No início da noite de 7 de outubro de 2018, o documentarista Guilherme Daldin se encontrou com amigos em um bar, no bairro São Francisco, em Curitiba, reconhecido então como um reduto progressista. Instantes antes, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tinha consolidado a apuração das urnas indicando que a eleição presidencial seria decidida em segundo turno. Vestindo uma camisa vermelha, estampada com a foto do ex-presidente Lula (PT), Daldin conversava com outros frequentadores, perto do meio-fio e ao lado de um bicicletário, quando um motorista jogou o carro contra o grupo, atingindo o jovem. Amigos da vítima chegaram a perseguir o automóvel, mas o motorista fez menção de estar armado. Daldin sofreu ferimentos leves. Posteriormente, registrou boletim de ocorrência (BO) e, apesar de terem identificado o condutor a partir da placa do carro, ele nunca recebeu respostas da polícia.
O episódio acabou se tornando um divisor de águas na forma com que Daldin expressa suas preferências políticas. Até então, ele costumava andar regularmente com camisetas de movimentos sociais e culturais. Depois do incidente, o documentarista passou a ter mais cautela. Só sai de casa usando camisetas de grupos progressistas se for a locais com circulação restrita – como casa de amigos – ou a manifestações em que se sinta mais seguro. O caso de que foi vítima e os repetidos episódios de violência política fizeram com que ele passasse a sentir insegurança para manifestar suas opiniões.
“Quando fui registar o BO, no computador do escrivão tinha vários adesivos do [presidente Jair] Bolsonaro. O bolsonarismo sequestrou as instituições, e isso é assustador”, disse Daldin, de 30 anos. “A vida inteira eu saí com camisetas de movimentos. Agora, não. [O episódio] não mudou o que penso, mas como me expresso. É como quem vai ao estádio de futebol e vai com a camisa do time por baixo de outra blusa. Vai escondido e só tira [a blusa] no estádio, quando está no meio da torcida do seu time”, exemplificou.
O caso de Daldin está longe de ser isolado – faz parte de uma tendência. O medo de expressar publicamente convicções políticas é um dos principais resultados da pesquisa Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022, realizada pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com apoio do Fundo Canadá para Iniciativas Locais (FCIL). O estudo leva em conta entrevistas feitas pelo Datafolha com 2,1 mil pessoas de mais de 16 anos, entre os dias 3 e 13 de agosto.
Segundo a pesquisa, 67,5% dos entrevistados têm medo de serem agredidos fisicamente em razão de suas escolhas políticas ou partidárias. Outro dado que chama a atenção é o fato de que 3,2% disseram ter sofrido algum tipo de ameaça no último mês por causa de suas preferências políticas. Extrapolando esse percentual para a população brasileira de mais de 16 anos, isso equivale a 5,3 milhões de pessoas que teriam sido ameaçadas por motivação política, destaca Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP. Apesar de o país viver um período em que as mortes violentas vêm em queda, a sensação de insegurança vem em escalada crescente. Na pesquisa anterior (em 2017), o índice de medo de violência política ficou em 0,68 – em uma escala que vai de 0 a 1. No levantamento atual, o indicador chegou a 0,76.
“Em 2017, esse índice ficava no terceiro quartil (de 0,50 a 0,75). Agora, estamos acima do quarto quartil, o que indica que, sim, a população brasileira está com muito medo de se expressar politicamente”, resumiu Lima. “Se a gente olhar, desde 2019, o Brasil já é apontado como um dos dez países com tendências autocráticas do mundo. E as eleições deste ano vão ocorrer em um clima de insegurança, de ataque, de alegações de fraudes e de ataques e fake news sobre a segurança das urnas”, acrescentou Isabelle Rodrigues, gerente de Operações da Raps.
Os especialistas enumeram casos de violência recentes que contribuem para o recrudescimento dessa sensação, como os assassinatos do petista Marcelo Arruda, no Paraná, e de Benedito Cardoso dos Santos, no Mato Grosso – ambos mortos por bolsonaristas. Lembram também os ataques a jornalistas, principalmente mulheres, como Vera Magalhães. “Tudo isso mostra que nosso processo eleitoral está longe de ser normal. É um cenário de disfunção. De um lado, temos um grupo que vai para a rua e consegue se mobilizar de forma expressiva. Mas fora desse grupo, do outro lado, as pessoas estão com medo. Medo de pôr um adesivo no carro, medo de se expressar, de usar uma camiseta”, completou.
Uma consequência direta desse fenômeno é que, entre as pessoas que relataram sentir mais medo, é maior a tendência de apoiar soluções ou posições autoritárias (índice de 7,48, em uma escala que vai até 10) em comparação àqueles que responderam sentir menos medo (7,16). A boa notícia é que a tendência a apoiar o autoritarismo recuou em relação à pesquisa passada: de 8,10 para 7,29. Um das conclusões da pesquisa, no entanto, é que a exploração do medo se tornou plataforma política, a ponto de colocar aspectos da democracia em risco – já que esse fenômeno pode implicar “soluções” antidemocráticas.
“O projeto político é transformar o medo em pânico. E o pânico é um péssimo conselheiro, porque estimula medidas imediatistas e ineficazes, como o excludente de ilicitude, metralhar a petralhada, tiro na cabecinha… Propõe esse tipo de resposta, quando a solução seria reforçar políticas sociais, não se responder com armas e tiros”, apontou Lima. “O medo e a violência podem ser instrumentalizados por grupos políticos como ferramenta de mobilização. A gente consegue identificar que o brasileiro está com medo de exercer um de seus direitos fundamentais, que é o de expressar suas posições políticas e ideológicas”, disse Rodrigues.
A pesquisa também revela uma relação direta entre a propensão à democracia e fatores como escolaridade e renda. Quanto maior o nível escolar e o rendimento dos entrevistados, maior a adesão a aspectos democráticos. Por outro lado, quanto menores a escolaridade e a renda, maior a tendência de apoiar medidas autoritárias. Para os especialistas, os dados revelam a necessidade urgente de políticas públicas voltadas a criar condições econômicas e sociais mais igualitárias, como forma de fortalecer a democracia.
“É necessário garantir que todos tenham direitos e oportunidade de forma mais justa. É preciso que os cidadãos tenham condições mínimas. Em uma sociedade de medo e em que a pessoa não sabe o que vai comer na próxima refeição, a participação democrática fica prejudicada nessas camadas mais vulneráveis”, apontou Rodrigues.
Por outro lado, o levantamento traz dados positivos em relação ao processo democrático. O índice de propensão do brasileiro à democracia ficou em 7,25 (em uma escala que vai até 10), patamar considerado alto pelos pesquisadores. Em complemento a esse aspecto, 88,1% afirmaram que o vencedor das eleições deve assumir o cargo; 89,3% concordam que é essencial para a democracia que o povo escolha seus líderes em eleições livres e transparentes; e 88,5% assinalaram que “o povo ter voz ativa e participar nas principais decisões governamentais é essencial para a democracia”.
“Quando a gente olha para os cerca de 10% que não concordam, a gente não pode afirmar que o processo eleitoral é desimportante para essas pessoas. O mais provável é que elas tenham desconfiança no processo eleitoral, tendo em vista uma narrativa de que as eleições podem ser fraudadas”, observou Rodrigues. “Mas o resultado geral é expressivo e mostra um apoio massivo ao processo. É um sinal de apreço pela democracia”, disse.
Além disso, a pesquisa mostra que avançou a percepção do brasileiro em relação a direitos garantidos pela Constituição. O número de pessoas que consideram que há racismo no Brasil saltou de 72% para 83,4%. Em uma conjuntura de conflitos e aumento de incidentes socioambientais na Amazônia, 82% dos entrevistados se manifestaram favoráveis à demarcação de terras indígenas. O estudo também mostrou que mulheres e pessoas pretas tendem a apoiar mais a agenda de direitos do que homens e pessoas brancas.
“A Constituição mostrou que a agenda de direitos é a salvação da nossa sociedade. A principal mensagem que os resultados da pesquisa nos dá é que não conseguiremos garantir cidadania e direitos sociais se não enfrentarmos de forma mais efetiva a questão da segurança pública, entendida como direito fundamental e como forma de minimizar posições autoritárias”, disse Lima.
Enquanto isso, na conservadora Curitiba, Daldin mantém na gaveta as camisetas de movimentos sociais e culturais. O documentarista, no entanto, sente que a onda de autoritarismo está dando mostras de arrefecimento – como mostrou a pesquisa. Em seu círculo social, o clima ainda é de cautela. Mas ele espera poder em breve se sentir seguro para expressar suas preferências políticas e socioculturais. “Eu percebo que essa violência política começou em 2013 e chegou ao auge em 2018. Ainda estamos longe da normalidade, principalmente aqui [em Curitiba], onde sempre houve cara feia para quem se coloca como progressista. A gente estava voltando a sentir confiança, mas o assassinato do Marcelo [Arruda], em Foz, e outros episódios fizeram a gente recuar. Espero que em breve possa voltar a usar minhas camisetas com tranquilidade, como sempre foi”, disse.
Felippe Aníbal
Repórter freelancer em Curitiba.
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