quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O NOME DAS COISAS

Juca Kfouri, Folha de S.Paulo
As coisas têm nome. Comida é comida, e fome é fome. Gente também tem nome, e de quem não se sabe qual é enterra-se como indigente. Até indigente tem nome. Aliás, dois: o não sabido e indigente.
Há quem diga ser impróprio tratar como se tivesse pendores nazistas o governo federal. Porque é próximo de Israel. Cabe a pergunta: próximo de Israel ou do extremista de direita Binyamin “Bibi” Netanyahu?
E outra: não há homossexuais nazistas? Ora, sabe-se como também os homossexuais foram perseguidos pelos nazistas. O governo que nos infelicita conseguiu até achar um negro negacionista, felizmente impedido pela Justiça de exercer o cargo para o qual foi nomeado.
Ninguém acredita que o ex-secretário da Cultura tenha repetido Joseph Goebbels por acaso. Não com aquele cenário, aquele corte de cabelo, aquela música e com a piada feita por ele antes da gravação, ao dizer que seria chamado de nazista, como informou à revista Veja um de seus interlocutores. Ou se acredita no capeta. Capeta que tem vários nomes: demônio, diabo, belzebu, satanás, satã, tinhoso, Lúcifer.
Tudo isso para dizer que o governo Bolsonaro flerta mesmo com o nazismo, ainda não é a ditadura que obviamente pretende ser, mas é de extrema direita, como bem disse a ponderada cientista política Maria Hermínia Tavares em sua coluna nesta Folha.
Tão extremista como os jornalistas que naturalizam a evidente ameaça à liberdade de imprensa de um procurador do Ministério Público Federal ao tentar atemorizar o editor do Intercept Brasil, Glenn Greenwald.
Um deles, travestido de liberal, como o ministro da Economia que atribui aos pobres o desastre ambiental, ficou famoso pela lista de mais de 50 artistas, intelectuais e jornalistas a serem boicotados por, a seu ver, serem petralhas. Lista à qual deve-se recorrer constantemente quando se quiser fazer uma festa animada com gente como Chico Buarque, Jô Soares, Luis Fernando Verissimo e Delfim Neto. Uma lista de Schindler ao contrário! Tão ridícula como o seu autor ou a de Joseph McCarthy.
É claro que quem elegeu os que habitam os gabinetes federais não são todos, necessariamente, chegados à suástica. Mas a cada dia, a cada ato, a cada declaração dos poderosos, nos aproximamos da situação tão bem descrita por velho ditado alemão: “Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem 11 nazistas à mesa”.
Nesta altura do campeonato a rara leitora e o raro leitor podem estar perguntando, com razão: “Se tudo e todos têm nome, por que há tantas citações de gente não nomeada?”.
A razão é simples: porque, tirante os nomes do bem, os do mal aqui citados são apenas os mais notórios. Os indigentes estão excluídos para não embrulhar o estômago de ninguém logo pela manhã.
Dito isso, restam poucas linhas para dedicar à besteira feita por Regina Duarte ao jogar fora sua biografia, como tantos indigentes.
Ela, ao menos, não é nazista. Alguém dirá que é pouco, mas estará enganado. Nos dias sombrios que correm é muito, é “contenção de riscos”, como disse a produtora cultural Paula Lavigne. Certamente Regina não sente desprezo por Fernanda Montenegro, nem a chamará de “mentirosa” ou “sórdida”, como o aprendiz de Goebbels que despontou para o merecido ostracismo.
Enfim, bênção Vitor Martins, que ensinou: "desesperar, jamais!"
Juca Kfouri
Jornalista, colunista da Folha e autor de 'Confesso que Perdi'; é formado em ciências sociais pela USP

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