Antes de se tornar romancista, o escritor Daniel Pennac foi
professor de francês no ensino fundamental e médio de escolas públicas. Quando
criança e adolescente, porém, foi o que os franceses chamam de “cancre”: um
aluno lerdo, com dificuldades de aprendizagem e desempenho sofrível. No
best-seller Diário de escola (Rocco), vencedor do Prêmio Renaudot — uma de suas
30 obras, para todas as idades —, ele conta como o mau aluno virou professor,
pedagogo e escritor. A raiz de seu problema não era a falta de escola nem de
professores na França, como acontece em muitos lugares aqui no Brasil. Era o
medo. “A reação dos adultos é sempre a mesma: eles também têm medo. Têm medo de
que seus filhos nunca tenham sucesso. Os professores também têm medo. Têm medo
de serem maus professores. Tudo isso tem a ver com a solidão. Solidão da
criança, do professor, dos pais. O que é preciso fazer é acabar com essa
solidão. Pedagogicamente, como se acaba com a solidão? Criando projetos em
comum, onde todos estão envolvidos.”
Pennac conta que foi salvo pelo professor de Francês, para
quem mentia muito, porque nunca fazia os deveres. “Ele me disse: ‘muito bem,
vejo que você tem muita imaginação. Então, em vez de utilizar sua imaginação
para fabricar mentiras, escreva um romance. Você vai me entregar 10 páginas por
semana. Não vou mais te dar redações para fazer ou lições para aprender. Você
vai apenas fazer esse romance para mim: 10 páginas por semana.’ Isso me salvou.
Esse professor foi capaz de transformar um aluno passivo em um aluno ativo, um
aluno que escreve um romance”.
Para o escritor, existem três tipos de pessoas: os guardiões
do templo, que veem o saber como propriedade privada e tentam monopolizá-lo,
porque outros não são dignos dele; os que não ligam para nada, ou seja,
preferem se manter alienados e indiferentes; e os “passeurs”, pessoas que levam
em consideração a sua cultura, sabendo que ela não lhe pertence e pode fazer a
felicidade dos outros. “Se eu te levo para assistir a um filme do qual eu
gostei e você também gosta, lhe farei feliz. Ser ‘passeur’ é isso. Tudo que
vocês sabem não pertence a vocês. Não é sua propriedade. O conhecimento não faz
mais do que passar através de você”. Seu conselho aos alunos é simples: “Não
tenham medo, sejam curiosos. A curiosidade é realmente um remédio contra o
medo. Sejam curiosos acima de tudo. ‘Sim, mas a realidade me dá medo…’ Se a
realidade lhe amedronta, fotografe-a. Abra-se, seja curioso, não se feche”.
Lógica perversa
Lembrei-me de Daniel Pennac, que escreveu seu romance O ditador e a cama de
rede (Asa Editora) quando morou no Ceará, por causa da queda de braço entre o
governo Bolsonaro e a Câmara sobre a votação da PEC (Proposta de Emenda à
Constituição) do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), prevista para hoje. O
pomo da discórdia é a destinação de recursos para o pagamento de professores,
que hoje formam uma das categorias profissionais mais desprestigiadas,
desrespeitadas e mal-remuneradas do país, embora tenha a missão de resgatar as
crianças pobres do Brasil da ignorância e da exclusão já na largada.
O relatório da deputada federal Professora Dorinha (DEM-TO)
torna o Fundeb permanente, amplia a complementação da União dos atuais 10% para
20% e altera o formato de distribuição dos novos recursos. No fim de semana,
porém, o governo Bolsonaro — que se omitiu durante toda a tramitação da PEC —
encaminhou a alguns líderes uma proposta alternativa: usar 5% do fundo para
programas de transferência de renda, já que o Renda Brasil deverá substituir o
Bolsa Família. De onde sairia o dinheiro? Do pagamento dos professores, é
claro. O texto em análise na Câmara aumenta de 60% para 70% o piso de recursos
do Fundeb para o pagamento de salários da categoria. A contraproposta do
governo, porém, estabelecia um teto de 70% para a destinação de recursos do
fundo para essa finalidade. Isso inviabilizaria o pagamento dos profissionais
em várias redes estaduais e municipais, que já destinam percentual maior do que
70% para esse fim.
Na verdade, o Ministério da Educação se omitiu o tempo todo da discussão, o ex-ministro Abraham Weintraub, defenestrado depois de atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), nunca se preocupou com isso. Bolsonaro muito menos. No fim de semana, a equipe econômica entrou em campo para melar o projeto, porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, preferia destinar recursos de uma política universalista e estruturante — educação básica de qualidade para todos — para “focalizar” o gasto social no novo programa de transferência de renda do governo, que mira a reeleição do presidente da República. Entretanto, faltou combinar com os beques. Diante da reação de prefeitos e governadores, os deputados do Centrão, com quem o governo contava para barrar a proposta, refugaram.
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