Ao emergir como resposta a momentos de grave crise política e social, processos constituintes não raro são vistos, em particular na América Latina, como uma espécie de panaceia capaz de resolver problemas e contradições que foram se acumulando numa sociedade ao longo do tempo.
Quando começam a funcionar, porém, a realidade costuma ser outra, e a tarefa de coadunar democraticamente os múltiplos interesses em jogo acaba se mostrando complexa, quando não frustrante.
A redação da nova Carta do Chile é bom exemplo disso. Resultado mais expressivo das colossais manifestações contra o establishment que tiveram lugar naquele país a partir de 2019, a Constituinte foi aprovada com o retumbante apoio de quase 80% da população.
Mas, cem dias depois de iniciados, os trabalhos estão atrasados e perdendo respaldo popular, em meio a um quadro político instável.
Com prazo de nove meses a partir de 4 de julho, prorrogável por mais três, o colegiado chileno só agora terminou de definir seus parâmetros de funcionamento.
O principal ponto de discórdia deu-se em torno da necessidade de dois terços dos votos para que um artigo seja aprovado —algo considerado difícil de ser atingido numa Assembleia fragmentada em diversas correntes ideológicas.
Embora a regra já existisse desde a formulação do órgão, o debate sobre ela se estendeu por semanas. Mesmo referendada no fim, estipulou-se que os itens que não alcançarem os sufrágios necessários poderão ser levados à população —à qual também caberá referendar a redação final da Carta.
Ocorre que a legislação original não contempla essa possibilidade, o que deve obrigar o Congresso chileno a modificar a lei para incluir a nova consulta popular.
Ao ritmo claudicante soma-se o escândalo envolvendo um dos sete vice-presidentes da Assembleia, que renunciou ao cargo por mentir sobre o fato de ter câncer.
Ademais, uma nova crise envolvendo o presidente Sebastián Piñera e a proximidade das eleições gerais devem atravancar o diálogo da Assembleia com o Executivo.
É nesse cenário turbulento e marcado por disputas internas que, no próximo dia 18, deve enfim começar o trabalho das comissões temáticas. A considerar os últimos três meses, será no mínimo desafiador para a Assembleia atender o apelo de sua presidente por “acordos amplos, plurais e diversos”.
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