Na segunda-feira, dia 12, uma notícia disputou atenção com o início do mandato da ministra Rosa Weber na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): a Folha de S.Paulo revelou que militares pretendem fazer uma “apuração paralela” e “em tempo real” da votação presidencial no dia das eleições.
O exercício de conferência de urnas não é inédito, nem em si inoportuno. Ao contrário, é medida de auditoria salutar, há muito tempo permitida pela Justiça Eleitoral por meio (entre outros mecanismos) dos boletins de urna (BUs), relatórios impressos em papel a partir de cada urna ao final da votação. Sempre estiveram acessíveis a campanhas e partidos, ficando afixados em cada seção eleitoral logo após o encerramento do pleito. Servem mesmo para permitir comparação dos números de cada urna com os dados consolidados do resultado final. Mas é inédito o envolvimento das Forças Armadas nessa tarefa, mais ainda com uma operação que promete ser paralela e em tempo real, ganhando ares de disputa de audiência em relação à apuração civil. A estratégia é clara, e nela a aferição da higidez do processo eleitoral é apenas secundária: os militares trabalham para, no plano simbólico ao menos, consolidar a percepção de que eleições não são assunto apenas para forças desarmadas, ao contrário do vaticínio do ministro Edson Fachin.
A proposta militar, segundo noticiado, é instruir seus cabos e soldados, que estarão trabalhando em todo o Brasil em operações de garantia das eleições, a tirar fotos dos códigos QR que darão acesso aos dados dos BUs imediatamente após sua divulgação. Essas imagens seriam então enviadas para o Comando de Defesa Cibernética do Exército, em Brasília, permitindo desde logo o acesso às informações de cada urna que selecionarem. Vale notar que a possibilidade de acessar mais rapidamente dados mais fáceis de se trabalhar decorre de uma recente mudança no artigo artigo 230 da Resolução 23.669 do TSE, promovida justamente durante a presidência de Fachin para atender a reclamos de maior transparência.
Em junho passado, o próprio tribunal já havia explicado que tal divulgação permitirá a “contagem simultânea de votos”, em paralelo à totalização em Brasília, por qualquer pessoa ou instituição. Daí porque Alexandre de Moraes parece ter ficado aviltado com a insinuação de que ele teria concedido algum tipo de privilégio informacional aos militares: dado que essa vantagem nem seria necessária, a notícia serviu apenas para expor o TSE perante outras entidades fiscalizadoras, que pareceram preteridas. Típico vazamento feito de má-fé para queimar a parte exposta – nesse caso, Moraes. Trata-se de mais um lance de deslealdade dos técnicos militares em relação ao tribunal: antes, um membro do time fora flagrado espalhando fake news sobre urnas em redes sociais. Em nota dura na mesma segunda-feira (12), o TSE negou qualquer acordo e reafirmou que a contagem de votos a partir dos BUs eletronicamente divulgados está à disposição “de todas as entidades fiscalizadoras e do público em geral”, e que qualquer cidadão poder ir às seções eleitorais e somar os boletins “de uma, de dez, de trezentas ou de todas as urnas”. O Ministério da Defesa apressou-se a soltar nota negando ter recebido a promessa de dados privilegiados, mas o estrago já estava feito.
Mesmo sem o acesso privilegiado aos dados que os militares deram a entender que teriam conseguido, o fato é que as Forças Armadas conseguirão, com algum esforço de coordenação dos seus muitos membros que trabalharão no dia das eleições em todo o país, reunir rapidamente os dados de um bom número de urnas no Comando de Defesa Cibernética do Exército. Com as fotos dos códigos QR repassadas por cabos e soldados, será possível baixar toda a informação pela internet, em formato facilmente tratável. Tendo de lidar com um número muito menor de urnas em comparação com o TSE, já que trabalharão apenas com um recorte de poucas centenas de máquinas entre as mais de 500 mil totais, é possível que os militares cheguem ao “seu” resultado ao mesmo tempo do TSE, ou até antes. Daí porque se falou não apenas em apuração paralela, mas também “em tempo real”, com conclusão na própria noite da eleição. É óbvio que essa contagem verde-oliva não teria valor jurídico nenhum, mas é igualmente óbvio que ela poderá causar uma boa quantidade de tumulto, principalmente em caso de discrepância em relação ao resultado oficial. TSE e Defesa, que insistem em falar que o trabalho de fiscalização está à disposição de “qualquer instituição”, parecem não enxergar o óbvio: as Forças Armadas não são qualquer instituição, são o braço armado da soberania nacional. Deveriam manter-se muito longe da disputa eleitoral, e não ficar fazendo espuma para alimentar teses esdrúxulas de um dos candidatos.
“Mas por que haveria discrepância se as urnas são íntegras?”, alguém poderá perguntar? A divergência é não apenas possível, mas provável, se os militares efetivamente pretenderem fazer não apenas uma conferência dos BUs que selecionarem, mas uma genuína “apuração paralela” a partir de uma amostra de urnas. Essa hipótese, por mais absurda que seja, não foi ainda descartada, como deveria ter sido na nota emitida pelo Ministério da Defesa na noite do dia 12.
Segundo as fontes militares ouvidas, os Exército conferirá 385 urnas das 577 mil totais, o que, dizem, lhes permitiria atestar a legitimidade da apuração com “confiabilidade de 95%”. Não está claro o que significa esse intervalo de confiança, nem quais conclusões a apuração paralela militar pretende extrapolar a partir das poucas urnas que prometem conferir. Uma primeira hipótese: a aferição será limitada a bater os dados dos 385 BUs com aquilo que constar da totalização do TSE. Na hipótese de haver divergência, os militares poderiam dizer, com 95% de confiança (segundo alegam), que as discrepâncias entre os números totalizados e os números que saíram dos tribunais estaduais estão presentes em tantas das outras 577 mil urnas do Brasil.
A não ser pela indevida participação dos militares, não há problema em se conferir a consistência entre os BUs e a totalização dos votos. Mas é curioso notar que, tendo em vista as próprias narrativas predominantes entre os urnaplanistas, essa primeira abordagem haveria de ser considerada insuficiente, pois ela identificaria apenas eventuais discrepâncias entre o que sai dos BUs e o que é totalizado em Brasília. Acontece que a grita ainda hoje encontrada em comunidades bolsonaristas é contra uma fraude que supostamente ocorreria em momento anterior, durante o registro do voto do eleitor pela máquina (segundo dizem, alguns votos bolsonaristas seriam computados como votos nulos). Para afastar essa hipótese, os testes necessários seriam outros, como o teste de integridade – com o qual, para surpresa de ninguém, os militares também vêm implicando. (Mesmo com o clima ruim desta semana, Alexandre de Moraes fez uma pequena concessão a uma recomendação da equipe técnica do Exército nesse procedimento.)
Daí porque devemos considerar uma segunda hipótese, muito mais preocupante, segundo a qual os militares pretenderiam, a partir da análise de menos de 400 urnas, atestar a confiabilidade da apuração como um todo, “com 95% de confiabilidade”. Ou seja, o TSE apuraria todas as urnas, de um lado, e ao mesmo tempo o Exército apuraria uma pequena fração das urnas, de outro, para ver se ao final o resultado civil fica dentro da margem de erro da matemática fardada. Essa segunda estratégia seria inclusive mais próxima ao que se poderia chamar propriamente de uma “apuração paralela” pelas Forças Armadas, como Bolsonaro vem pedindo há tempos.
Esse caminho seria absolutamente temerário por duas razões diferentes. A primeira, porque dentro da prometida “confiabilidade de 95%” caberiam resultados tão díspares quanto uma vitória de Lula no primeiro turno por margem bem apertada, quanto uma confirmação de segundo turno por margem igualmente tênue. Não é preciso bola de cristal para imaginar o tamanho da confusão que tal divergência geraria. A segunda, pela dificuldade de se avaliar a qualidade estatística das urnas que comporão a amostra dos militares. Precisar a confiabilidade amostral das 385 urnas eleitas dependeria decisivamente de quais urnas são essas, já que a distribuição de votos entre Lula e Bolsonaro não é uniforme em todas seções eleitorais: ela varia segundo estados, municípios e até mesmo bairros. Mas não há qualquer indicação de que os militares, que gostam de cobrar transparência enquanto praticam opacidade, pretendam abrir essa sua caixa preta, que possivelmente os sujeitaria a variadas críticas de método.
Como Barroso e Fachin antes dele, Alexandre de Moraes é apenas mais um presidente do TSE cuja disposição para o diálogo com os técnicos indicados pelo Ministério da Defesa foi abusada de forma desleal. De todo o imbróglio, sobram duas conclusões. A primeira: os militares estão aproveitando sua inédita incursão nas eleições para alimentar a tensão política de forma irresponsável, aumentando chances de cenários de confusão eleitoral que só interessam a Jair Bolsonaro. A segunda: as Forças Armadas brasileiras, definitivamente, não deveriam sequer estar entre as instituições fiscalizadoras de eleições – especialmente não destas eleições, nas quais além de tudo elas têm lado claro. O fantasma da “apuração paralela militar” é mais uma assombração que terá de voltar para profundezas cheias de fogo e cheiro de enxofre, onde foi concebida, quando o Brasil voltar ao normal.
Rafael Mafei É professor da Faculdade de Direito da USP e autor de Como remover um presidente (Zahar, 2021).
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