Nascida em meio às crises que abalaram os equilíbrios
políticos, militares, religiosos, sociais e ideológicos do Segundo Império, a
República sacudiu o torpor que tomava conta da sociedade brasileira em
decorrência da morosidade e do caráter seletivo da Monarquia, travada que
estava pelos compromissos com o mundo rural e o conservadorismo.
O Manifesto Republicano divulgado em 3 de dezembro de 1870
abriu a fenda inicial, com um conjunto de promessas e compromissos voltados
para a crítica da Monarquia e o início de uma nova fase ético-política no
Brasil, na qual prevalecessem os valores da liberdade, da democracia e da
descentralização. Seu foco era a denúncia dos estragos causados ao País pela
“irresponsabilidade” do Imperador, que atrofiava as províncias, impedia a
democracia e produzia grave “prostração moral” da Nação.
O Manifesto passava ao largo da questão social: da
escravidão. Concentrava-se na questão do regime político, deixando assim de se
preocupar com seus fundamentos materiais. Seu texto era vibrante, mas tinha um
único alvo: “a influência perniciosa do poder pessoal”, o “absolutismo prático
sob as vestes do liberalismo aparente”.
Escreveram os signatários: “A centralização, tal qual
existe, representa o despotismo, dá força ao poder pessoal que avassala,
estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a
liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um
só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso
local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites
obrigados do grande astro da Corte — centro absorvente e compressor que tudo
corrompe e tudo concentra em si — na ordem moral e política, como na ordem
econômica e administrativa.”
Na verdade, o Manifesto subordinava a luta pela abolição ao
tema da liberdade em geral, abstrata. Não era uma impropriedade, mas a
insistência no regime dificultou a difusão popular da ideia republicana.
Foi preciso que a efervescência chegasse às senzalas e
mobilizasse os elementos urbanos abolicionistas durante a década de 1880 para
que a Monarquia perdesse capacidade de se reproduzir. O golpe de 15 de novembro
de 1889 estabeleceu em cima o que estava sendo imposto por baixo. O regime
político mudou, depois de que também se alterou, pouco mais de um ano antes, o
regime de trabalho.
A mudança se fez com suavidade, com algum barulho mas quase
nenhuma violência. Viu-a bem o Conselheiro Aires do grande Machado de Assis:
“Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem
trocar de pele. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao
que era na véspera, menos a constituição”.
O republicanismo, ontem e hoje
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.
No caso da educação pública, em particular, a imperfeição
foi completa: instituiu-se um sistema educacional, mas ele não chegou ao
conjunto da sociedade e nem ganhou estabilidade. Adquiriu legitimidade nas
décadas de 1940 e 1950, mas aos poucos foi sendo corroído e confrontado pelo
avanço do sistema particular de ensino. Chegamos ao século XXI em situação
lamentável: ao lado da desigualdade social profunda, o fracasso da educação
pública representa o mais retumbante descumprimento das promessas republicanas.
O Manifesto Republicano foi um marco, mas paradoxalmente
perdeu-se nos meandros do regime republicano que então se constituiu. O que
deveria ter sido sua realização maior permaneceu um dever ser. O programa e os
princípios que o inspiraram eram nobres, mas não dialogavam de fato com os
fundamentos e os personagens da sociedade imperial. Pairavam sobre ela. Mesmo a
marcha da modernização, a industrialização e a urbanização, não sacudiu por
inteiro os andrajos da sociedade tradicional enraizada no Segundo Império.
Mas houve progresso, a materialidade social mudou, criou-se
uma nova sociedade e um novo Estado foi-se afirmando com base num pacto social
que evitou a guerra civil e o choque violento das classes. Compromissos e
conciliações deram o tom do processo, suavizando as transições e o arbítrio do
sistema, dos governos e regimes que se sucederam no tempo. O Brasil não se
tornou um caso perdido, muito menos um zumbi entre as democracias
contemporâneas.
Um novo Manifesto Republicano seria uma tarefa democrática
de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da
República. Em termos de valores a serem fixados, a liberdade precisa ser mais
uma vez reiterada, “abrir as asas sobre nós”, em todos os planos. A igualdade
deve ocupar lugar de destaque, em termos substantivos. A democracia requer
defesa e valorização. Uma pedagogia democrática consistente precisa ser posta
em circulação, para promover civicamente a população e prepará-la para a
complexidade inerente à era em que estamos.
Numa época como a nossa, de “excessos”, redes e informações,
será imprescindível enfatizar a educação pública, a liberdade de pensamento, a
autonomia dos cidadãos, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção.
Deve-se, também, modular com clareza a questão da propriedade privada e fazer
com que a liberdade do mercado se componha com distribuição de renda. Temos de
voltar a discutir a questão da regulação pública da economia. O mercado hoje é
tudo e não há como seguir em frente em termos republicanos e democráticos sem
que a dinâmica mercantil abrace a justiça e a inclusão social.
Cientista político e professor da Universidade Estadual
Paulista/Unesp
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