quarta-feira, 6 de julho de 2022

A PEC QUE ESTRAÇALHA A CONSTITUIÇÃO

Editorial O Estado de S.Paulo

O Congresso dispõe do chamado poder constituinte derivado, que é a competência dada pela Assembleia Constituinte – titular do poder constituinte originário – para alterar o texto constitucional. É a própria Constituição prevendo a possibilidade de sofrer alterações, para que não fique desajustada à realidade social. Ou seja, as emendas constitucionais têm a finalidade de proteger a efetividade da Constituição ao longo do tempo.

O governo de Jair Bolsonaro, com a conivência do Senado, inverteu inteiramente essa dinâmica. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, a “PEC do Desespero”, é uma violência contra a Constituição e o Estado Democrático de Direito.

A “PEC do Desespero” – assim chamada porque se destina a permitir que o presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, compre votos para tentar reverter seu mau desempenho nas pesquisas – altera as regras do jogo eleitoral às vésperas das eleições. Para evitar mudanças abruptas desse tipo, a Constituição de 1988 estabeleceu o princípio da anualidade. “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, diz o art. 16. Segundo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF), as emendas constitucionais também têm de respeitar o princípio da anualidade.

Ainda que não altere formalmente o processo eleitoral, a PEC 1/2022 afeta diretamente as limitações vigentes relativas ao processo eleitoral. Uma ação estatal que até agora sempre foi proibida – a criação de benefício social em ano de eleições – passará a ser subitamente autorizada com a aprovação da “PEC do Desespero”. E, além do mais, essa interferência nas eleições não é um aspecto secundário, mas a finalidade central da PEC 1/2022. Isso não é segredo para ninguém.

A PEC 1/2022 não é apenas rigorosamente antidemocrática, mas explicitamente antijurídica. Na manobra forjada pelo governo Jair Bolsonaro, nada é sutil. O deboche com a ordem jurídica é escancarado. O governo que passou os últimos dois anos negando a gravidade da pandemia quer decretar agora um inexistente “estado de emergência” porque é um atalho malandro para burlar as limitações fiscais e eleitorais.

É patente que os requisitos legais para decretar a medida emergencial não estão preenchidos. O próprio governo sabe disso – tanto sabe que patrocinou a excrescência, tal como consta na PEC 1/2022, de criar um dispositivo constitucional dizendo que, até o fim de 2022, vigorará o estado de emergência no País.

Nunca foi necessário emenda constitucional para instituir ou extinguir estado de emergência. Por exemplo, o governo federal, ao decretar em maio o fim do estado de emergência causado pela pandemia de covid, não precisou mexer em nenhum texto constitucional. Bastou editar um decreto. Quando Bolsonaro almeja que o estado de emergência seja instituído por meio de PEC, ele está reconhecendo que se trata de uma ficção eleitoreira, sem base na lei. No caso, a via constitucional é mero recurso para evitar questionamentos na Justiça. Ou seja, altera-se a Constituição não para assegurar sua vitalidade, mas para minar sua capacidade de proteção da República, transformando-a em instrumento de abuso: permitir que Jair Bolsonaro viole impunemente as regras fiscais e eleitorais, uma vez que o Judiciário estaria supostamente de mãos atadas.

Os políticos comprometidos com o regime democrático não podem ser coniventes com tal violência contra a Constituição. Também o Judiciário deve estar vigilante, já que o poder constituinte derivado não é absoluto. Na tramitação de uma PEC, o Congresso está submetido a normas que o STF tem a missão de defender. Afinal, a Constituição de 1988, a despeito das aparências, ainda está em vigor – e vale mais do que a manobra ilegal e autoritária de um governante desesperado em manter-se no poder. 

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