Não se desqualifica como doido varrido um político vitorioso por tão larga margem
"O céu funciona na base do favor. Se fosse por mérito, você ficaria de fora, e o seu cachorro entraria". A tirada de Mark Twain pode ser endossada por Javier Milei. Fato público, ele tem vários cães clonados de Conan, um mastiff inglês já morto, com o qual se aconselha por canal mediúnico. Mas, atenção, não se desqualifica como doido varrido um político vitorioso por tão larga margem, ainda que conste como "El Loco" em seu histórico. A mídia já modula o diagnóstico para o de pragmático histriônico no poder.
Há razões. Eleito, o político pode descer do palanque e serenar, como fez Milei. Deu um tempo em Conan, foi se consultar nos EUA. No banco de reserva está a vice, que desfia ameaças contra a redemocratização argentina. Mesmo sem explicitar o mundo cão, é dela a ideia de que a coleira da tirania é a única saída para o país.
Outra razão evoca a experiência de Pavlov sobre reflexo condicionado, em que um cão saliva mediante estímulo alimentar, mesmo saciado. O toque de um sino desencadeia a reação. A sinalização de acabar com banco central e privatizar toda a economia funciona como a estimulação do cachorro pavloviano: foi boa a reação do mercado financeiro, a Bolsa subiu. E um canzoal brasileiro já saliva para a festa da posse.
Faz-se viável a hipótese da bizarrice como constante psicopolítica para ultradireitistas. Já se sabe que cabelo despenteado, ao modo da peruca de Trump, fornece bom ícone gráfico no populismo digital. Milei quer parecer um leão. É técnica de "cosplayer", personagem construída pelo marketing para desviar a atenção de questões sérias, estimulando uma espécie antiga de fanatismo popular.
Quando se dizia durante o nazismo que Hermann Göring era "amigo fanático dos animais", a expressão, elogiosa, designava entrega apaixonada. A empolgação dos jovens eleitores, análoga à dos shows de rock, acolhe emoções dessa ordem, polimorfas quanto ao objeto. O voto no ex-roqueiro Milei desdobra-se para Conan, o conselheiro.
Emoção é resposta imediata a um estímulo. Não comporta crítica. E esta seria mesmo estranha ao desespero dos argentinos, quarenta por cento sem condições regulares de alimentação e dez por cento em nível de miséria. Contra o descalabro peronista, toda repulsa parece pouca. Nesse contexto a palavra democracia não mobiliza esperanças nem condutas, abrindo espaço para estímulos extravagantes, sejam fantasias ou aspirantes ao poder.
Um outsider político é animal desgarrado, embora atento à coleira institucional: o poder pode ser erótico, mas não dispensa as aparências. Milei conhece a lei de Murphy, de que se algo pode dar errado, dará. E de uma coisa ele parece seguro: se o pragmatismo falhar, um mastiff inglês estará a seu lado, ladrando conselhos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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