Os ventos que sopram na Bolívia e no Chile são
surpreendentes para quem se detém apenas em números de crescimento econômico.
Tento entendê-los com minhas lembranças antigas e os dois últimos trabalhos que
fiz nesses países. E algumas leituras.
Na Bolívia cobri para o Estadão uma crise singular no
governo Evo Morales. Um choque com sua própria base de sustentação. O tema era
a estrada Atlântico-Pacífico, financiada pelo Brasil. Ela iria atravessar um
território indígena e houve grande reação. Cruzaria não apenas o território
indígena, mas também o Parque Nacional Isiboro-Secure.
Mas ao longo desse tempo a política econômica de Evo Morales
conseguiu grandes índices de crescimento e reduziu a pobreza, incluída a
extrema pobreza. A política ambiental nunca foi muito bem. Lagos secando e um tratamento
leviano com as queimadas, que acabaram se tornando um drama nacional neste ano.
Quando vejo o desenrolar da experiência do Movimento ao
Socialismo, acabo suspeitando de que as variáveis econômicas e ambientais foram
secundárias como estopim. O nó estava na política, na vontade de Evo Morales se
perpetuar no poder. A Constituição não permitia. Ele fez um referendo em 21 de
fevereiro de 2016. Perdeu e, em seguida, ganhou no tapetão da Justiça Eleitoral
e da Suprema Corte. Isso ficou engasgado na garganta dos eleitores.
Baseio-me no relato de repórteres que cobriram a campanha de
Evo. Registraram gritos de “o povo disse não” quando ele passava.
Vieram as eleições, a súbita suspensão das apurações, laudo
da OEA denunciando irregularidades. Quando Evo aceitou uma nova eleição, era
tarde. A polícia já havia cruzado os braços, o Exército pediu sua renúncia,
como o fez com Sánchez de Lozada no passado.
Lembro-me, no exílio, de que a Bolívia representava para nós
um símbolo de instabilidade. Quando os bolivianos voltaram um pouco antes de
nós para seu país de origem, costumávamos brincar: levem o carnê mensal do
metrô, pois podem ter de voltar antes do fim do mês.
Agora é com tristeza que vejo o país mergulhar de novo na
instabilidade. Alguns temas do passado afloram de novo, como a tensão entre
brancos e indígenas, com lances racistas e violência nas ruas. Apoiadores de
Evo Morales achavam que ele era o único capaz de unir um país dividido. Não o
foi para sempre. E certamente perdeu essa condição no referendo. A outra parte
se sentiu lograda, daí os gritos de “não somos imbecis!” nas manifestações.
Fui ao Chile, também pelo Estadão, para cobrir uma revolta
estudantil. Uma das muitas, mas essa mais longa. Também com base nessa
experiência, compreendi como era importante para os chilenos uma educação
gratuita de qualidade. Apesar dos arroubos da juventude, o movimento estudantil
tinha o apoio de grande parte da sociedade. Quando ouço dizer que o Brasil terá
algo como no Chile, a primeira coisa que me vem à mente é a diferença entre os
movimentos estudantis chileno e brasileiro. E ainda há a precária situação dos
aposentados.
Não quero dizer que o Brasil não tenha problemas, apenas que
são situações diferentes. No Chile houve uma fermentação na sociedade e uma
revolta, guardados proporções e contextos, com características parecidas com o
que aconteceu no Brasil em 2013.
Isso é o que me leva a afirmar como é vazia essa discussão
sobre exortar os brasileiros a se rebelarem como no Chile e as ameaças de Lei
de Segurança Nacional, AI-5 e outras maneiras de endurecer. Na minha opinião,
tanto o líder que conclama como os que o ameaçam com a punição trabalham com a falsa
ideia de que esses movimentos nascem de cima para baixo, não dependem de uma
voz de comando nem mesmo do sistema partidário.
Na minha opinião, repito a fórmula, porque não quero
envolver ninguém nessa fórmula, os ventos que sacodem a América do Sul refletem
um grave desequilíbrio, que, por sua vez, nasce em algo maior: as ilusões do
socialismo e do liberalismo.
O modelo econômico boliviano começava a declinar, o déficit
subia, era evidente a necessidade de um reajuste que vai abalar a taxa de
investimento. No caso chileno, uma visão radical do liberalismo com pouca
sensibilidade social. Em governos de esquerda como o da Venezuela, uma
irracionalidade econômica gritante.
Integrar racionalidade econômica e sensibilidade social e
ambiental é um desafio. Mesmo porque é um programa aparentemente modesto,
poucas chances de empolgar as massas ou produzir um líder popular. Mas a julgar
pela experiência de outros países, como Portugal, com toda a sua modéstia, a
coisa parece funcionar.
Aqui a cena está dominada por sonhadores, glorificando o
Estado ou o mercado com ideias acabadas sobre nosso futuro, quase sempre
incomodados com a democracia quando ela entra em choque com seus sonhos.
Vivemos muito nessa atmosfera onírica. Acontece um desastre, discutimos se o óleo
é de esquerda ou de direita, em vez de conjugar esforços nas ações de
emergência.
Um caminho que talvez nos ajudasse seria examinar, de forma
mais profunda do que fiz aqui, os erros e acertos que levaram às crises da
Bolívia e do Chile. Mas como fazer isso, se os lados já têm uma explicação
antecipada para os fatos? Já tentei me aproximar disso no passado, imaginando
os bolcheviques derrotados em Paris culpando seus adversários ou os alemães
reclamando que o Muro de Berlim não caiu porque os comunistas não deixaram.
Apesar de todas as porradas que vêm dos extremos, o esforço
para entender ainda anima muita gente. Dizem que a fé move montanhas, mas para
quem tem expectativas mais modestas não há saída exceto analisar com alguma
frieza, reconhecendo que, ao menos na nossa América, a realidade costuma
atropelar os sonhos.
Bolívia e Chile nos passam uma complexa lição de casa. É
preciso decifrá-la antes que nos devore.
Artigo publicado no Estadão em 15/11/2019
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