Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio
em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a
movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a
faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos
viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964
a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas,
de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das
entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem
consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social,
alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da
transformação.
Com efeito, se em boa parte novos processos
benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do
domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da
consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas
possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a
intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando
exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos
disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais
os riscos ambientais, como a atual pandemia,
que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a
herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.
A onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos
anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano,
deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que
corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o
legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos
deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto
da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de
mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu,
com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em
busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho
barata em serviços subalternos.
A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos,
como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais,
instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida
social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam
com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em
grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro
assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a
existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e
de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.
A atual pandemia que nos assola, por sua
vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos
ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos
impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa
história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar
uma forte expressão de E. Balibar.
A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já
empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização
dos temas ambientais e das desigualdades sociais,
e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se
contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é
necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas
melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e
com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.
Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos
do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve
ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar
atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito
particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em
suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que
ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de
universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política
democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos
espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em
alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.
As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário