Crivella e Russomano gravaram um vídeo de propaganda com Bolsonaro onde o presidente pede que seus seguidores votem neles.

A rejeição a Bolsonaro é maior em São Paulo do que no Rio. Mas o apoio de Bolsonaro a Russomanno é mais sincero do que o apoio a Crivella. Em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro disse sobre Crivella: “E terminando agora, um nome que dá polêmica, né. Porque o Rio de Janeiro sempre é polêmico.”

E em seguida: “Eu tô aqui com o Crivella, tá certo. Conheço ele há muito tempo. Foi deputado federal comigo.” A respeito de Paes, sem citar seu nome, afirmou: “Eu não quero tecer críticas, é um bom administrador. Mas eu fico aqui com o Crivella”. De fato ficou, não sem antes advertir:

– Se não quiser votar nele, fique tranquilo. Não vamos brigar entre nós por causa disso aí porque eu respeito os seus candidatos também.

Crivella está frito. Russomanno ainda alimenta alguma esperança.

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O INFERNO DA (IN) SEGURANÇA

Raul Jungmann, Capital Político

A morte volta a triunfar sobre a vida e o seu sucesso se mede pelo número de óbitos, segundo o Anuário da Segurança Pública de 2020. Isto é, as mortes violentas, que vinham caindo desde 2018, voltaram a crescer no primeiro semestre do ano, 7.1%.

No mesmo dia em que o anuário registrava a estatística mórbida, a pesquisa “Mapa dos Grupos Armados do Rio” constatava que 57% do território da cidade do Rio de Janeiro e quase um terço da sua população (dois milhões de habitantes), vive sob o domínio da milícia. Ainda nesse dia aziago, a Polícia Federal informava que os registros de armas cresceram 120% em 2020.

Das trevas do nosso sistema prisional emergia a informação de que 75% dos 862 mil apenados, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) são negros e pobres. Eis, num único dia, a síntese do inferno da (in)segurança no Brasil e da ausência de uma política nacional pública de segurança sob o atual governo.

A pandemia veio agravar o desemprego crescente, na casa dos 14%, sem contar outros 10 milhões que deixaram de procurar trabalho – talvez pendurados no auxílio emergencial de difícil continuidade, elevando as tensões sociais.

Diante disso, o que faz o governo? Afrouxa os controles sobre a venda de armas, já responsáveis por 77% das mortes violentas. O Susp – Sistema Único de Segurança Pública – e a Política Nacional de Segurança, heranças do extinto Ministério da Segurança, foi enterrado sem cerimônia; a letalidade policial aumentou 6% e a morte de policiais 16.6% no semestre. Enquanto o feminicídio subiu 7.1%, no mesmo período.

Em paralelo, o orçamento do governo federal para a segurança, equivalente a 11% % do gasto total, caiu 3.8%%! A política de combate às drogas, reconhecidamente falida, segue levando milhares de jovens negros, pobres, de baixa renda e precária educação, para as garras das 70 facções de base e origem prisional. Estas, dominam quase 80% das 1.500 unidades prisionais do país e de lá de dentro controlam o tráfico e a violência nas ruas.

Esses jovens, os 11 milhões de “sem-sem” – sem escola e sem trabalho -, não são alcançados por nenhum programa nacional que reduza as suas vulnerabilidades ao chamado do crime, o que os faz 55% da terceira maior população prisional do mundo. Pior: cresce 8% ao ano, num sistema prisional superlotado, com o dobro de presos para as vagas disponíveis.

Conclusão: sem uma política nacional de segurança, que contemple a reforma do sistema prisional, um programa nacional para a juventude vulnerável, nova política de drogas e a reforma das nossas polícias, dias piores virão.

*Raul Jungmann – ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

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CRUZADAS ANTIABORTO

Editorial Folha de S.Paulo

Em trecho de um documento oficial intitulado Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil, que traça diretrizes para o período 2020-2031, o governo Jair Bolsonaro achou por bem encampar a retórica de movimentos conservadores contrários ao aborto.

Dentre as medidas voltadas a “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, o texto do Planalto define como meta “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.

É legítimo, obviamente, que um presidente ou qualquer outro político defenda suas convicções e busque levá-las, pelos meios democráticos, às políticas públicas. Isso dito, cumpre apontar que a associação entre desenvolvimento e restrição a direitos de interrupção da gravidez destoa da experiência das sociedades mais avançadas.

Como advoga esta Folha, trata-se de tema a ser encarado sob a ótica da saúde pública, de modo a preservar a vida e a segurança das mulheres. Assim tem entendido um número crescente de países.

O governo brasileiro esteve em má companhia ao assinar, neste mês, certa Declaração de Consenso de Genebra —do suposto consenso antiaborto participavam outras 30 nações, entre elas os EUA de Donald Trump, a Hungria de Viktor Orbán, Indonésia, Egito e Uganda.

A gestão Bolsonaro, ademais, atenta até contra as possibilidades previstas na lei e na jurisprudência —os casos de estupro, risco à vida da mãe e feto anencéfalo.

Portaria do Ministério da Saúde criou constrangimentos para os médicos que realizam procedimentos; revelou-se que a pasta de Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tentou intervir na interrupção da gravidez de uma menina estuprada de apenas dez anos.

O cerco, infelizmente, não se dá apenas por parte do Executivo federal —como se viu na recente decisão do Tribunal de Justiça paulista de impedir que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, favorável à legalização do aborto, utilize a referência religiosa em seu nome.

Beira o escárnio que uma corte judicial em um país laico se arrogue o direito de dirimir questões eclesiásticas, em violação à liberdade constitucional de associação.

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TRABALHO INFORMAL, GUILHOTINA E FOME

Luiz Guilherme Piva, Folha de S.Paulo

Vendedores, motoristas, operários, jardineiros, guardas-noturnos, babás, bilheteiras, faxineiros, baleiros e garçons integram o contingente de quase 40 milhões de pessoas no trabalho informal no Brasil, mais de 41% da população ocupada, recorde desde o início da pesquisa PNAD Contínua do IBGE, em 2016. Destes, 25 milhões são trabalhadores por conta própria, e 12 milhões, empregados sem carteira assinada.

Eles estão por todo lado: nas rodoviárias, nas motos, balançando nas construções, tocando sanfona, vendendo fumo e, na imensa maioria, vivendo na pobreza, somando-se aos mais de 12 milhões de desempregados e aos miseráveis que passam fome, tema que retomo adiante.

A existência desse contingente causa enorme perda de receita da Previdência —hoje, apenas 62,4% da população empregada é contribuinte do INSS— e reduz a renda, o consumo, a arrecadação de tributos, os investimentos, o crescimento e, ao fim, a geração de empregos, situação agravada pela política macroeconômica restritiva em curso há cinco anos. Além disso, dificulta o próprio enfrentamento de questões centrais.

Tome-se a reforma tributária: como incluir no sistema, com eficiência e justiça, esses milhões de brasileiros —que, aliás, dada a predominância da tributação indireta, já pagam, nos seus gastos básicos, proporcionalmente mais impostos do que os ricos? Igualmente as políticas de inovação e produtividade: com que mão de obra avançar nesses campos? E como reduzir o que muitos economistas criticam como gastos obrigatórios com saúde, educação e assistência? Talvez contando com a morte, de fome, de bala ou vício, da maioria dessas pessoas.

A adoção da reforma trabalhista, em 2017, no meio da maior recessão da nossa história moderna, certamente contribuiu para o desemprego e a informalidade. Buscava-se a primazia do negociado sobre o legislado, o que seria razoável se as partes em negociação estivessem em condições equiparáveis de interlocução. No meio da recessão, porém, o que se instalou foi a negociação do pescoço com a guilhotina. As cabeças seguem rolando.

Uma sugestão (a ser estudada) para incentivar a formalização da mão de obra e, de quebra, aumentar a arrecadação da Previdência, é estabelecer a contribuição previdenciária dos empregadores com base não no tamanho da folha de salários, mas numa razão (R) entre faturamento (ou valor agregado, ou lucro) no numerador e folha de salários formalizada no denominador. Quanto maior o R, maior a alíquota, numa curva discreta, com degraus suaves. Com isso, incentiva-se o emprego formal e diferenciam-se, na contribuição, os setores intensivos em capital dos intensivos em mão de obra.

Voltando à fome. Segundo o Ministério da Saúde, em média 15 pessoas morrem de fome por dia no Brasil; quase 6.000 por ano. Estudo da FAO contabiliza 5 milhões de brasileiros desnutridos. Para o IBGE, ao menos 15 milhões vivem em situação grave ou moderada de insegurança alimentar.

Crianças com até cinco anos são 10% desse montante. São justamente essas crianças que comem luz que, se não desencarnam, acabarão integrando o contingente dos brasileiros desempregados ou submetidos a trabalhos e empregos precários das estatísticas que abrem este artigo. Mas ninguém pergunta de onde essa gente vem.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

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NO REINO DO PODER

Luigi Mazza, PIAUÍ

O lobby discreto – e cada vez mais eficaz – dos juristas evangélicos

A sabatina ocorreu por videoconferência e durou a tarde toda. Das 13 às 18 horas, passaram pela sala virtual os três candidatos ao cargo de chefe da Defensoria Pública da União (DPU), órgão federal que presta assistência jurídica gratuita aos mais necessitados. O último candidato do dia, Daniel Macedo, que trabalha como defensor público no Rio de Janeiro há treze anos, encarou a entrevista com a solenidade das cerimônias oficiais. Vestindo terno e gravata, foi questionado por menos de uma hora e saiu-se muito bem. Prometeu que, em sua gestão, daria voz a grupos antiaborto, defendeu a presença de missionários em aldeias indígenas, mostrou-se preocupado com ameaças contra a liberdade religiosa no país e deu uma informação biográfica irrelevante para quem pleiteia um cargo público, mas fundamental naquele contexto: é evangélico e frequenta a pequena Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

A banca examinadora era composta por cinco advogados da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), uma entidade particularmente ativa na defesa dos interesses evangélicos no meio jurídico. Naquela tarde de 6 de agosto, os advogados sabatinaram os três integrantes da lista tríplice de candidatos a defensor público-geral por uma razão elementar: a lista é mandatória. Ou seja: o presidente da República é obrigado por lei a escolher um dos nomes da lista, de modo que o futuro defensor, necessariamente, buscou se expor ao escrutínio da Anajure naquele dia. O atual ocupante do cargo, Gabriel Oliveira, era candidato à recondução por um novo período de dois anos. Mas Daniel Macedo, o segundo mais votado da lista tríplice, acabou conquistando a banca. Por unanimidade.

Nos grupos de conversa de defensores, no entanto, a sabatina da Anajure causou alvoroço. É comum que um candidato a defensor público-geral receba apoio público de uma entidade, ou de algum grupo minoritário interessado em influenciar os rumos da DPU, mas nunca se teve notícia de uma entidade sabatinar um por um os candidatos como se liderasse um processo de seleção. “O fato de os candidatos, todos eles, terem aceitado participar da sabatina é uma indicação de que veem a Anajure como um ator importante na escolha do Bolsonaro”, diz um experiente defensor público federal, que pediu para não ter sua identidade publicada com receio de ser perseguido internamente.

Os conservadores e a ala mais militante do bolsonarismo combatem de frente a atuação da DPU. Ficaram revoltados no início do ano, quando um grupo de defensores públicos enviou à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, um ofício pedindo a suspensão de uma campanha do governo que defendia a abstinência sexual. Para evitar atritos com o governo, a direção da DPU fez uma nota procurando tomar distância do pedido. Em junho, em outro caso que irritou a direita, um grupo de defensores federais pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o afastamento do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que, apesar de comandar um órgão de defesa da cultura afro-brasileira, é um detrator obstinado do movimento negro e um negacionista do racismo no país.

No dia 13 de agosto, uma semana depois da sabatina, a direção da Anajure enviou um ofício ao presidente Jair Bolsonaro. Disse que o trabalho de Gabriel Oliveira era “digno de encômios”, mas que era preciso “avançar ainda mais na promoção de valores constitucionais – como é o caso do direito à vida desde a concepção –, que têm sido esquecidos em geral na atuação da DPU”. E informava que o candidato Daniel Macedo se comprometera, entre outras coisas, a criar “um grupo de trabalho em defesa dos direitos do nascituro”, um eufemismo para referir-se a restrições ao direito de aborto. Macedo prometera uma guinada na DPU, que, sendo um órgão voltado para a defesa da população mais vulnerável, historicamente apoia mulheres pobres em situação de risco que, entre outras coisas, recorrem à interrupção da gravidez dentro da lei.

A Frente Parlamentar Evangélica, que reúne mais de cem deputados e senadores, começou então, nas palavras de um assessor, a “aquecer” o nome de Macedo. No fim de agosto, o líder da bancada evangélica, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), pastor da Assembleia de Deus, também enviou para Bolsonaro uma correspondência endossando a nomeação do defensor. No dia 8 de setembro, Bolsonaro recebeu Macedo e sua esposa para uma conversa no Palácio do Planalto, testemunhada pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira. Antes que o dia acabasse, Daniel Macedo, 44 anos, fora premiado com a indicação de defensor público-geral da União. Agora, ele precisa passar pela sabatina do Senado, que ainda não foi marcada. Desde que a DPU foi criada, em 1994 nunca os senadores rejeitaram um nome indicado pelo presidente.

Macedo reconhece que o apoio da Anajure alavancou seu nome na disputa. “Mas minha gestão nunca vai ser marcada pela minha religiosidade”, disse o defensor, em entrevista à piauí. No entanto, fiel às promessas que fez durante a sabatina, ele prosseguiu com o seguinte raciocínio: “Hoje a gente vê de forma velada uma perseguição aos cristãos no Brasil. E acho que a DPU tem que refletir a pluralidade da sociedade. Se uma parte da Defensoria defende o aborto, temos que ter outra parte que defenda a vida. Senão vira um patrulhamento de um lado só.”

AAnajure começou a nascer em 2007, quando três advogados, todos nordestinos e calvinistas, se conheceram durante um evento evangélico em Campina Grande, na Paraíba. Ao trocar ideias, o sergipano Uziel Santana e os paraibanos Ênio Araújo e Valter Vandilson perceberam que tinham um diagnóstico em comum. Na opinião deles, faltava uma entidade para dar respaldo técnico às propostas evangélicas no Congresso. A ideia inicial não era criar uma associação para emplacar indicados em cargos públicos, mas oferecer subsídios ao trabalho da bancada. Eles avaliavam que os parlamentares evangélicos produziam mais barulho, com seus discursos espetaculosos, do que resultados práticos.

Com esse objetivo, passaram a rastrear advogados e juristas da mesma fé pelo país todo. Uziel Santana percorreu as principais capitais do Nordeste, reunindo-se com pessoal evangélico do direito. Em pouco tempo, conseguiu criar contatos em quinze estados e estabelecer um escritório em Brasília, próximo à Esplanada dos Ministérios. Finalmente, em novembro de 2012, em um auditório no subsolo da Câmara dos Deputados, aconteceu o lançamento oficial da Anajure. Ali mesmo, deu-se a posse simbólica da primeira diretoria. Uziel Santana foi nomeado presidente, cargo que ocupa até hoje. Entre os presentes, estavam parlamentares evangélicos como Magno Malta (PR-ES) e Arolde de Oliveira (PSD-RJ). A única mulher na diretoria, a então assessora jurídica da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso, Damares Alves, tomou posse como diretora de Assuntos Legislativos.

O objetivo inicial de apoiar a bancada evangélica não demorou a tropeçar em certas divergências teológicas. Quase todos os cargos de direção da Anajure eram ocupados na época – e são até hoje – por religiosos ligados às igrejas protestantes tradicionais, também chamadas de “igrejas históricas”, que chegaram ao Brasil em ondas. Algumas denominações foram trazidas por imigrantes franceses, holandeses e alemães, ainda no século XVI, e outras vieram pelas mãos de missionários norte-americanos, no século XIX. No universo evangélico, as denominações históricas destoam das pentecostais e neopentecostais, que surgiram no século XX e cresceram a partir dos anos 1970. Os fiéis das igrejas históricas são apenas 7% da população brasileira (contra 22% dos pentecostais), de acordo com pesquisa do Datafolha de 2016, mas constituem uma minoria mais escolarizada e de maior renda. Eles não são adeptos da teologia da prosperidade, segundo a qual o pagamento do dízimo aumenta a riqueza material dos fiéis, e consideram o pentecostalismo uma distorção do Evangelho.

“A Anajure representa a articulação de um grupo relevante em termos de capital social, político e econômico”, diz Christina Vital da Cunha, professora de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), especializada no mundo evangélico, e que coordena um estudo sobre a participação de grupos religiosos na Justiça. Sendo a ponta de lança de uma elite intelectual e financeira no espectro evangélico, a Anajure teve dificuldade de superar as diferenças de classe e status com os deputados da bancada evangélica. Nos bastidores do Congresso, os juristas são vistos como presunçosos.

Em 2013, no ano seguinte à fundação da Anajure, surgiu a primeiro embate. O deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), que é pastor neopentecostal e já tinha se notabilizado por seus comentários racistas e homofóbicos, causou uma revolta generalizada naquele ano ao ser nomeado para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Pressionado para deixar o cargo, o deputado recorreu à Anajure. Uziel Santana, que participava de um evento religioso em Istambul, na Turquia, não lhe estendeu a mão. Ao contrário. Divulgou uma nota em que, sem mencionar o nome de Feliciano, dizia que a sua nomeação fomentava uma “tresloucada ‘guerra santa’” e beneficiava a atuação das “minorias anticristãs”. No meio do barulho, pressionada pela bancada evangélica, Damares Alves se desligou da Anajure que ajudara a fundar. Feliciano, depois de resistir até o final do ano, acabou renunciando ao cargo.

Até hoje, uma parte da bancada evangélica acusa a Anajure de ter abandonado um soldado ferido. “O Feliciano só durou o tempo que durou à frente da Comissão porque tivemos postura firme e resistimos à pressão da esquerda e da grande mídia”, relembra o deputado João Campos (Republicanos-GO), que na época presidia a Frente Parlamentar Evangélica. “Não nos vejo representados na Anajure”, afirma Feliciano, que não perdoa o tratamento que recebeu. “Penso que estão sendo um pouco soberbos quando acusam a bancada de muito histrionismo. Não foi com palavrório de doutor e conversa mole de advogado que seguramos o socialismo no Brasil”, diz ele, convicto de que, de fato, a classe operária brasileira estava a um passo do paraíso terrestre. Santana, por sua vez, conserva as críticas aos neopentecostais. “O Feliciano tem uma ‘igreja empresa’ que temos muita dificuldade em chamar de evangélica. É uma teologia distorcida. Não temos relação nenhuma com ele, nem queremos ter.” E completa, dizendo que a associação não se dá bem com a “turma do far-right”. “Quando a Anajure surgiu, eles pensavam que nós seríamos um braço do exército deles. Não somos.”

O deputado Silas Câmara, que preside a Frente Evangélica, vem se empenhando em sarar as feridas. Em contato com a Anajure, Câmara encontrou um terreno que deputados e juristas evangélicos miram com grande interesse: o Supremo Tribunal Federal. Mas não é um trabalho fácil. Em agosto, houve um salseiro e tanto: as partes não conseguiram chegar a um consenso sobre quem falaria durante uma reunião virtual com o ministro Edson Fachin, na qual se discutiria o abuso do poder religioso nas eleições. Feliciano protestou contra a participação de Santana, que acabou desistindo de falar na reunião. Silas Câmara, irritado com o confronto, também pulou fora. Recentemente, Câmara promoveu uma reunião entre Santana e Feliciano para lavar a roupa suja do passado. Ele contemporiza: “Ali, cada qual na sua trincheira, temos feito um bom trabalho de unidade em defesa do Reino de Deus.”

Em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal aprovou a união homoafetiva por unanimidade, os juristas evangélicos ficaram apreensivos. “As igrejas eram muito voltadas para seus assuntos internos e nunca imaginavam que o Supremo fosse ter um impacto nas suas vidas”, relembra Uziel Santana, o presidente da Anajure. “Depois daquela decisão, nós entendemos que precisávamos estar antenados e dentro do sistema.” Três anos depois de sua fundação, e com um relacionamento delicado com a Frente Evangélica, a Anajure voltou-se para o Supremo e conseguiu ser aceita como amicus curiae – amigos da corte, em latim – na ação que tratava da criminalização da homofobia. Foi a primeira vez que uma associação evangélica ganhou essa distinção, que dá direito a opinar sobre o assunto em pauta, falar com os ministros e pronunciar-se no tribunal. Em uma das sessões do julgamento, o advogado Luigi Braga, diretor de compliance da Anajure, fez um breve discurso no púlpito do STF.

No processo, a Anajure defendeu que a criminalização da homofobia não era da alçada do STF, mas sim do Congresso, disse que não havia dados confiáveis sobre a discriminação dos homossexuais e afirmou que, ao criminalizar o discurso homofóbico, o tribunal colocaria em risco a liberdade religiosa, garantida pela Constituição. Em sua decisão, o STF ficou no meio do caminho: não criou um tipo penal para crimes de homofobia e transfobia, mas determinou que, enquanto não houver decisão do Congresso, devem ser aplicadas a esses crimes as punições previstas na lei contra o racismo. A decisão ressalvou que os religiosos não podem ser enquadrados na lei por professarem sua fé, desde que não promovam discurso de ódio.

A Anajure comemorou a decisão – “quase perfeita”, nas palavras de Santana – e tomou gosto pelo papel de amicus curiae. A entidade já foi aceita em quinze ações, das quais oito dizem respeito ao ensino nas escolas sobre sexualidade e “ideologia de gênero”, assunto que atormenta os evangélicos porque acreditam que já existem escolas, como diz Uziel Santana, que ensinam às crianças “que elas podem deixar de ser menino ou menina, se quiserem”. A Anajure está, ainda, aguardando para ser admitida em outras nove ações, que versam sobre aborto, Bíblia obrigatória nas escolas e temas similares. Com esse grau de participação, os juristas evangélicos já são mais ativos no Supremo do que a tradicional Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entidade católica com mais de meio século de vida. Até hoje, a CNBB só foi aceita em nove ações.

Nos processos em que tenta cercear a educação sexual nas escolas, a Anajure vem sofrendo derrotas. O Supremo tem suspendido qualquer lei municipal que censure os professores em sala de aula. “Isso não quer dizer que a Anajure não seja influente”, diz Eloísa Machado de Almeida, professora de direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo e coordenadora do Supremo em Pauta, grupo de pesquisa e levantamento de dados sobre o STF. “O Supremo na verdade é só a ponta do iceberg. O fato é que essas organizações apoiaram um monte de decisões municipais e estaduais que foram levadas ao STF. Elas têm influência em muitas outras instâncias.” O objetivo da Anajure e da bancada evangélica não é apenas obter vitórias no Supremo, mas, sobretudo, impedir que certos assuntos ligados às chamadas “pautas morais” cheguem à corte. “Se você parar para olhar, nos últimos dois anos, poucas chegaram”, diz Uziel. “A gente tem feito um trabalho junto à Procuradoria-Geral da República, à Defensoria Pública da União, e isso já está rendendo frutos.”

Desde o começo deste século, o STF passou a julgar questões relevantes como cotas raciais, homofobia e aborto de fetos com anencefalia. “Agora, o que temos visto é uma reação desses setores religiosos ao que podemos chamar de ‘era de ouro dos direitos humanos’ no Supremo, que foi a primeira década dos anos 2000”, diz a professora Eloísa de Almeida. A reação religiosa, diz ela, coincidiu com um período de participação crescente de entidades civis no STF. A ferramenta do amicus curiae só foi regulamentada no Brasil em 1999 e, de lá para cá, cresceu muito. Até 2005, só 13% das ações no STF contavam com pelo menos um amicus curiae, segundo dados levantados por Almeida. Nos anos seguintes, de 2006 a 2014, essa proporção chegou a quase 30%.

Opastor e advogado Eduardo Azevedo, 37 anos, teve uma manhã frenética no dia 12 de maio, quando Pernambuco, com 1 087 mortos e mais de 13 mil contaminados pelo novo coronavírus, decretou quarentena geral em cinco cidades. Azevedo leu o decreto do governo estadual, entrou nos grupos evangélicos no WhatsApp que fervilhavam com a notícia e fez o que dele se esperava: esboçou uma emenda ao decreto na qual ressalvava que a restrição não incluiria os pastores, que poderiam continuar indo aos seus templos para transmitir cultos pela internet. Em seguida, entrou numa videoconferência com presidentes de várias igrejas presbiterianas de Pernambuco. Estavam indignados. Os líderes presbiterianos não se opunham ao isolamento social, mas temiam ser enquadrados pela polícia.

Azevedo então entrou em contato com a Anajure, da qual recebeu orientações sobre como deveria agir. Antes do meio-dia, saiu de casa com seu carro. Em quinze minutos, estava no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, protocolando o pedido ao governador Paulo Câmara (PSB), para que alterasse o decreto, abrindo exceção aos pastores e incluindo os templos no rol das atividades essenciais. “Pedimos de maneira elegante, mas deixando claro que tomaríamos as medidas cabíveis se eles não respeitassem a liberdade religiosa”, explica Azevedo.

A máquina de pressão da Anajure então entrou em funcionamento. No mesmo dia, o site da entidade divulgou uma nota URGENTE, em letras maiúsculas, afirmando que o decreto feria a liberdade religiosa. O texto foi logo replicado por uma série de portais de notícias e blogs evangélicos, entre os quais O Fuxico Gospel, um dos principais sites do ramo, com mais de 400 mil seguidores no Facebook. A direção da Anajure também acionou seus aliados da bancada evangélica na Assembleia Legislativa, que reúne cerca de dez parlamentares. O líder da bancada, deputado Cleiton Collins (PP), pastor da Assembleia de Deus, entrou em ação. Em menos de 72 horas, o governador mudou o decreto.

“A gente consegue se articular nacionalmente de um jeito muito rápido”, gabou-se Azevedo, depois da vitória. A Anajure tem coordenadores, como ele em Pernambuco, em outros 22 estados. São advogados evangélicos que trabalham na entidade voluntariamente e orientam sua atuação para a defesa dos direitos das igrejas. Eles mantêm contato permanente por meio de um grupo de WhatsApp e constituem uma tropa de choque. Funcionam como uma polícia jurídica em defesa dos interesses dos evangélicos.

Hoje, a Anajure tem mais de setecentos associados, entre advogados, juízes, procuradores e desembargadores, além de uma centena de voluntários. Para se associar, é preciso pagar uma mensalidade que varia de 20 a 120 reais, conforme a posição hierárquica do associado na entidade, e assinar uma declaração reconhecendo a Bíblia como “única regra de fé e conduta” e se comprometendo a “batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi dada aos santos, a fé cristã”. Desde 2017, a Academia Anajure oferece um curso intensivo de “cosmovisão cristã” a graduandos e bacharéis em direito. Todo ano passam pela escola em torno de cinquenta estudantes. Um dos professores da última edição foi o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor e teólogo presbiteriano.

A associação deu um nível inédito de organização aos juristas evangélicos. Mais do que uma entidade técnica, tornou-se um grupo de alcance nacional, com funcionários próprios e capacidade de mobilização. Na sede em Brasília, a Anajure tem um sistema para monitorar as edições dos Diários Oficiais dos três poderes, as publicações de partidos e “movimentos sociais anticristãos”, cujos nomes a associação não revela. O software vigia mais de seiscentos sites e produz relatórios diários. Sempre que o sistema detecta, por meio do uso de palavras-chave, uma ameaça aos valores cristãos ou interesses das igrejas, a equipe jurídica é acionada. “Tudo que acontece no país a gente fica sabendo na hora”, diz Uziel Santana, o presidente. A essa atividade, a Anajure deu o nome de Projeto Soph’iym. Nos textos bíblicos, soph’iym, palavra hebraica que significa atalaia, refere-se aos profetas de Deus, que alertam o povo sobre os perigos do pecado.

A outra ponta de atuação da Anajure está numa atividade que não constava dos seus planos iniciais, mas vem ganhando proeminência: o lobby para colocar evangélicos em cargos públicos. A DPU foi apenas o caso mais recente. Há outros mais relevantes.

“Oano de 2019 foi peculiar: nunca antes, na história da atuação da Anajure, o governo federal (e outros tantos governos estaduais e municipais) havia içado velas tão altas a favor do cristianismo.” Com esse balanço triunfal, a Anajure festejou em seu relatório anual o primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Em dezembro, Uziel Santana tivera o privilégio de participar de um culto de Ação de Graças, promovido por líderes evangélicos, no Palácio do Planalto. Ao lado do presidente, ele fez uma leitura bíblica e, dias depois, a Anajure publicou sua leitura otimista de 2019.

Havia motivos reais para comemorar. Naquele ano, o governo tinha dois ministros evangélicos protestantes. A mais antiga era Damares Alves, que, embora tenha começado a carreira de pastora numa igreja pentecostal, há mais de uma década faz suas preleções na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Mesmo tendo saído da Anajure na confusão de 2013, era uma aliada no comando do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em meados do ano, entrara o general Luiz Eduardo Ramos, frequentador da Igreja Memorial Batista de Brasília, que assumiu a Secretaria de Governo, cuja sala fica no Palácio do Planalto. No ano seguinte, o time ficou completo. André Mendonça, pastor da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília, assumiu no fim de abril como ministro da Justiça e, menos de três meses depois, Milton Ribeiro, pastor da Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, tomou posse como ministro da Educação.

A Anajure fez o que pôde pela nomeação de Milton Ribeiro, a quem Santana conhece dos tempos em que foram colegas na Universidade Presbiteriana Mackenzie, QG nacional dos juristas evangélicos, em São Paulo. Quando soube que o ministro André Mendonça havia indicado Ribeiro para o cargo, Santana entrou em ação. Ligou para o futuro ministro para lhe dar apoio e acionou a bancada evangélica para que se manifestasse a favor de Ribeiro. O deputado Silas Câmara, líder da bancada, atendeu ao pedido, ainda que os neopentecostais mais bolsonaristas estivessem em campanha pelo evangélico Anderson Correia, reitor do Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA). Por fim, Santana encaminhou uma mensagem ao presidente Bolsonaro informando sua preferência. Consumiu a primeira semana de julho nesse lobby e o resultado não demorou a chegar. No dia 10 de julho, Bolsonaro nomeou Ribeiro. “É uma pessoa extremamente íntegra, de perfil moderado, conciliador”, festejou Santana.

Mas nem tudo é vitória para a Anajure. Quando a Câmara aprovou o perdão das dívidas bilionárias das igrejas com a União, em setembro, a associação logo comunicou Bolsonaro que ela era a favor do projeto. Pressionado pela equipe econômica e pela repercussão negativa da proposta de aliviar dívidas, o presidente não atendeu ao pedido da Anajure, mas tentou ganhar dos dois lados. Vetou parcialmente o perdão das dívidas, posando de fiscalista responsável, e em seguida recomendou à Câmara que derrubasse o seu próprio veto, posando de pró-evangélicos. O autor do projeto, deputado David Soares (DEM-SP), é membro ativo da bancada evangélica e legislava em causa própria. Ele é filho do missionário R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma das maiores devedoras da lista, com um espeto de mais de 145 milhões de reais. A Câmara ainda não decidiu o que fazer com o veto presidencial.

De todos os ministérios, é no Itamaraty que a Anajure tem recebido a melhor acolhida. O chanceler Ernesto Araújo, católico alinhado às pautas evangélicas, apoia as demandas de assistência a cristãos vítimas de perseguição religiosa, sobretudo no Oriente Médio, um tema importante para a Anajure. Além disso, Araújo adotou a bandeira da liberdade religiosa como uma política de Estado – mas uma liberdade religiosa, na sua doutrina, voltada para os cristãos. No ano passado, o chanceler, para alegria da Anajure, vetou o uso da palavra “gênero” pelos diplomatas brasileiros em negociações em foros multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). A decisão foi contestada no STF por uma associação que representa a população LGBTQIA+, e a Anajure, sempre atenta, pediu para entrar no processo como amicus curiae. O Supremo, no entanto, julgou a reclamação improcedente. O governo também apoia o pleito da Anajure para ser acreditada na ONU, uma condição que, além de prestígio internacional, lhe dará direito a participar de audiências e fazer relatórios sobre temas em pauta. O Comitê de ONGs da ONU reúne mais de 5 mil entidades, entre as quais estão o Greenpeace e a Anistia Internacional.

A influência evangélica sobre o Itamaraty chegou a tal ponto que já causa embaraço entre os diplomatas na ponta da linha. “A gente passa vergonha o tempo todo”, diz um diplomata com mais de vinte anos de carreira que pediu o anonimato para evitar represálias no trabalho. “Essa bandeira de liberdade religiosa não traz ganho objetivo nenhum, não amplia comércio, não produz nada. É algo que só funciona no campo da ideologia, da representação.” Em fevereiro, a ideologia esteve em alta. O Brasil uniu-se a um grupo de países – entre eles, Estados Unidos, Polônia e Hungria, todos governados pela direita radical – para criar uma Aliança Internacional de Liberdade Religiosa. Sendo um chanceler que viaja pouquíssimo para o exterior, dessa vez Araújo pegou o avião e voou até Washington para prestigiar a parceria.

Uziel Santana é afável, tem o rosto rechonchudo e os olhos sempre espremidos, que lembram um urso de pelúcia. Aos 43 anos, é casado há doze com uma teóloga presbiteriana. Os dois têm um casal de filhos pequenos e administram juntos um escritório de advocacia com sede em Aracaju – o SS Advocacia, fundado em 2016, que tem cerca de vinte funcionários, cobre várias áreas do direito e já instalou filiais em Brasília e Lisboa. Nascido num bairro de classe média baixa de Aracaju, Santana é filho de uma dona de casa com um auxiliar de mecânica que frequentava a Igreja Batista. Estudou a vida inteira no Colégio Americano Batista, mas, já adulto, tornou-se presbiteriano por motivos prosaicos: além de sua mulher, muitos de seus amigos e os amigos de seus filhos faziam parte dessa denominação. Hoje, ele e sua família frequentam a Igreja Presbiteriana de Aracaju, fundada há quase 120 anos. Por causa da mudança tardia, Santana diz que se considera um “batisteriano”.

Em 2007, já formado em direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Santana chamou atenção de seus colegas juristas com artigos que publicou na imprensa sergipana contestando o projeto que criminalizava a homofobia, aprovado pela Câmara. Numa coluna no jornal Correio de Sergipe, no linguajar empolado do juridiquês, alegou que o projeto feria a Constituição ao garantir tratamento diferenciado a um grupo de cidadãos – no caso, os homossexuais. E, recorrendo a um artigo que Olavo de Carvalho escrevera havia pouco no Diário do Comércio, afirmou que o conceito de homofobia é inconsistente e incomprovado. Seu artigo, mais tarde, foi incorporado a seu livro, Um Cristão do Direito num País Torto, lançado em 2012. Orgulha-se de ter começado a debater o projeto da homofobia antes dos “pastores midiáticos”, como chama os colegas neopentecostais que tratam os fiéis como uma plateia.

Santana é um homem rebuscado. Sempre que pode, exibe erudição cravejando suas frases com expressões em latim. É fã do conservador Roger Scruton, filósofo e escritor inglês que se tornou guru da direita. Na parede da sala de seu apartamento, em Aracaju, exibe, emoldurada em dourado, uma réplica da Constituição norte-americana de 1787 – uma referência, segundo ele, à proteção às liberdades civis fundamentais. O tema é uma bandeira permanente e apareceu no lema da Anajure: “defesa das liberdades civis fundamentais”. Em entrevista à revista Cristianismo Hoje em 2015, ao definir a razão de ser da entidade, falou de liberdades fundamentais e cometeu uma enormidade: comparou a situação dos cristãos no Brasil de hoje à situação vivida pelos judeus na Alemanha nazista. “Na época da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista criou o termo Jüdische Schuld para culpar os judeus por tudo. Existe no país, hoje, uma noção de que tudo é culpa dos cristãos.”

Fazendo questão de marcar sua diferença em relação aos “pastores midiáticos”, Santana ressalta que valoriza a imprensa e seu papel na democracia. “É complexo, mas eu, como jurista, sou apoiador da irrestrita liberdade de expressão”, diz ele, sem enxergar qualquer contradição ao pregar a censura aos professores em sala de aula quando o assunto é gênero. Tampouco acha que haja choque entre repudiar o discurso de ódio e vituperar homossexuais. “O que eu sou contra é um pastor discriminar um casal específico. Mas se ele falar de modo amplo, genérico, eu entendo que isso faz parte da liberdade religiosa.” A atuação da Anajure fala por si só. Em oito anos de vida, a associação, apenas uma vez, em 2015, manifestou-se, e ainda assim timidamente, contra a agressão sistemática sofrida por religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Santana culpa os companheiros de fé pela violência que atinge os terreiros. “Os neopentecostais fazem isso diuturnamente”, acusa.

Na disputa em torno da vaga no STF aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, a Anajure procura candidato e tem candidato que procura a Anajure. Em agosto do ano passado, quando tentava se cacifar para ser procurador-geral da República, Augusto Aras mostrou como se faz: é preciso demonstrar-se terrivelmente evangélico. Depois de receber uma carta de princípios que a associação enviou para todos os candidatos à PGR, Aras telefonou para Santana a fim de reforçar seu compromisso com a agenda evangélica. Foi o único a assinar a carta da Anajure. Ao fazê-lo, concordou que a “instituição familiar” deve ser heterossexual e monogâmica, as doutrinas religiosas não podem ser enquadradas como discurso de ódio e todo homossexual deve ter liberdade para tornar-se paciente em “tratamento de reversão sexual” – o equivalente juridiquês à “cura gay”, uma terapia de araque que está proibida no Brasil desde abril do ano passado, antes portanto de Aras referendar os princípios da Anajure.

“Quando nos falamos por telefone, ele defendeu coisas que iam muito além do que estava escrito na carta. Eu até brinquei com ele: ‘O senhor é mais conservador do que eu’”, diverte-se o presidente da Anajure. A associação publicou uma nota de apoio a Aras logo depois que foi indicado por Bolsonaro. Quando passou pela sabatina do Senado, no entanto, Aras bancou o desentendido. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), gay assumido, questionou o candidato à PGR por sua adesão à carta de princípios da Anajure. “O senhor não reconhece a minha família como família?” Aras, acuado, replicou: “Confesso a Vossa Excelência que eu não li a pauta inteira. […] E nem acredito em cura gay, me permita complementar.”

A Anajure, no entanto, não trabalha para colocar Aras no STF.  Em vez disso, a entidade embarcou numa ciranda de nomes. Primeiro, apostou no evangélico José Eduardo Sabo Paes. Gaúcho e frequentador de uma igreja luterana de Brasília, ele é membro de um conselho da Anajure e procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Em junho deste ano, em votação interna, os diretores da associação elegeram Sabo Paes como seu candidato a ministro, e repassaram a indicação à Frente Parlamentar Evangélica. Mas o nome teve pouca acolhida. Parte da bancada faz lobby pelo juiz federal William Douglas, do Rio de Janeiro. Pregador da igreja batista, Douglas é uma espécie de coach de concursos públicos. Escreveu dezenas de livros sobre empreendedorismo e as “leis bíblicas do sucesso”. Seu nome foi indicado a Bolsonaro pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, denominação neopentecostal sediada no Rio.

Contudo, quando Celso de Mello anunciou a antecipação de sua aposentadoria para 13 de outubro, a Anajure resolveu mudar de aposta para voltar ao páreo e barrar a indicação de Douglas, que, embora seja da igreja batista, é visto como um representante dos neopentecostais. Uziel Santana, então, passou a endossar o nome do ministro André Mendonça, que mantém diálogo frequente com a Anajure. Os diretores da associação calculam que, por ser do círculo de confiança de Bolsonaro, Mendonça teria boas chances de triunfar. Além do mais, é evangélico presbiteriano. No final de setembro, Santana se reuniu com Mendonça por videoconferência e comunicou que apoiaria sua nomeação para o STF. Mais tarde, seguindo o protocolo de sempre, a Anajure enviou ofício para Bolsonaro formalizando a indicação de Mendonça – “um nome de consenso dentro do segmento evangélico” e de “reputação ilibada”, disseram.

Dias depois, Santana foi surpreendido. O governo vazou que seu candidato seria o piauiense Kássio Nunes Marques, 48 anos, desembargador do Tribunal Regional Federal, em Brasília. Marques não tem vínculos com a Anajure e, ainda por cima, é católico. “A gente entende que a vaga do STF não deve ser preenchida necessariamente por um jurista evangélico. Deus pode iluminar o coração de um ministro ou de outro por sua soberana vocação”, diz Santana. “Por outro lado, os ministros que têm sido indicados para o STF não refletem o pensamento geral da sociedade. Eles não podem fazer mudanças no mos majorum (tradição da sociedade) à revelia do Congresso, como tem sido feito. É bom, então, que tenhamos um ministro que pense como nós. Se for evangélico, melhor ainda.”

LUIGI MAZZA

Repórter da piauí, produtor da rádio piauí e diretor do podcast Foro de Teresina

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O QUE VEM DEPOIS DO FIM DO MUNDO ?

Milly Lacombe, TPM

A ausência de futuro parece já ter começado. Para todos os lados que a gente decida olhar o que se vê não é bom. Desemprego sem precedentes. Crise climática. Feminicídio em números históricos. Genocídio da população negra periférica escalonando. Pandemia. Só que existem aquelas e aqueles entre nós que já passaram por fins de mundo antes. E sobreviveram.

Os descendentes dos povos escravizados e dos povos originários, as mulheres e os LGBTQ: já houve genocídios e pandemias antes – e renascimentos. Talvez essa seja, portanto, a hora de escutar o que as pessoas que insistem em existir têm a ensinar sobre sobrevivência em tempos brutos.

Marina Silva se define como negra e ambientalista. Tem sangue indígena, nasceu em um seringal no Acre, teve 10 irmãos e sobreviveu a três hepatites, cinco malárias, uma contaminação de mercúrio e uma leishmaniose. Sua história, se fosse contada como ficção, seria inverossímil. Mas a diferença entre ficção e realidade é que a ficção precisa fazer sentido, e a realidade não.

A jornada de Marina não faz sentido. Porque não há sentido em ver uma epidemia trazida pelo homem branco levar o tio que te criou, sua mãe e duas irmãs. Não faz sentido ter que assistir sua casa e suas coisas serem incendiadas pela defesa civil. Não faz sentido ser criança e ter de trabalhar.

Só que a vida pode mudar na velocidade com que lemos um cartaz displicentemente pregado na porta de uma igreja. O cartaz que mudou a vida de Marina Silva quando ela se preparava para ser freira falava de uma reunião de sindicalistas em Rio Branco, capital do Acre, e levou a garota que estava quase se ordenando até o seringueiro e sindicalista Chico Mendes – um encontro que mudaria completamente o curso do rio da sua vida.

Marina então desiste de ser freira, começa uma vida de estudos, se forma em história na Universidade Federal do Acre, elege-se vereadora, depois deputada, é indicada como ministra do meio ambiente por Lula e se candidata a presidente da república em três eleições consecutivas. Na segunda delas vê sua candidatura derreter: começa a campanha com quase 17% de intenção de votos e termina com 1%. Os motivos são especulados: desde 2014 tem sido criticada por fazer alianças políticas bastante questionáveis – mas, se eliminarmos da política aqueles que fizeram alianças questionáveis, sobram só móveis e utensílios em Brasília. Então não pode ser isso. 

Outras explicações dizem respeito à rejeição por ser evangélica, e essa desaparece se pensarmos na eleição do atual mandatário. Há os que acreditam que ela é tratada de forma injusta pela imprensa, e há aí boa margem para debate porque Marina aparece bastante quando fracassa, mas nem tanto quando brilha. 

Você sabia, por exemplo, que ela recebeu o maior prêmio da ONU na área Ambiental, o Champions of the Earth? Ou que é renomada mundialmente por sua luta ambientalista e foi escolhida pelo The Guardian como uma das 50 pessoas que podem salvar o planeta? Mas certamente sabe que, por ser evangélica da Assembleia de Deus, ela se opõe ao aborto e que deu as mãos a Aécio Neves contra Dilma Rousseff em 2014.

A carta da religião também tem espaço para um debate maior, até porque não existe apenas uma forma de ser evangélico, assim como não existe apenas uma forma de ser católico. São católicos, por exemplo, o governador de São Paulo João Doria, que pensou em alimentar morador de rua com ração e dispersou a população da Cracolândia com bombas e demolições em uma operação realizada em 2017, e o padre Julio Lancellotti, que faz um incansável trabalho de acolhimento com a população de rua da capital paulista. Existe, inclusive, uma bancada evangélica de esquerda que defende, entre outras coisas, o estado laico e o direito ao aborto. Assim, do mesmo jeito que ser católico não define uma pessoa, ser evangélico também não deveria. 

Então por que Marina é tão rejeitada?

Nessa entrevista talvez você encontre pistas, mas, mais do que isso, talvez dispa-se de algumas certezas que tinha a respeito dela. Aos 62 anos, Marina e sua fala mansa levam a gente ao interior da floresta onde nasceu, passam pelo convento onde quase se ordenou freira e pelas poesias que compõe e desaguam num oceano de reflexões sobre a forma como vivemos e nos relacionamos nos dias de hoje. Taxação de grandes fortunas, aborto, crise climática, feminismo: ela não se recusa a falar a respeito de coisa alguma.

Dois casamentos, quatro filhos, um neto. Marina Silva pode ser tudo, menos fraca ou covarde. E quando dizem que ela não está preparada para liderar uma nação, a pergunta talvez seja a oposta: será que essa nação está preparada para uma liderança tão feminina e potente como a que ela poderia exercer? 

Tirem suas conclusões.

Tpm. O que vem à sua cabeça quando você pensa na floresta? 

Marina Silva. Ela era o nosso abrigo, era da onde a gente tirava sustento. Uma mistura de mistério com dura realidade. Eu diria que, mesmo em meio a tanta crueza e tanta dureza, tenho muito mais beleza para recordar. Meu primeiro encontro com a dor da natureza – ou com alguma coisa nesse sentido – se deu quando eu era criança. Minha mãe queria fazer uma cama, uns bancos e uma mesa e pediu para o meu pai tirar um pé de cedro. O cedro é uma árvore que tem muita seiva e é uma seiva cor de sangue. Para poder tirar o cedro de machado você precisa primeiro sangrar a árvore. Um dia fui buscar água no igarapé e, quando passei pelo cedro, a árvore estava toda ensanguentada. Fiquei apavorada e peguei umas casas de cigarra feitas de argila branca, mole ainda, e fui botando nos cortes. Enquanto fazia isso eu ia dizendo para a árvore: "Você vai ficar curada, eu estou passando penicilina em você", que era o único remédio que a gente usava, o único que os patrões mandavam. Na semana seguinte, meu pai viu a árvore cheia de barro. Ele perguntou: "Quem foi que fez isso?". Eu falei: "Estava saindo muito sangue dela e eu passei penicilina". Meu pai fez um olho que misturava espanto e tristeza. Ele falou: "Agora não tem mais jeito, ela já morreu, não tem mais seiva, não tem mais nada". Isso foi muito forte. Quando eu me lembro da floresta, não é apenas a mata, são muitos animais, insetos, árvores, muitas texturas, cores, aromas, sons. O ruído da cigarra ao cricrilar dos grilos, o canto exagerado dos jacus dizendo que "tá ruim, tá ruim, tá ruim", o canto do inambu dizendo "venha cá, por favor, venha cá, por favor", da siricora dizendo "três cocos, três cocos, três cocos". Era um imaginário que eu ia criando de uma conversa. É uma linguagem de quem aprende a olhar, ouvir e compreender a floresta.

Você falou 'os patrões'; quem eram os patrões? Os seringalistas. O seringal é uma unidade de produção, geralmente com umas 200 famílias que têm unidades produtivas isoladas na mata. A menor distância da nossa casa para a mais próxima era de 1 hora e 45 minutos andando pela floresta. São distâncias muito grandes porque são 200 famílias com medidas entre 200 e 500 hectares cada uma. As árvores de seringas e as castanheiras nascem naturalmente no meio da floresta, mantendo uma certa distância uma da outra. Desse modo, para você poder ter uma unidade de produção que viabilize uma produção razoável por família e ainda dê lucro para o patrão, um seringal precisaria ter entre 900 e 1.000.000 hectares – ou até mais. Os patrões eram os donos dessa grande empresa extrativista para a qual os seringueiros trabalhavam num regime de semi-escravidão. Eles tinham a exclusividade da venda dos manufaturados para o seringueiro e a exclusividade da compra do produto, que era a borracha. O preço da borracha era sempre muito barato, o preço das mercadorias sempre muito alto e, quando eu digo que a gente tinha uma agricultura de subsistência, é porque os patrões não queriam que você botasse roçado – quanto menos você produzisse, mais era obrigado a comprar da casa aviadora, que também era do patrão. Nesse lugar tinha muita dureza, muita crueza e um seringueiro estava sempre devendo. Mas, ao mesmo tempo, tinha muita solidariedade entre essas famílias. A gente tinha uma linguagem própria. 

Vocês desenvolveram uma linguagem contra a opressão? Não. Era para se comunicar com os outros mesmo. Por exemplo, se você estava chegando próximo de uma casa, faltando uns 40 minutos você procurava uma árvore que tivesse raiz elevada e, com dois pedaços de madeira, batia nessa raiz de forma ritmada. O som vai muito longe e a pessoa da casa que escuta diz: "O compadre está vindo". Dependendo da direção do som, ele sabia se era o compadre Pedro, que era meu pai, ou se era o seu João, que vinha do lado de lá. Se alguém estivesse na floresta dificilmente via que uma tempestade estava vindo, então quem estava em casa 'buzinava' para avisar. Dependendo do toque da buzina você compreendia se era para voltar para casa porque tinha acontecido alguma coisa ou se era para tentar se proteger porque vinha chuva com vento. Você podia fazer a buzina com um pedaço de bambu com um furo ou você podia fazer isso usando uma garrafa de vidro em que você colocava um prego dentro, sacodia, caía o fundo da garrafa e você usava como buzina. 

Você deixou a floresta aos 16 anos para se tornar freira. De onde surgiu essa ideia? Minha mãe morreu quando eu tinha 14 anos e eu fui criada pela minha avó. Foi ela que botou em mim o sonho de ser freira, pois onde a gente morava não tinha padre, não tinha igreja, não tinha delegado, não tinha juiz, não tinha escola, não tinha nada. Mas ela me contava sobre o Ceará, onde nasceu. Ela era analfabeta, mas tinha um repertório muito sofisticado. Quando adolescente, trabalhou na casa de uma família muito rica e aprendeu dessa convivência a ter conceitos na oralidade. Minha avó decorava um folheto de cordel e depois recitava e interpretava para mim. Ela me fez ser uma criança apaixonada pela palavra. Eu não sabia ler nem escrever, mas com 16 anos eu já era PhD em narrativas, que pude colocar em jogo quando me deparei com o letramento da sociedade moderna. Quando minha avó foi para o Acre, levou o catecismo todo feito em papel couchê, com ilustrações da Capela Sistina, que não tinha uma palavra a não ser o nome da editora. Era para ensinar aos analfabetos sobre a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse. Minha avó me catequizou na fé cristã usando esse catecismo. E ela me contava que no Ceará tinham as freiras, e que as freiras se dedicavam a Deus. Era tudo muito lúdico, muito bonito. Desde que me entendo por gente, fui cultivando, digamos, essa semente da fé. Eu dizia: "Vovó, quando eu crescer quero ser freira". E ela dizia: "Mas freira não pode ser analfabeta, minha filha". Fui uma criança criada por pessoas idosas. 

Por quem? Por minha avó, por uma tia solteirona e por um tio solteirão. Meu tio era mateiro e xamã. Ele conviveu muitos anos com os índios, sabia dos segredos da floresta. Era cesteiro, ceramista, carpinteiro, ferreiro, uma multiplicidade de competências e habilidades. Eu aprendi com ele por osmose. Faço um pouquinho de carpintaria e artesanato. Meu tio criou para mim um universo pictórico das coisas dos adultos: tudo que um adulto tinha em tamanho normal eu tinha em tamanho de criança. Os adultos tinham uma enxada grande, eu tinha uma enxadinha; os adultos tinham um martelão, eu tinha um martelinho. Era uma convivência que se dava embaixo da nossa palafita porque era ali que ficava, digamos, o ateliê dele. E eu ficava ali vendo ele trabalhar. Meu tio falava muito pouco, mas eu nunca aprendi tanto no silêncio. Eu era uma criança que vivia com esse tio, com uma tia solteirona, com a minha avó, com o cunhado da minha avó que tinha ficado viúvo e com um velhinho que foi abandonado e que a gente chamava de vovô Manel. Meu pai sustentava essa casa. Eu ia para casa dele, onde estavam minhas irmãs, brincava com elas e depois voltava para o meu mundo, com os meus sábios velhinhos. 

E quando a ideia de ser freira saiu da sua cabeça? Eu fiquei no convento, no pré-noviciado, durante dois anos e oito meses. Eu fui para lá sozinha, minha família ficou no seringal. Nesse período nasceu em mim uma contradição que tem a ver com o conservadorismo da maioria das freiras do pré-noviciado onde eu estava. Eram os anos 70, um momento em que o seringal já estava entrando em decadência e os antigos patrões estavam vendendo essas áreas enormes para fazendeiros do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste. Essas pessoas chegavam, queriam derrubar a floresta e expulsar as famílias que estavam ali há 50 anos. Nessa hora o Chico Mendes começa uma luta de resistência contra esse tipo de exploração. Os índios também resistiam à invasão de suas terras. Eu ouvia as freiras dizendo que o bispo era comunista, que o Chico Mendes era comunista. Aquilo doía muito em mim porque eu pensava: "Mas como que Deus acha que as pessoas que defendem a gente e a minha família são do diabo e as pessoas que estão fazendo toda essa maldade são de Deus?". Isso passou a ser uma contradição forte em mim. Aí um dia eu estou na missa e vejo um cartaz na porta da sacristia. Era uma cartolina azul pregada numa porta azul com uma escrita feita com uma esferográfica azul, então era praticamente invisível, quase uma confissão de que "eu tenho que botar isso aqui, mas não quero fazer propaganda disso". Mas meu olhar foi conduzido e eu vi que se tratava do aviso de um curso de liderança sindical com a presença de Chico Mendes. Eu pensei: "Vou me inscrever nesse curso porque quero entender por que esse Chico Mendes é comunista e esse bispo é comunista". Foi o que mudou tudo. Nesse dia o [bispo] Clodovis Boff pregou o sermão da montanha e fez toda uma fundamentação teológica em relação ao compromisso da igreja com os pobres e com os oprimidos. E o Chico Mendes deu um testemunho do que ele estava fazendo. Aquilo mudou a minha cabeça. Comecei a receber o boletim Somos Todos Irmãos clandestinamente dentro do convento. Esse era o boletim das comunidades eclesiais de base. Eu recebia também um jornal de resistência à ditadura chamado Movimento. Devorava os dois tarde da noite e depois os escondia embaixo do meu colchão. 

Como você saiu do convento? Chegou um momento que a madre superiora falou que eu já estava pronta para ir ao Rio de Janeiro. Como tinha terminado o supletivo do segundo grau, já poderia ir ao Rio fazer os votos iniciais para começar uma formação acadêmica como freira iniciante. Eu pensei: "Não posso ir porque não sou mais a mesma pessoa que queria uma vida de reclusão e oração". Me transformei em uma pessoa que queria se envolver com as coisas que eles diziam ser de comunista. Eu achava que era a mais profunda forma de tradução do amor de Deus seguir pela justiça, pela liberdade, pela verdade. E pensei: "Vou servir a Deus dessa forma". Fui trabalhar de doméstica durante um período para continuar estudando e saí do convento. Me envolvi nas comunidades de base, passei a ser coordenadora da Paróquia do Cristo Ressuscitado, me envolvi com Chico Mendes, entrei na universidade, entrei em movimento estudantil… O céu era o limite.

A gente está em 1975, por aí? Em 78 saí do convento. Em 79 contraí hepatite e não consegui fazer o vestibular para começar a faculdade em 80. Fiz o vestibular no final de 80. Comecei a estudar aos 16 e aos 22 eu estava na faculdade, tendo perdido dois anos em função da hepatite.

Qual a sua denominação evangélica? Assembleia de Deus.

Que é Pentecostal? Sim.

Você teve formação católica, foi muito ligada a um tio que era xamã e hoje é evangélica. Como foi mudando ao longo dos anos sua relação com o divino? É uma relação que se mantém até hoje, mas como toda relação você pode torná-la rarefeita ou adensá-la. Eu diria que é uma relação com Deus que se adensa e eu sou grata por isso. Tive uma conversão na conversão. Eu tomo esse termo emprestado ao padre Henri Nouwen, que escreveu um livro maravilhoso chamado A Volta do Filho Pródigo. Ele já era padre quando foi ao museu e, diante da obra [de mesmo nome] de Rembrandt, meditou e teve uma conversão na conversão. Aconteceu o mesmo comigo. Mantenho uma relação de respeito com os meus amigos padres, respeito todas as pessoas a despeito de crerem ou não. O preconceito não tem nada a ver com o cristianismo. Jesus diz que a gente não deve fazer acepção de pessoas. Se você quer ser preconceituoso, seja por sua conta, não busque fundamento na Bíblia. Deus não te obriga a escolhê-lo, a escolha é sua. Se você não escolhê-lo mesmo assim você vai ter saúde, vai ter sol, vai ter ar, vai ter chuva, ética e valores.

E por que se deu essa conversão na conversão? A conversão é sempre um mistério, né? Minhas irmãs já eram evangélicas da Assembleia de Deus e, obviamente, esse processo todo está ligado a eu ter tido contato com a fé delas. Durante muito tempo, houve em mim um estranhamento, um estranhamento preconceituoso. Uma vez, logo depois de ter me convertido, estava em um debate na Bahia e um professor universitário falou: "Eu não consigo entender como é que uma pessoa tão inteligente é da Assembleia de Deus". Ninguém diz: "Eu não consigo ver como alguém tão inteligente é católico". Ou "Não consigo entender como você, tão inteligente, é ateu". A fé é algo que faz parte da espiritualidade, da transcendência. Da mesma forma como o lúdico, o sonho, o desejo, a fantasia e tantas outras coisas, é algo que nos atravessa. E você pode transcender de formas diferentes: pela fé, pela arte, por qualquer forma. 

O que a gente tem visto hoje é um país levado ao inferno em nome de Deus. Essas formas de usar o nome de Deus para promover o ódio, o preconceito ou qualquer forma de opressão são uma incoerência. Nada mais incoerente com quem disse: "Quando eu estive preso, tu me visitaste, quando eu tive fome, tu me deste de comer, quando eu estava nu, tu me deste de vestir". Jesus se coloca no lugar do preso. Ele se coloca no lugar do faminto, no lugar do que se sente abandonado. Nenhuma guerra se justifica em nome de Deus.

Como você passou por essa pandemia? E como passou tendo que ver a floresta, que é esse lugar tão importante pra você, sendo devastada como nunca antes? A pandemia colocou a morte, esse impensável – porque a morte é sempre o impensável – mais presente no nosso dia a dia e nas nossas relações. A gente vê a morte da floresta, dos animais, dos rios, a gente vê morte por todos os lados. Se a gente quiser condensar tudo isso, a gente diz: "A pulsão de morte está em plena atividade". Quando no final da década de 60 eles abriram a trilha definitiva da BR 364 [que liga São Paulo ao Acre] isso trouxe muitas máquinas, muitos trabalhadores, e com eles um surto de sarampo e de malária sem precedentes. Então, só na minha família, morreram meu tio, meu primo e duas de minhas irmãs. Depois, veio um surto de meningite e morreram minha mãe e minha tia. Minha mãe morreu aos 36 anos e eu não pude ver o corpo dela. Logo depois, recebemos a visita de umas pessoas da equipe de saúde que disseram que teriam que queimar a nossa palafita, queimar as nossas coisas. É muito terrível e dramático. Quando vejo a dor das pessoas, o sofrimento dos médicos, tudo isso que está acontecendo, essas memórias voltam. Não se pode minimizar o luto. E quando eu vejo o presidente minimizando as causas das mortes, deixando de criar empatia com o luto, é algo terrível. O que se espera é um acolhimento que seja traduzido em três dimensões: do respeito, de prover os meios necessários ao tratamento e à informação. Mesmo que você esteja imunizado, você é um agente que educa. Quando você perde a perspectiva da alteridade, de se colocar no lugar do outro, você perde tudo. Não é porque você nunca passou fome que você não entende a necessidade de comer de quem passa.

Você imaginou que você fosse ver o Brasil como esse de hoje? É muito difícil a gente pensar que depois do sonho sonhado e, em certa parte, do sonho realizado, possamos viver situações como essas. No entanto, se a gente olha para tudo o que foi acontecendo, a conclusão é que infelizmente, consciente ou não, se trabalhou para isso. Porque há uma decepção muito grande da sociedade com aqueles que tiveram a oportunidade de governar por um longo tempo na democracia e não foram capazes de cultivá-la na sua essência. E a essência da democracia tem a ver, também, com a alternância de poder. É você ter políticas de longo prazo no seu curto prazo político e não imaginar que você tem um projeto ideal que só funciona com você – porque quando o projeto ideal só funciona com você, já foi embora com ele a democracia. As políticas públicas e as instituições não podem ser fulanizadas e, infelizmente, nossa tradição é a fulanização. 

Como você avalia o fato da gente estar vendo no mundo inteiro uma certa tendência ao fascismo? Nós estamos vivendo um processo de colapso. Quando você vê uma crise econômica, uma crise sanitária, uma crise social, uma crise política, uma crise de valores, tudo isso se conecta numa única crise: da civilização. As crises civilizatórias não são fáceis de serem percebidas porque geralmente elas não acontecem em função dos fracassos, mas em função dos sucessos – os sucessos levam à repetição. Nós inventamos algo potente com a substituição das monarquias pelas democracias desde a Revolução Francesa. Conseguimos produzir alimentos, transporte, meios para se comunicar, mas toda essa produção precisa de energia. E, de tanto repetir essa operação de sucesso, chegamos ao limite da capacidade. Com o sucesso de termos criado tantas formas de se comunicar, a gente acaba também exponencializando coisas como a mentira, o ódio. E aí a gente vive um momento de quase quebra do laço social. E se nós paramos de nos preocupar é porque algo está ameaçando a continuidade da nossa espécie, que não nasce pronta. Minha avó dizia assim: "Ah, menina, você tem que aprender a ser gente". Nós aprendemos a ser gente amando com os olhos de quem nos amou, amando com o toque de quem amorosamente nos tocou. Se nós pararmos de olhar amorosamente, de cuidar, então já estamos derrotados em termos da nossa continuidade. Quando eu me disponho a destruir os recursos de milhares de anos pelo lucro de uma década, eu já perdi o laço social, eu já sou um morto-vivo. Destruir a Amazônia é destruir o planeta e, se eu não me importo com isso porque preciso ter lucro na próxima safra de soja ou no próximo carregamento de madeira, eu já rompi o laço social. É disso que se trata. 

Há esperança? Os povos indígenas potentemente resistem. Hannah Arendt diz: "O homem ainda que morra nasceu para recomeçar". E, nesse momento, nós temos esses recomeços e eles estão por toda a parte. Cada um de nós é radicalmente singular e radicalmente atravessado por esse outro que nos sustenta e nos completa. Eu acho que tudo isso forma essa crise no tamanho que ela é. Só que a vida, ainda bem, insiste. Tem uma pessoa que eu conheci na França, um psicanalista de uma organização chamada Insistência, que diz: "Onde foi, seja". Onde foi amor, seja. Onde foi liberdade, seja. Onde foi respeito, seja. É essa insistência que precisa ser feita juntando a contradição de potência e de impotência de um ser humano, que só existe porque na base da sua existência tem uma coisa chamada amor, tem uma coisa chamada cuidado. 

No Brasil, quando dizemos que precisamos lutar pela volta da democracia, tem gente que diz: "Que democracia? Eu nunca vi essa democracia da qual você fala. Onde eu moro a polícia entra chutando, onde eu moro não tem privacidade, onde eu moro não há nada disso aí que vocês pregam que a gente precisa voltar a ter. Eu nunca tive isso". Como olhar para esse Brasil que tem tanta gente que nunca viu a democracia? A democracia tem o seu valor ontológico, digamos assim. Quando ela foi fundada, não era para as mulheres, para os escravos, para as crianças. Hoje, a democracia é incomparável, menos para os pobres, para os pretos, para as mulheres, para os índios. Temos que lutar para que ela seja para todos. Não uma democracia em que você tem apenas a liberdade de dizer, mas a liberdade de ser, de fazer, de viver, de exercer. Uma pessoa preta precisa ter a liberdade de entrar no curso que ela desejar. Precisa, inclusive, ter a liberdade e o direito de ter em si os ideais identificatórios que as leve a desejar, porque as pessoas foram privadas do próprio direito de desejar. Sou muito grata a minha avó, que introjetou em mim um desejo de estudar que não existia nas crianças do lugar onde eu morava. Isso não era uma questão, não havia escola, todos eram analfabetos. Por isso a democracia é tão importante: ela gera o contato com realidades e situações diferentes. Por isso que é tão importante que numa escola de excelência, como a USP, a UFRJ, a UNB, a Unicamp, tenhamos o índio, pessoas de outra condição social, por isso que é tão importante a cota. A cota não é um benefício apenas para o índio e o preto que acessa a universidade, ela é um benefício humano para todos os que terão a oportunidade dessa convivência com realidades tão diferentes. É preciso buscar meios de transição para essa democracia. 

A gente vê uma crise no Brasil que é assustadora: são 14 milhões de desempregados, e a gente sabe que o número é maior do que esse; 60 mil assassinatos por ano, um número de guerra civil. Por outro lado, a gente vê bancos que lucram trilhões por trimestre. Como você analisa um sistema com essas contradições estruturais? E que crise é essa em que bancos continuam lucrando tanto? É o colapso de um sistema que não tem como continuar. O debate sobre taxação de grandes fortunas não pode ser relevado. Não há como uma minúscula parte de pessoas acumular o que têm três bilhões de pessoas. Não há como, em meio a uma crise como essa, ter um grupo que lucra apesar das circunstâncias. A mudança que eu imagino pressupõe que a sustentabilidade não se dá apenas na dimensão ambiental; ela se dá na dimensão econômica, social, ambiental, cultural, política, ética e até mesmo estética. Não é compatível com os desafios que estão colocados para a dignidade humana o nível de acumulação que temos. Não é possível botar qualquer remendo em um sistema que produz mais destruição ambiental e mais destruição em termos das desigualdades sociais. Essa é a mudança que precisa ser feita. Não por acaso, a gente hoje vê o debate entre o fiscalismo dogmático e uma inflexão sobre esses paradigmas diante da radicalidade dos dados que você apresentou. É impossível ter algum tipo de estabilidade política e institucional em um cenário em que 60 milhões de pessoas não terão o que comer. Ou as pessoas param para pensar isso e buscam um caminho de equidade, ou não tem jeito. O Estado não pode repetir o tempo todo as mesmas fórmulas que o sistema manda. A realidade tem que falar mais alto. Muita gente consegue perceber o que é o negacionismo climático ou científico, mas não consegue ver o negacionismo econômico. É muito fácil ver um negacionismo no outro, difícil é ver o seu próprio negacionismo, que é quando você imagina que dá para manter a mesma forma de repetição de sucesso econômico social e cultural que nos trouxe a essa desigualdade e ao nível de degradação ambiental que temos. 

A gente olha para a campanha de 2018 e vê que nenhum candidato tinha em seu programa coisas diretas contra o genocídio da população negra, contra o feminicídio, essas pautas não estavam nos debates. Se daqui a dois anos você quiser ser candidata de novo, você colocaria essas pautas dentro de uma agenda prioritária? Eu considero que no meu programa essas pautas eram uma prioridade. Quando você coloca políticas públicas para combater estruturalmente o racismo é porque você está colocando isso como prioridade. Não é apenas no tópico que vai estar expresso isso, é o que está plasmado no conjunto do programa quando você pensa em emprego, em educação, na proteção dos direitos, no combate às formas de discriminação que se expressam com as mulheres e com os negros através de um salário menor, ou que se expressam com os índios na tentativa de aniquilá-los. Não adianta o meio ambiente ser um tópico no programa de governo se isso não se reflete na política de agricultura e, quando você vai destinar os recursos do financiamento, tem 14% para agricultura familiar, 1% para a agricultura de baixo carbono e o resto todo para agricultura que destrói floresta, destrói pantanal, destrói serrado.

Eu sempre repito uma palavra que acho que é do [psicanalista argentino] Ricardo Goldenberg que diz que só os tiranos propõem um destino onde tudo já está resolvido. Os democratas colocam a possibilidade de uma vida melhor construída com o esforço de todos. A população preta sempre vai enxergar mais do que qualquer governo que se disponha a enxergar tudo por ela. As mulheres sempre vão perceber mais do que qualquer governo que queira ter a pretensão de perceber e atender tudo por elas. Não sei se dá para entender o que eu estou dizendo. Eu defendo o meio ambiente, mas quem me critica não está criticando o meio ambiente. Existe um pensamento autoritário de esquerda que, quando você critica alguém, é como se você estivesse criticando a própria legitimidade daquela causa ou daquela bandeira – e isso é muito ruim para democracia e para as próprias causas. Não é porque eu critico um político operário que eu estou criticando os operários, não é porque eu critico uma determinada visão de direitos humanos que eu estou criticando o próprio estatuto da defesa dos direitos humanos. 

O debate fica muito em pessoas e não em ideias e por isso as suas ideias raramente chegam ao debate. O que vem antes é a mulher, é a mulher da floresta, é a mulher negra. Aliás, como você se identifica, Marina? Eu me identifico como uma mulher negra. Meu pai era negro com ascendência indígena e minha mãe era filha de português. Eu fui descobrir o preconceito com o negro quando fui para a cidade. O que se colocou no meu contexto político é a luta socioambiental, mas, como eu digo, ninguém totaliza o todo. Eu me sinto representada como mulher negra participando da luta do movimento negro no trabalho do Frei David, do EducAfro, por exemplo. Eu digo que a gente é arco e a gente é flecha, porque uma hora eu sou o arco que empurra a flecha em algumas coisas, principalmente nessa agenda ambiental. Mas noutra hora eu sou a flecha que é empurrada pelo arco de um outro lugar. 

Eu vejo você às vezes muito solitária nessa luta política. Para a direita você é mulher e negra, e isso soa como fraqueza. Para esquerda, você é evangélica, e isso soa como fraqueza. Você se sente às vezes sozinha nessa batalha? Uma coisa que as pessoas dizem é que eu estou sumida. Não importa se o tempo todo eu trabalho em prol das causas que eu acredito. Da forma como eu me disponho a fazer política, eu não existo. Eu fui pensando "por que isso?" e aí fui juntando coisas. Primeiro, porque para uma visão autoritária nada pode existir que não seja a própria construção daquele olhar. Então, como você tem autoritarismo de direita e de esquerda, aquilo que não se abriga em um desses guarda-chuvas não existe, porque isso pressupõe o terceiro, o lugar da escolha. O autoritarismo não permite a escolha. O máximo que o autoritarismo permite é a opção, e optar, dizia a minha professora de psicopedagogia Alicia Fernandes, é diferente de escolher. Na opção, eu vejo o que já existe e faço um cálculo do que é mais vantajoso ou menos prejudicial pra mim. Na escolha, com os materiais que tenho eu posso construir um lugar para onde ir. Eu vivi a escolha a vida toda, não é? Pra mim, isso é democracia, isso é a liberdade. No lugar onde eu nasci, tinha a opção. A minha avó, minha mãe, meu pai e meu tio me deram elementos com os quais, de alguma forma, pude criar um lugar de escolha para mim. Mas a opção era casar com um seringueiro, virar uma mãe de família, uma agricultora de subsistência ou ficar solteirona como a minha tia, morando para o resto da vida com algum irmão. Minha mãe me ensinou de cara a quebrar isso. Mulheres não cortavam seringa, elas cuidavam da casa e da roça de subsistência. Muita gente dizia: "O Pedro, coitado, é um infeliz: só teve filha mulher". E a minha mãe dizia: "Nós vamos mostrar que vocês não são uma desgraça na nossa família". E ela nos ensinou a cortar seringa. Nós aprendemos a fazer tudo que os homens sabiam fazer. Só que o lugar da escolha é um incômodo para a visão autoritária. Então, se você não está nem embaixo do guarda-chuva do azul nem embaixo do vermelho você não existe. Ficou muito perigoso não estar abrigado dentro de um território porque você sabe que vai ser massacrado. 

Estamos falando sobre liberdade? [Zygmunt] Bauman diz que as pessoas começaram a trocar liberdade por segurança. Se a gente olha para a meca do pensamento liberal e da liberdade individual, que são os Estados Unidos, a individualidade é o tempo todo bisbilhotada em nome da segurança. A gente consegue ver isso no macro, mas isso existe também no micro: nas relações as pessoas trocam liberdade por afeto, por pertencimento e até pelo prazer de continuar sentadas na mesa do bar nos finais de semana. Para mim, o desafio hoje não é o de ser socialista, comunista, capitalista; o grande desafio é o de ser sustentabilista, entendendo a sustentabilidade não só como algo no escopo ambiental, mas para além disso. A sociedade está insustentável do ponto de vista econômico, social, cultural, ambiental, insustentável do ponto de vista dos valores. Estou lendo um livro que é muito interessante chamado Depois do Futuro que fala que o século XX foi o século das utopias e que agora estamos vivendo em uma suspensão. Aliás, o século XX foi o que acreditou no futuro e agora nós estamos vivendo essa situação de um futuro que não veio porque ele foi tragado pelo sistema que vai fagocitando tudo. O futuro é o que nós estamos fazendo agora. 

E vislumbrando uma possível ausência de futuro. A possibilidade desse 'não futuro' não apenas como categoria intangível, mas como categoria concreta, real, que é o de condições que limitam a sucessividade da vida. Leonardo Boff diz que ético é tudo que promove e sustenta vida. Nesse momento nós estamos vendo a possibilidade de prevalecer uma ética que não promove e não sustenta a vida. 

O movimento feminista brasileiro foi responsável pela maior campanha contra o Bolsonaro antes de ele ser eleito: mais de um milhão de mulheres nas ruas. Essa terceira onda do movimento feminista no mundo vem forte e está alargada para acampar a luta antirracista, anti-LGBTfóbica e, em muitas escalas, a luta anticapitalista. Como você vê os movimentos feministas hoje? Eu gostei que você usou a palavra onda porque as pessoas pensam que onda é uma coisa que passa, mas onda é algo que permanece. Não tenho repertório para dizer isso tecnicamente, mas a força que promove as ondas é constante. E a condição da luta das mulheres contra a discriminação, o preconceito, as estruturas que promovem a desigualdade diante dos homens é constante. Somos seres humanos, essa é a nossa base comum, e se essa condição está ultrajada para a maior parte da população do planeta e do nosso país – não só apenas do ponto de vista do discurso, mas das próprias estruturas que produzem as práticas – então é constante, é permanente. "Onde foi, seja". Somos seres vivos plenos de direitos, de capacidades, e essa plenitude não pode se realizar apenas em uma parte. Então é assim em relação às mulheres, aos negros, às pessoas com orientação sexual LGBTQ+, é assim com todos aqueles que compartilham essa base comum. Somos radicalmente diferentes e radicalmente iguais. Somos humanos, não é? Eu estava conversando com a minha filha e falando que muitas pessoas, antes de pensarem na mulher que foi aviltada e ultrajada pelo Robinho e por seus amigos, lamentam por sua carreira. Subtraem aquele corpo aviltado no chão e lamentam a carreira do Robinho! O que produz esse tipo de indiferença? O que produz essa ruptura na alteridade de ter um ser humano que vale menos do que o sucesso do outro? Essa luta ganha corpo, alma, lei e interdição na luta das mulheres, que deve ser a de todos os seres humanos. 

Essa mesma luta das mulheres coloca em pauta o direito de interromper uma gravidez. A mulher da periferia não tem acesso ao aborto, mas a mulher rica sempre pôde fazer aborto no Brasil. Você falou agora da diferença entre escolha e opção, e durante essa entrevista a gente está falando muito de como a vida é movimento. Você tem hoje uma posição diferente da que tinha em relação ao direito da mulher de interromper uma gravidez? As formas que nós temos hoje para que essa gravidez seja interrompida no caso do estupro, no caso do risco para saúde, no caso da criança que não tem o cérebro, já estão estabelecidas em lei. Para que essas formas sejam ampliadas, como propõem algumas mulheres e alguns movimentos feministas, eu defendo que isso seja feito não por uma decisão apenas dos 81 senadores e dos 513 deputados, mas através de um plebiscito e de um debate amplo na sociedade brasileira, como já aconteceu em várias democracias do mundo. Defendo o debate para que se possa estabelecer um espaço de convencimento e de interação entre as diferentes posições. O que está em jogo envolve aspectos ligados à ética, à filosofia, ao direito, à cultura, à moral, à realização dos indivíduos e à espiritualidade. Ao advogar pelo plebiscito eu pago o preço por isso tanto no meio religioso quanto no meio dos que defendem que isso seja feito por uma lei no Congresso. Mas esse é o meu lugar de exercício da minha liberdade. Eu nunca fiz um discurso dentro da igreja que eu não tivesse feito fora dela. E eu nunca fiz um discurso fora que não tivesse feito dentro da igreja. Se você tem uma posição sobre o aborto diferente da minha, você tem o direito de não votar em mim se julgar que isso inviabiliza todo o resto daquilo que eu represento. Talvez isso explique muitos dos meus fracassos, mas eu tomei uma decisão. Eu não caio na expectativa daqueles que acham que irei atendê-los na totalidade dos seus desejos. Eu posso não atender a sua expectativa em relação ao aborto, mas isso nos inviabiliza? Você pode não me atender nas minhas expectativas de cunho religioso, mas isso nos inviabiliza? 

O que não é negociável politicamente? Acho que o fascismo. E o fascismo é também introjetado nas pessoas, passa a ser uma estrutura, um modus operandi. Não necessariamente a pessoa tem um aparato teórico fascista, mas passa a ter atitudes que são de natureza fascista. A minha vida e a minha trajetória foram sempre de separar aquilo que é a capacidade do diálogo das formas disfarçadas de aliança e conivência. Eu, sinceramente, acho muito estranho que algumas pessoas pensem que eu sou um grande mal pra sociedade quando não viram esse mal nas posições de estar com o Maluf, com o Collor, com o Renan Calheiros. Há limites e os limites são estabelecidos no terreno da ética, da política, dos valores. Mas cuidado: combater as ideias não significa querer eliminar as pessoas. 

Você concordaria com historiadores e filósofos que avaliam que o Brasil está vivendo hoje sob o fascismo? O Brasil e o mundo estão vivendo um processo de reconexão com essa forma perversa e recalcada de relação com a política, com as instituições e com as pessoas. O grande incômodo de uma visão radicalmente autoritária é com quem tem a capacidade de gozar diferente. Isso está na nossa ancestralidade: a eliminação dos índios que eram cinco milhões e hoje são 900 mil. Nós eliminamos um milhão a cada século. Esse desejo de eliminação do que goza diferente é o que há de mais radical. 

Você se arrepende de não ter apoiado Fernando Haddad de forma mais contundente? Não entendo essa pergunta. Eu declarei voto em Haddad. Fui a única. Os que criaram o ovo da serpente que não venham agora posar de que não foram eles que criaram. Eu agi de acordo com a minha consciência: declarei meu voto em Haddad. 

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