Não é fácil escrever artigos em tempos de pandemia. Os fatos
são dinâmicos e nos ultrapassam. Eles são graves e tornam irrelevantes os
nossos critérios de importância.
Romances como A Peste, de Camus, apesar de escrito em 1947,
conseguem tratar de temas universais como solidariedade e sentimentos
mesquinhos envoltos na condição humana. Era interessante e até risível a velha
tese da teoria do caos: tudo no universo está interligado e o bater de asas de
uma borboleta altera o mundo. Se se substituir a borboleta por um morcego que
acabou comido por um pingolim, por sua vez comido por um homem, foi um bater de
asas que não só alterou o mundo, mas o fez de forma profunda e definitiva.
Quem diria que somos tão frágeis e toda a arrogância da
civilização humana não é mais que ilusão passageira. Não há tanto espaço para
lamentações. É preciso definir o que importa. Claro que o fato de o presidente
da República ser um ignorante tem um peso. Isso será resolvido a seu tempo. No
momento é preciso esquecê-lo em nome do essencial: que fazer?
As fronteiras estão se fechando na Europa e na América
Latina. Vamos fechar as nossas? Todos os casos vieram da Europa e dos EUA.
Algumas fronteiras que conheço são bastante porosas. Mesmo fechando-as, vai
passar muita gente.
A primeira é a fronteira com a Venezuela, em Pacaraima. O
sistema de saúde bolivariano entrou em colapso há muito tempo. Com isso
tensiona a Colômbia e o Brasil. Roraima está no limite. Quando vejo centenas de
pessoas atravessando a fronteira colombiana usando máscaras, imagino que muitos
virão também para o Brasil.
A Venezuela ainda não foi atingida seriamente pelo
coronavírus. Mas o simples aumento do fluxo, neste momento, merece atenção
especial. Antes da Operação Acolhida e da organização de abrigos, as condições
sanitárias nas ruas de Pacaraima eram preocupantes. Mesmo com abrigos, ainda
havia muita gente na rua.
Outra fronteira porosa é com a Guiana Francesa. É fácil
atravessar o Rio Oiapoque. Os franceses já fecharam o comércio. Que tipo de
controle o lado brasileiro pode instalar? São regiões distantes e o vírus ainda
não apareceu com força por lá. Há tempo de preparação.
O coronavírus precipitou um movimento que já era irreversível:
a passagem para o virtual. O ministro Mandetta afirmou que iria usar a
telemedicina. Isso é essencial até na vida cotidiana dos brasileiros. Em tempo
de pandemia, entretanto, abrem-se muito mais possibilidades do que simples
contato virtual entre médico e paciente.
No Brasil há 235 milhões de smartphones em uso. Sua
existência abre inúmeras oportunidades criativas. Na China e na Coreia do Sul
os aplicativos monitoram a temperatura dos usuários. Em Israel os pacientes em
casa também estão sendo monitorados.
O complexo processo de vacinação anual contra a gripe
poderia ser feito com mais segurança com o uso de aplicativos. Seria mais fácil
saber os pontos de vacinação, farmácias incluídas, e até sua disponibilidade
momentânea, isto é, o número de pessoas na fila. Apesar dos transtornos das
fake news, do distanciamento físico das pessoas, o mundo virtual oferece muitas
possibilidades de ajuda.
Naturalmente, o governo – a parte do governo que considera o
coronavírus um problema – busca saídas. Mas o potencial criativo da sociedade
nesse campo é muito maior. Como canalizá-lo e extrair suas possibilidades é
tarefa a ser pensada. No momento, o potencial está concentrado em convencer as
pessoas de que estamos diante de uma situação muito séria. Isso está sendo feito
também pela imprensa séria e pelos cientistas que aparecem nela.
Outra questão, que deveria interessar à esquerda, é a
desigualdade de riscos. Nem todos podem isolar-se. Nem todos podem lavar as
mãos. Já mencionei o problema do saneamento em artigo aqui, no Estadão, que
procurava pensar além do coronavírus. Não há tempo para resolver o problema do
saneamento em médio prazo, quanto mais no auge de uma crise. Mas parte do
dinheiro que se vai gastar deveria ser usada para garantir água limpa às
comunidades que não a têm. E álcool gel gratuito.
Da mesma forma, enquanto o transporte de massas estiver
funcionando será necessário um debate sobre a redução dos riscos entre os
usuários. Novos horários, aumento de frequência da limpeza, limitação do número
de passageiros, distribuição de álcool gel, há um longo caminho para reduzir os
riscos dos que precisam trabalhar.
Aliás, a discussão sobre o emprego do dinheiro de ajuda do
governo deveria ser mais ampla. Em quase todos os países há um destaque para
ajuda às pequenas empresas. Nos EUA prevê-se um cheque de mil dólares para cada
pessoa.
Em vez de estarem discutindo se o dinheiro do Orçamento vai
para o governo ou para o Congresso, o único tema possível hoje é admitir que
ele deve ser todo dirigido ao combate ao coronavírus e como será distribuída a
parte destinada a atenuar os efeitos negativos na economia.
O mundo político brasileiro está diante de um grande
desafio. Não importa a plataforma em que se vai mover, o fundamental é que
tente dar respostas. Incluída a única pergunta sensata que Bolsonaro conseguiu
formular em toda esta crise: como amparar os trabalhadores informais.
Artigo publicado no Estadão em 20/03/2020
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