Ao contrário do que muitos imaginam, o paradigma do projeto
comunista da China não é o velho livro vermelho com as ideias de Mao Zedong, é
o pensamento modernizador de Xi Jinping e o modelo de Cingapura, estudado na
nova escola de quadros do Partido Comunista chinês. Fundada há 86 anos numa
caverna da província de Jiangxi, o complexo da academia hoje ocupa centenas de
hectares junto ao Palácio de Verão de Pequim e abriga 1,5 mil alunos. Em 2018,
a escola se fundiu com a Academia Chinesa de Governo para incorporar um novo
objetivo: “investigar e disseminar o pensamento de Xi sobre o socialismo com
caraterísticas chinesas para uma nova era”.
A grande preocupação dos dirigentes chineses continua sendo
vencer a desigualdade social na China de hoje, uma contradição com as teses
históricas do PCCh. Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza nas
últimas décadas, mas as grandes fortunas acumuladas na economia de mercado
coexistem com salários baixíssimos e condições de vida precárias, em muitas
regiões do país. O medo dos comunistas é que o avanço tecnológico e as
vertiginosas mudanças possam afastar os jovens do regime. O massacre de
Tiananmen, de 1989, e a Revolução Cultural (1966-1976) são temas proibidos nos
currículos da escola de quadros, vértice de um sistema com 2,5 mil centros
distribuídos por todo o país. Onde Cingapura entra nessa história?
Com seus arranha-céus, jatinhos particulares e carros de
luxo, a cidade-estado, apesar de ter apenas 5,6 milhões de habitantes — contra
1,393 bilhão da China —, é o quarto país mais rico do mundo em poder de compra
de seus habitantes, superado por Catar, Luxemburgo e Macau. Tornou-se um dos
principais centros financeiros do Oriente, com número crescente de milionários
e o custo de vida mais alto do mundo. Há 50 anos, porém, era apenas uma ilha
pobre e sem recursos naturais, uma ex-colônia britânica que se separou da
Malásia em 1965, sob a liderança de Lee Kuan Yew, cofundador do Partido da Ação
Popular (PAP, na sigla em inglês), que governa o país desde 1959. Lee foi
primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos, vencendo sete eleições, até deixar
o poder em 1985. Vem daí o paradigma político que interessa aos chineses: o
regime de partido dominante, hoje comandado por Lee Hsien Loong, seu filho mais
velho.
O sistema legal de Cingapura é baseada em leis herdadas do
colonialismo britânico na Índia, sem seus valores liberais. Não existe tribunal
de júri, por exemplo. Há castigos físicos e até a pena de morte para homicídios
e tráfico de drogas, o que leva à maior taxa de execuções do mundo por
habitante. Entretanto, é considerado um dos países menos corruptos do mundo,
embora seja um notório paraíso fiscal para lavagem de dinheiro. Não existe
ampla liberdade de expressão nem de reunião. Qualquer manifestação com mais de
cinco pessoas precisa de autorização policial. Entretanto, o modelo econômico
que viabilizou a modernização de Cingapura é estudado em todo mundo,
principalmente nos países emergentes.
Corrida mundial
Advogado formado na Universidade de Cambridge, Lee foi uma
espécie de déspota esclarecido moderno. Comandou o país durante sua fusão e a
subsequente separação da Malásia, com a ambição de construir uma nação
meritocrática e multirracial. Elaborou um extenso programa de reformas para
tirar Cingapura do “buraco negro da miséria e da degradação” e transformá-la em
um país industrializado e moderno, sob um modelo capitalista com controle
estatal rígido. Beneficiou-se do fabuloso porto que abrigava a esquadra
britânica da Ásia e sua localização estratégica, na rota comercial da China, da
Índia e do Sudeste Asiático, além da proteção dos Estados Unidos.
O governo promoveu grandes programas de geração de emprego e
a construção de moradias sociais, ao lado de uma política que acompanhava o
controle da vida privada e a supressão de liberdades individuais, incluindo a
prisão de opositores sem levá-los a julgamento e a aplicação de castigos
corporais. Impressiona pelos altos níveis de educação, saúde e competitividade
econômica, saltando de uma economia baseada na manufatura tradicional para um
centro financeiro e tecnológico, com grandes investimentos estrangeiros, com
uma população que fala quatro línguas: malaio, inglês, mandarim e tamil. Suas
forças armadas são modernas, seguem o modelo israelense, e consomem 4,5% do
orçamento, com bases aéreas na Austrália, Estados Unidos e França.
Cingapura virou uma referência para a modernização
autoritária em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à
Ásia. Muitos governantes sonham com a longevidade do poder de Lee Kuan Yew,
como Vladimir Putin, na Rússia, e Tayyip Erdogan, na Turquia, sem falar nos
ditadores de antigas repúblicas soviéticas e da África, além dos xeiques
árabes. Tornou-se um ponto de referência na corrida mundial para reinventar o
Estado, na qual o Ocidente enfrenta os problemas da economia de mercado aliados
às disputas próprias dos regimes democráticos. Por isso, é melhor é ficar de
olho no que acontece na política brasileira. Historicamente, sempre estivemos
numa encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente.
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