A nota técnica da Controladoria Geral da União (CGU) que
restringe atuação dos servidores públicos nas redes sociais, mesmo em caráter
pessoal, é mais um avanço do governo Bolsonaro sobre as liberdades individuais.
Fere a liberdade de expressão e transgride o Pacto Internacional sobre Direito
Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1990.
A relativização do direito ao pensamento crítico e à
liberdade de expressão do agente público está resumida em uma frase: “deve-se
verificar se tais direitos não comprometem a reputação do órgão em que estão
vinculados, quer desrespeitando ou expondo a instituição, quer praticando atos
incompatíveis com os normativos éticos”.
Os deputados Alessandro Molon, do PSB, e Tabata Amaral, do
PDT, estiveram ontem na CGU com os ministros Wagner Rosário e Augusto Heleno
(GSI) para pedir a revogação da medida, que já está sendo questionada no
Supremo Tribunal Federal (STF).
Logo no início das conclusões, há a afirmativa que resume a
ópera: “a divulgação pelo servidor de opinião acerca de conflitos ou assuntos
internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença, em veículos
de comunicação virtuais, são condutas passíveis de apuração disciplinar”.
Isso quer dizer, perguntou Molon, que um pesquisador do
ministério da Saúde não pode criticar a orientação para uso de cloroquina no
combate à Covid-19? Essa mesma atitude estaria enquadrada no “descumprimento do
dever de lealdade” ressaltado pela nota técnica. Mas lealdade a quem, à Saúde
Pública ou ao ministro da vez?
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura
Schertel Mendes, doutora em direito privado pela Universidade Humboldt de
Berlim, com tese sobre proteção de dados na Alemanha, entende que a Nota
Técnica da CGU “apresenta problemas sérios de constitucionalidade, ao violar a
liberdade de expressão do servidor público”, pois determina que a Administração
Pública Federal deverá adotar medidas disciplinares contra servidores que se
manifestem em redes sociais de forma contrária ao órgão ao qual está
subordinado.
Voltando-se à presença e à manifestação de servidores
públicos em redes sociais e ambientes virtuais, mesmo que privados e sem
qualquer relação com a atividade pública por ele desempenhada, a nota técnica
representa “clara violação da liberdade de expressão do servidor público, dado
que a Constituição Federal lhe assegura o direito à livre manifestação, à
filiação partidária e ao exercício pleno de atividade política, sem qualquer
limitação nos moldes previstos pela orientação da CGU”.
A professora Laura Schertel identifica “caráter
intimidatório” na nota técnica, podendo até mesmo “configurar censura prévia”.
Além disso, ela vê possível “um nefasto efeito colateral dessa orientação
disciplinar, que é a inibição do agente público de expor suas críticas à
atuação do órgão e, até mesmo, denúncias sobre ilegalidades no trato da coisa
pública, o que viola os princípios da transparência e da publicidade da
Administração Pública”.
O advogado Ronaldo Lemos, especialista em tecnologia e
midias sociais, destaca que essas proibições contidas na nota técnica da CGU
ferem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil
é signatário, especialmente o artigo 19, que diz:
1 – Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2 – Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse
direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e
idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras,
verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer
outro meio de sua escolha.
3 – O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente
artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente,
poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser
expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das
demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a
moral públicas.
Uma nota técnica não tem o poder de revogar um tratado
internacional, e uma divergência quanto a uma medida governamental não parece
alcançada pelas ressalvas acima.
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