quarta-feira, 22 de julho de 2020

CRÔNICA DE UMA TRAIÇÃO

Merval Pereira, O GLOBO

A traição política do ex-presidente Lula a Ciro Gomes na campanha presidencial de 2018, que o pedetista sempre denunciou, foi confirmada pelo ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, que revelou com naturalidade em entrevista ao programa “Conversa com Bial”, na noite de segunda-feira, que chegou a haver uma chapa organizada com Fernando Haddad do PT como candidato a vice de Ciro Gomes, que era o candidato do PDT à presidência da República em 2018.

Revelada a negociação, na ocasião pelo jornalista Mario Sérgio Conti, foi negada por Haddad, e passou a ser entendida pelo meio político apenas como mais um boato eleitoral. Mas foi muito mais do que isso, segundo o depoimento a Bial de Delfim, para quem “o PT traiu Ciro Gomes e, assim, permitiu a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República”.

Com Lula na cadeia pretendendo ser o candidato do PT, mesmo sabendo que não poderia participar da eleição por ser considerado ficha suja pela legislação eleitoral, pois fora condenado em segunda instância, as negociações de bastidores corriam soltas. Para se ter uma ideia de como as negociações avançaram, Ciro Gomes jantou com Haddad, a convite deste, na casa de Gabriel Chalita em Higienópolis, que havia sido secretário de educação na gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo.

Nesse encontro, Ciro conta que partiu de Haddad a proposta para que fizessem uma chapa comum. Esclarecendo que não estava falando em nome do Lula, mas de modo próprio, Haddad perguntou a Ciro o que achava de uma chapa em que o PT indicasse o vice. Ciro Gomes conta que disse achar que o Brasil precisava construir uma alternativa, “porque a força que vai ser derrotada nessa eleição é o petismo, por conta de tudo o que aconteceu. Produzimos crise econômica sem precedentes, a centralidade da corrupção não dá para esconder, mas não sou eu que vou vetar, e vamos ver”.

Dias depois, partiu do economista Bresser Pereira, professor emérito do centro desenvolvimentista da FGV, que ajudou a formatar seu programa, a proposta para que Ciro se encontrasse com o Delfim Netto, “uma pessoa que o Lula ouvia muito”. Aceitei, diz Ciro, pois me dou muito bem com o Delfim Netto, com quem já tivera vários encontros durante o governo Lula, e encontrei muitos pontos em comum.

No escritório do Delfim, para minha surpresa, diz Ciro, em vez de entrarmos no programa de governo, a conversa foi direto para a política. Delfim perguntou se eu estava disponível, lembraram que o Fernando Henrique havia escrito um livro (“Crise e reinvenção da política no Brasil”) defendendo uma frente progressista ampla de centro-esquerda, que nós estávamos falando a mesma coisa.

Ciro Gomes lembra que disse que discordava de Fernando Henrique em muitos pontos, “mas sempre nos tratamos com muita cordialidade”. No relato de Ciro, o ex-ministro Delfim Netto lançou na mesa “o nome do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa para ser o vice, e eu disse que o Haddad estava pronto para ser o meu vice”. Haddad confirmou, disse que queria ajudar, e que poderia formar a chapa comigo.

O ex-prefeito de São Paulo negou enfaticamente no dia seguinte, e manteve-se como vice de uma hipotética chapa com Lula para presidente. Durante a campanha presidencial, num debate do primeiro turno, Haddad chegou a dizer que fora Ciro quem o convidara para ser seu vice, no que chamou de chapa “dream team”, como teria classificado na época.

Para confirmar sua versão, Ciro conta que houve um momento em que a ex-presidente Dilma Rousseff levou a Mangabeira Unger e a Cid, seu irmão, uma proposta de Lula “para que eu ficasse no lugar do Haddad como vice dele. Não tiveram coragem de oferecer diretamente a mim, porque sabiam que não aceitaria. Seria um presidente anão, que não teria autoridade para fazer nada”.

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