Embora não seja divulgada a autoria oficialmente, parlamentares costumam ser celebrados por apadrinhar recursos a seus redutos
No centro de uma crise entre governo e Congresso, as emendas de comissão têm sido usadas por deputados para irrigar suas bases eleitorais em um mecanismo que omite os verdadeiros responsáveis pelas indicações dos repasses. O cruzamento entre informações fornecidas por congressistas, manifestação de prefeitos nas redes sociais e uma planilha do Congresso enviada ao Executivo, obtida pelo GLOBO, mostra que, embora não seja divulgada a autoria oficialmente, parlamentares costumam ser celebrados por apadrinhar recursos a seus redutos. Para especialistas, essa opacidade compromete o controle dos gastos públicos.
As emendas de comissão foram inchadas em 2023 após o fim do orçamento secreto — extinto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pela falta de transparência quanto às indicações — e em meio às negociações da chamada “PEC da Transição”, que ampliou o Orçamento federal após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa modalidade, que não é de execução obrigatória, alcançou o valor de R$ 6,8 bilhões no ano passado. Para 2024, o Orçamento aprovado pelo Congresso previa R$ 16,6 bilhões para este tipo de despesa. O presidente vetou R$ 5,6 bilhões, deixando R$ 11 bilhões disponíveis. O corte deu início ao mais novo capítulo de tensão entre Executivo e Legislativo.
Agradecimento nas redes
O interesse dos parlamentares era turbinar as verbas para suas bases em ano de eleição municipal. No dia 11 de janeiro, por exemplo, o prefeito de Pombal (PB), Dr. Verissinho, usou as redes sociais para comemorar a assinatura de um convênio de R$ 4,3 milhões para a pavimentação de ruas. Na publicação, deu o nome do responsável pela destinação da verba:
— Preciso agradecer ao deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) por tudo que tem feito por Pombal e por esse grande presente que ele deu para a nossa cidade.
Líder do Republicanos na Câmara, Motta é apontado como possível candidato à sucessão de Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Casa no ano que vem. A postagem acabou revelando o que não aparece em documentos: não há registro oficial de que o dinheiro tenha sido indicado por Motta para Pombal. O convênio foi assinado usando recursos da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado — da qual Motta, deputado, sequer faz parte.
O exemplo de Pombal não é o único. Em Dois Riachos (AL), o prefeito gravou um vídeo agradecendo ao líder do MDB na Câmara, o deputado federal Isnaldo Bulhões (AL). No caso, o valor é de R$ 1,9 milhão para a pavimentação de ruas no município, recurso que também saiu das emendas de comissão sem informações sobre a participação do parlamentar. Procurados, Motta e Bulhões não responderam.
Professora de finanças públicas da Fundação Getulio Vargas e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane afirma que a possibilidade de rastrear os parlamentares que indicam os recursos e os beneficiários finais é tão importante quanto a necessidade de alinhar as emendas com o planejamento de políticas públicas .
— A opacidade compromete o controle e favorece a lógica de que o parlamentar estaria quase como a sacar recursos privados em um banco qualquer — afirma. — O país precisa de uma reforma orçamentária que conecte a execução do orçamento público, de fato, ao planejamento. Sem isso não há qualidade do gasto público e impera o compadrio de curto prazo eleitoral — disse.
Na Bahia, Campo Formoso é o reduto eleitoral do líder do União Brasil, Elmar Nascimento. A cidade foi a terceira mais contemplada do país em recursos do Ministério do Turismo, comandado por Celso Sabino, aliado do parlamentar. Na última semana de dezembro do ano passado, a pasta assinou um convênio de R$ 9,5 milhões com o município do semiárido baiano, localizado a 406 km de Salvador. O dinheiro, assim como para Pombal, saiu das emendas de comissão.
Segundo convênio firmado com a pasta de Sabino, o dinheiro servirá para a construção de um “Centro de comercialização de Produtos associados ao Turismo”. Procurados, Elmar Nascimento e o prefeito Elmo, seu irmão, não responderam. O Ministério do Turismo, por sua vez, ressaltou que o recurso, apesar de chancelado pela pasta, é uma emenda aprovada pela Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado.
“Cabe informar, ainda, que todas as emendas parlamentares passam por uma análise técnica e estão de acordo com a Política de fomento ao Turismo no país. A construção de um Centro de comercialização de Produtos associados ao Turismo está dentro do escopo permitido por Lei, sendo um importante equipamento gerador de fluxo turístico e movimentação da economia do município”, afirma a pasta.
Em outra situação, o prefeito de Jussara (BA), Tacinho Mendes, repetiu o “padrão” e gravou um vídeo agradecendo um parlamentar pelos recursos das emendas de comissão. No seu caso, foi o deputado João Bacelar (PL-BA). Sozinha, a cidade recebeu R$ 13 milhões em emendas de comissão.
Em Itabaiana (SE), um dos deputados federais apontados pelo prefeito como responsável pelo envio de recursos é Ícaro de Valmir (PL-SE). Os valores, assim como o de outras cidades, também chegaram por meio de emendas de comissão. Ícaro, entretanto, é um parlamentar no primeiro mandato: ou seja, como não era deputado em 2022, teoricamente não poderia indicar emendas para o ano de 2023. O parlamentar, porém, é apontado como responsável pela indicação de R$ 10 milhões para o município, repasse realizado nos últimos dias do ano.
— Todos os deputados têm as demandas de seus estados. É algo natural que, à medida que o orçamento vai surgindo, os parlamentares de certa forma apadrinhem essas emendas — disse Valmir.
Ofício com beneficiados
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), O GLOBO teve acesso a todas as planilhas enviadas pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), presidente da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado, à Secretaria de Relações Institucionais (SRI) da Presidência. De acordo com uma portaria da SRI, publicada em março de 2023, as comissões são responsáveis por enviar, por meio de ofício, como o dinheiro será aplicado.
Com mais de 60 páginas, o senador lista uma série de cidades e os respectivos valores. O documento, entretanto, não aponta quem foi o parlamentar responsável por definir os beneficiários.
Perguntada se existia algum controle sobre os responsáveis pelas indicações ou se tinha conhecimento de que, nos exemplos citados, a indicação foi feita por deputados, a SRI respondeu que “nos termos da legislação vigente, o papel da Secretaria de Relações Institucionais, durante a tramitação das emendas da rubrica RP-8 (emendas de comissão), é o de encaminhar as relações dos projetos contemplados aos ministérios responsáveis pela análise e execução dos respectivos projetos — relações, estas, que são elaboradas pela mesa diretora de cada comissão.” Castro não respondeu.
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