Ministro da Defesa em 2016, quando o governo federal
elaborou a mais recente Política Nacional de Defesa (PND), Raul Jungmann diz
que o presidente Jair Bolsonaro promove um contrassenso com sua política
armamentista: “Propor o armamento da população é desqualificar o papel das
Forças Armadas”.
Ao avaliar a PND que o governo deve entregar nesta
quarta-feira, 22, ao Congresso, Jungmann afirma que o poder político tem se
esquivado desse debate e lembra que o texto elaborado no governo Michel Temer
nunca foi sancionado – o projeto passou dois anos praticamente parado na Câmara
e no Senado, foi aprovadas em dezembro de 2018, mas nunca sancionado. “É a
demonstração conclusiva e cabal de que o Poder Político se aliena das suas
responsabilidades de definir os rumos, ou seja, as políticas para a Defesa e as
Forças Armadas.”
Além da PND, o governo deve entregar nesta quarta-feira a
Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa, que traçam
diretrizes para a Defesa e o papel das Forças Armadas. Por lei, tem que ser
revisados a cada quatro anos.
No documento, o governo Bolsonaro aponta que a América do
Sul não é mais considerada “área livre” de conflitos, como revelou o Estadão,
no dia 16.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Qual a importância da Política Nacional de Defesa e a
Estratégia Nacional de Defesa?
Dentre as decisões mais cruciais e de mais alto nível que
cabem ao poder político de uma nação está definir a sua estratégia de defesa e
o papel das Forças Armadas nessa política, que está sendo enviada agora. O
grande problema é que o Congresso se aliena dessa responsabilidade, porque não
tem dado a atenção, não tem debatido, não tem dialogado com os militares e
trazido a sociedade para essa discussão que é vital para a soberania e para a
sobrevivência de uma nação e do próprio Brasil. A expectativa é de que essa
alienação seja revertida. Estive com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia,
conversando para que tenhamos um envolvimento do Congresso diferenciado.
O que o senhor destaca da atual PND?
Em política de Estado não se pode dar cavalo de pau.
Aproximadamente 90% do que ali está é continuidade e manutenção do plano em
curso, áreas estratégicas, os eixos, os objetivos nacionais de Defesa, as ações
estratégicas que são mais de 100, elas têm mudanças, mas têm muito mais
continuidade. O que chamou atenção foi exatamente a percepção de maior tensão
na América do Sul. É verdade que o Brasil não se envolve há mais de um século e
meio em conflitos interestatais. Temos que ter Forças Armadas preparadas,
balanceadas e modernizadas.
O governo tem criado cargos exclusivos para militares no
Executivo, tem elevado valores de adicionais pagos a militares. Isso é um
problema, necessidade ou só política de governo?
Militares sofreram durante muito tempo defasagem salarial. A
necessidade de recomposição salarial dos militares era reconhecida, era algo de
direito. Precisamos olhar o momento fiscal e econômico do País, tem a questão
da pandemia. Então talvez não seja o momento mais adequado, mas é preciso observar
os direitos e as condições.
Como o senhor vê a política armamentista do governo?
Infelizmente, recentemente, a divisão de produtos
controlados emitiu três portarias fundamentais para o rastreamento de armas,
para o controle de armas, para elucidação de crimes e de combate ao contrabando
de armas a facções criminosas que foram derrubadas. Isso é um caso clássico,
como também se propor o armamento para a população. Ora, qualquer Estado para
se constituir tem que ter o monopólio da violência. Da violência legal. E esse
monopólio vem exatamente das Forças Armadas. Então propor o armamento da
população é desqualificar o papel das nossas Forças Armadas, em relação ao
pilar da capacidade posta de defesa da soberania.
O senhor é contra dar armas à população?
O governo tem que prestar mais atenção às questões de
segurança pública, o que não se confunde de modo algum, com flexibilização na
posse e porte de armas. Isso não é política pública. Muito pelo contrário. Essa
é uma política contra a vida. Uma política séria é dar armas a quem precisa e
tem habilidades, com o controle, que tem que ser feito e ao mesmo tempo
desenvolver um sistema único de segurança pública, que envolva, por exemplo, o
Ministério Público, a Justiça, policiais civis, militares, os guardas, as
Forças Armadas, estados, municípios, em um esforço coordenado. Porque o crime
se nacionalizou e transnacionalizou. Como podem os estados aguentar isso
sozinhos? Não tem como.
A falta de recursos e o contingenciamento de verbas são
um problema para a Defesa. O governo Bolsonaro muda esse cenário?
O presidente Bolsonaro, do qual fui contemporâneo na Câmara,
era o que podemos chamar de parlamentar de nicho. Ele tinha dois nichos: defesa
da corporação policial e defesa dos militares. Quando ele chega ao governo, ele
não pode preencher o governo a partir do nicho policial, porque eles têm uma
formação voltada para o espaço territorial do Estado. Já os militares têm uma
formação e preparo nacional. Eles têm conhecimento prático e acadêmico do País.
A convivência e o fato de o presidente ser militar e ter certos valores e
conceitos trazem para dentro do governo uma quantidade expressiva de militares.
Se isso pode ser um problema, a pergunta é, por que o poder político não
regulamentou isso? Outra questão em que há uma crítica, e essa eu endosso, é
ter militares na ativa em grande quantidade. Chegamos a ter quatro generais
oficiais dentro do governo. Aí a possibilidade do problema com a forte presença
militar é criar uma correia de transmissão nos quartéis. Mas essa correia de
transmissão não aconteceu. As Forças Armadas continuam impecavelmente adstritas
aos seus papéis constitucionais. Mas não se pode negar que os quartéis, os
militares, estão na política. Acredito que isso não é bom para as Forças
Armadas.
O problema de facções criminosas, de milícias, é de
Defesa?
Fiquei 22 meses à frente do Ministério da Defesa e tive 11
GLOs (Garantia da Lei e da Orde), 80% delas relativas a crises de segurança. A
de maior gravidade foi a que aconteceu no Espírito Santo. Ali foram amotinados
que se fecharam dentro dos quartéis armados e estivemos muito próximos de uma
situação que eu diria crítica. As Forças Armadas têm essas funções
subsidiárias, como as de garantia da lei e da ordem, seja ela em questões de
segurança, ou desastres ambientais. Temos um problema crônico que precisa ser
enfrentado. Segurança Pública desde a época das províncias até os tempos atuais
é responsabilidade dos Estados. Se você não tem responsabilidade constitucional
do governo central, também não tem uma política nacional de Segurança Pública.
Outro problema é o sistema prisional do Brasil. Uma superpopulação
insustentável de se manter, que é controlado por 77 facções criminosas. O
sistema não dá condições, é disfuncional. Precisa de reforma para o sistema
prisional. Precisa de reforma da política de drogas, mas a sociedade não se
interessa por isso. O interesse dela, e com razão por estar vulnerável,
apavorada, é com a repressão. Como se mais carro, mais polícia, mais bala,
resolvessem o problema. Repressão, aumento de pena, não tem como. Não é por aí.
O fato de ter militares no governo significa que as
Forças Armadas estão com Bolsonaro?
É só o uso político e simbólico das Forças Armadas. Elas não estão com Bolsonaro, assim como não estavam com Lula, nem com Dilma, nem com Fernando Henrique, nem com o Itamar. As Forças Armadas estão com a Constituição. E o problema é que, como tem um grande número de militares (no governo), a fala deles é tomada como (se fosse) da instituição. Mas não é. O presidente nunca contou e tenho certeza de que nunca contará com as Forças Armadas para a hipótese dele, ou outro, buscar um atalho autoritário.
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