quarta-feira, 22 de julho de 2020

O ESTADO EM RUÍNAS

Marcos Strecker, ISTOÉ

Após um ano e meio de governo Bolsonaro, é fácil enxergar áreas em que a administração encolheu, e praticamente impossível encontrar setores em que a gestão cresceu e se profissionalizou. O desmanche ocorre em serviços vitais. Nesse momento, o maior símbolo desse desastre é a Saúde, e envolve a atuação das Forças Armadas. O Ministério da Saúde está há mais de dois meses sem ministro e sua chefia é exercida interinamente pelo general Eduardo Pazuello. O ministro Gilmar Mendes, do STF, verbalizou em live da ISTOÉ, no sábado, 11, aquilo que fica cada vez mais claro dentro e fora dos quartéis. Criticou a atuação dos militares, que já ocupam quase 30 postos na cúpula da pasta e seguem as diretrizes de Bolsonaro, incluindo a recomendação do uso de cloroquina e o combate à quarentena. “É preciso dizer de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso.” A menção serviu de alerta para o presidente, já que esse é um crime que pode levá-lo a ser julgado no exterior, no Tribunal Penal Internacional, em Haia (Holanda). A corte já divulgou em junho que vai analisar uma denúncia apresentada nesse sentido pelo PDT.

As declarações do ministro do STF tocaram um nervo exposto das Forças Armadas. No fim de semana, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgou nota conjunta com os três comandantes militares afirmando que “trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”. A polêmica irritou oficiais de alta patente. “Se ele tiver grandeza moral, tem que se retratar”, reagiu o vice-presidente, general Hamilton Mourão, na terça-feira. No mesmo dia, Azevedo encaminhou uma representação contra o ministro do STF à Procuradoria-Geral da República, utilizando como base artigos da Lei de Segurança Nacional e do Código Penal Militar. Acuado pelos inquéritos no STF que investigam os atos antidemocráticos e as Fake News, o presidente preferiu contemporizar. Conversou com Mendes por telefone e pediu a Pazuello que ligasse ao ministro, estabelecendo um diálogo, o que foi feito um dia depois. Também afagou o general, dizendo que o interino é um “predestinado” e que o Exército “se orgulha desse nobre soldado”. Também tinha uma razão pessoal. Caberá a Mendes decidir na volta do recesso judiciário se o processo das rachadinhas, que envolve Flávio Bolsonaro, voltará à primeira instância no Rio de Janeiro. Pazuello resiste a ir para a reserva, como querem oficiais que não desejam mais ver a imagem da corporação envolvida com as ações do governo. É o que fez o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) na quinta-feira, 16. A pressão não vem só da caserna. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitou a apuração da participação de militares da ativa em funções civis. O pedido compreende a transferência de militares como Pazuello para a reserva. Foi assinado pelo subprocurador Lucas Rocha Furtado, que apoiou a declaração do ministro do STF.

A crise não se encerrou. Deve precipitar a saída de Pazuello do ministério e servir de guia para o distanciamento das Forças Armadas do governo. A cúpula do Exército começa a se dar conta de que a percepção que a corporação tem sobre o seu papel na pandemia e na Saúde não se alinha com a visão da sociedade. O preenchimento de cargos com profissionais sem experiência e o afastamento de especialistas podem prejudicar de forma permanente o Sistema Único de Saúde (SUS), que é complexo e foi construído ao longo de quase 30 anos. Elogiada até por economistas liberais, a estrutura do SUS foi responsável por evitar que a pandemia tivesse causado um estrago maior. Já o atual desmanche deverá prejudicar programas que dependem de continuidade de ação, como o combate ao câncer e à Aids. Há inúmeros sinais de debilidade na pasta. Na luta contra a pandemia, a baixa execução orçamentária dos volumosos recursos colocados à disposição aconteceu exatamente por falta de experiência dos responsáveis deslocados para a Saúde. Na mesma live da ISTOÉ, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou que os militares da pasta são especialistas em “balística” em vez de “logística”. “Só vejo acúmulo de óbitos nessa política que está sendo feita”, disse.

IRRITAÇÃO O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, entrou com representação na PGR contra Mendes e divulgou nota: “Acusação grave, infundada, irresponsável e sobretudo leviana”

Os resultados não são insatisfatórios por uma deficiência dos oficiais. Os militares foram chamados para preencher uma lacuna do presidente, que nunca reuniu grandes quadros, e não deveriam assumir funções que competem a especialistas. Na Segurança Pública, já participaram de operações de Garantia da Lei e da Ordem no Rio. Em 2018, chegaram a assumir o comando das polícias militar e civil do Rio. Também atuaram em grandes eventos, como a Olimpíada, em 2016. Mas as tentativas de frear a violência não reverteram os problemas estruturais e mostraram os limites da intervenção, com consequências trágicas, como ocorreu quando soldados dispararam mais de 80 vezes contra um carro e mataram um músico no Rio.

Tardiamente, os militares começam a se dar conta de que estão enfrentando o “seu Vietnã”. Ao assumir responsabilidades além de suas prerrogativas constitucionais, e de sua competência, entraram em uma guerra que não podem vencer. Quanto maior o envolvimento, maior o prejuízo. Estão condenados a se aprofundarem em um conflito que não oferece saída fácil nem perspectiva de vitória. O raciocínio é válido também na atuação ambiental. Com a crise das queimadas na Amazônia que alcançou repercussão internacional, tropas foram deslocadas em operações custosas. Mas isso ocorreu ao mesmo tempo em que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) apoiava grileiros e relaxava o trabalho dos verdadeiros profissionais no combate às queimadas ilegais: os técnicos do Ibama.

Ações contra desmatadores foram desmobilizadas. Servidores alegam que militares desconhecem as rotas usadas pelos criminosos e deslocam forças na floresta com grande aparato, alertando-os e impedindo o flagrante. O desvirtuamento alcança o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável pelo monitoramento do desmatamento e vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Seu trabalho é reconhecido internacionalmente, mas está em risco. O órgão detectou o aumento das queimadas em 2019 e por isso seu diretor, Ricardo Galvão, foi demitido. No último dia 10, o órgão divulgou novo recorde de desmatamento em junho. Três dias depois, a coordenadora-geral do serviço, Lúbia Vinhas, foi demitida. Era responsável pelo trabalho de sensoriamento remoto e geoprocessamento. O titular do Ministério, Marcos Pontes, que é tenente-coronel da reserva da FAB, negou que a péssima notícia para o governo tenha motivado a exoneração. Alegou que o Inpe passa por uma reestruturação. Fato, mas a mudança pode ser péssima. O atual diretor, Darcton Damião, é militar e ocupa o cargo interinamente há quase um ano. Funcionários apontam que a transformação reproduz a verticalização característica do universo militar, na contramão da prática científica, que pressupõe autonomia e liberdade acadêmica.

Essa ação perniciosa não afeta apenas o trabalho dos especialistas. Também prejudica os negócios, como atestam empresários assustados com a ameaça crescente de boicote aos produtos nacionais. “Caminhamos para o precipício ambiental”, disse Walter Schalka, presidente da Suzano, um dos líderes do grupo de executivos que pressionou o vice pedindo medidas contra o desmatamento. Mourão passou a lidar com o tema após a crise no exterior, e comanda o Conselho da Amazônia. Porém, em mais uma sinalização da visão enviesada do governo, formou o órgão com 19 militares e sem a presença do Ibama e da Funai. Disse que o País vai adotar metas semestrais, mas não se comprometeu com prazos. Afirmou que não vê a possibilidade, no curto prazo, de as Forças Armadas deixarem de atuar em ações ambientais na Amazônia. Para que isso aconteça órgãos como o Ibama e o ICMBio precisam antes ter seus quadros recompostos. Para piorar, nesse momento delicado, o governo quer regularizar 97 mil propriedades, que somam 6,3 milhões de hectares, baseado em sistemas de informação e vistoria a distância. Isso pode significar a regularização em massa de áreas invadidas e griladas.

Não é apenas nas áreas sensíveis que o governo tenta compensar a falta de gestão profissional com a ação militar. Para contornar a falta de funcionários no INSS, já tentou convocar reservistas. Em outros setores, o desmanche prescinde da presença dos militares. Na Educação, programas são afetados e a pesquisa científica míngua com o corte de bolsistas (mais informações nas páginas 28 a 31). A Cultura, além de ter sido rebaixada para a estrutura do Ministério do Turismo, tem entre seus dirigentes nomes que foram afastados ou questionados por estarem em desacordo com as prerrogativas da função. A deterioração do acervo da Cinemateca Brasileira dá visibilidade a esse descaso.

A política de terra arrasada também avança sobre a Polícia Federal. O STF investiga a tentativa do presidente de interferir politicamente na corporação. Na estrutura do Judiciário, a influência também já é sentida. A nomeação do procurador-geral da República, Augusto Aras, não respeitou a lista tríplice de candidatos mais votados por seus pares. Muito próximo do presidente, Aras está investindo contra as forças-tarefa da Lava Jato, o que interessa a Bolsonaro e aos seus aliados do Centrão. Conseguiu uma decisão favorável do presidente do STJ, Dias Toffoli, nesse sentido. As investigações anticorrupção já haviam sido paralisadas após uma ação do filho 01 do presidente questionar a competência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O órgão voltou às atividades, mas esse é o momento mais delicado que a Lava Jato enfrenta até hoje.

As críticas e ameaças de Bolsonaro contra os outros Poderes só cessaram quando foi preso Fabrício Queiroz, seu amigo e um dos operadores do esquema das rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia fluminense. Mas, para alívio do presidente, o processo foi retirado da primeira instância com o voto decisivo de um desembargador próximo do clã Bolsonaro, Paulo Rangel. Não é só. Depois de preso, Queiroz conseguiu a progressão para a prisão domiciliar, por decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha. Numa decisão incomum que incomodou outros membros do STJ, o magistrado também beneficiou com a progressão a mulher do miliciano, que estava foragida. Em abril, Bolsonaro havia elogiado Noronha. São sinais de que Bolsonaro aos poucos coopta e debilita as instituições. Agora, paradoxalmente, pode conseguir atingir esse objetivo com os militares, com quem tenta se identificar com tanto afinco. O presidente achou que, ao chamar os fardados para sua gestão, a corporação ia lhe dar mais legitimidade. Mas, ao invés de cumprir esse papel, as Forças Armadas estão se associando à gestão ruinosa. O Exército arrisca sofrer um prejuízo de imagem ainda maior do que aquele sofrido com o desgaste do regime militar. Ele foi revertido nos últimos 40 anos, mas o esforço pode ter sido em vão, graças ao ex-capitão do Palácio do Planalto.

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