quarta-feira, 12 de agosto de 2020

NÓS E OS OUTROS

Ligia Bahia, O GLOBO
Mudou o modo de pensar sobre o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70 milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes.
Nós somos pessoas orientadas pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro. Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que alavanque os negócios setoriais.
A concordância sobre a omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.
O alegado alívio de demanda para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e 19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada).
Essas informações não significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras, consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de credenciamento ao debate.
Reagimos com as mesmas palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo do que na população em geral.
Todos nos indignamos, mas, quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo, reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?
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