Baby do Brasil pautou o debate de carnaval. Atenção, todos: estamos em Apocalipse, o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos, procurem o Senhor! Houve contestação imediata de Ivete Sangalo, mas essas palavras — apocalipse e arrebatamento — têm força até para invadir um alegre carnaval.
Ambas são expressões religiosas. Arrebatamento é o resgate dos fiéis antes de tudo acabar. Gosto também de Armagedom, a batalha decisiva entre as forças do bem e do mal. Quem sabe não aparece num trio elétrico do próximo carnaval? Apocalipse, arrebatamento, Armagedom e talvez Megido, o lugar onde as tropas se concentram para a batalha?
Dá música, e o apocalipse pode ser cantado de ponta a ponta no Brasil. Estamos em apocalipse, Valdemar, a PF fechou o cerco contra Bolsonaro. Estamos em apocalipse, anunciam as lojas para divulgar suas liquidações de verão.
Estamos em apocalipse, dirão alguns ecologistas, avaliando os dados das mudanças climáticas. Em apocalipse estão também os moradores de Maceió, com a cidade afundando pela exploração de sal-gema e, ao mesmo tempo, investindo R$ 8 milhões no carnaval do Rio para promover o prefeito e Arthur Lira.
Já tivemos uma visão mais branda de apocalipse no livro de Umberto Eco “Apocalípticos e integrados”. Ali se discutia a posição sobre a cultura de massa. Apocalípticos viam nela uma decadência, como a Escola de Frankfurt. Otimistas, como Marshall McLuhan, viam novas possibilidades graças à integração que criaria uma aldeia global.
Depois disso, veio a internet. O apocalipse agora é diferente. Fake news, ataque a reputações, golpes na democracia. No princípio, havia muita esperança: não se tratava mais de um espectador passivo, mas de alguém que interage com as notícias. O mundo avançaria.
Creio que Baby tocou num ponto interessante, sem perceber que sua visão, estritamente religiosa, é na verdade um instrumento para analisar o mundo. Vejo apocalípticos entre a torcida do Flamengo; a do Corinthians no momento está cheia deles; eles estão por toda parte.
Se falo sobre a profecia de Baby com certa leveza, é porque ela nos dá entre cinco e dez anos para o arrebatamento. Isso coincide mais ou menos com minha expectativa de vida. De certa forma, em termos pessoais, o apocalipse é inevitável: está dentro do prazo.
A orientação dela é procurar o Senhor, garantir a vida depois da morte. Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Possivelmente, o apocalipse virá, e restarão na face do planeta apenas máquinas remoendo incessantemente os antigos pensamentos humanos, reelaborando ao infinito nossas loucuras, produzindo artificialmente novos apocalipses, arrebatamentos, armagedons e, se possível, novos carnavais.
De qualquer forma, apesar das críticas que sofreu, Baby merece agradecimentos. O que teríamos para falar de pessoas pulando e cantando num calor infernal? Alegorias, comissão de frente, harmonia e samba-enredo?
Além do mais, de cinco a dez anos é um tempo razoável. Imaginem se muitos tivessem apenas esse horizonte de vida? Os punks eram meio sombrios porque não viam futuro. O grito de Baby nos abre caminho pelo menos para viver o presente, sabendo que estamos simplesmente driblando suas profecias, talvez macetando o apocalipse, como defendeu Ivete Sangalo.
Minha única participação no carnaval foi documentar o desfile do bloco Loucura Suburbana. O samba-enredo é uma defesa da loucura. Se alguém gritasse ali no Engenho de Dentro que estamos em apocalipse, procurem o Senhor, seria possível perguntar “mas qual senhor?”, se há tantos sambando entre nós. Estamos em apocalipse? Mas isso já foi há tanto tempo, Baby. Estamos cantando precisamente para esquecer.
Artigo publicado no jornal O Globo em 19/02/2024
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