São ideias aterrorizantes e contra os fatos, que, se
prosperarem, podem levar milhares ou até milhões de pessoas à morte ou à
invalidez, nos próximos anos, por inúmeras enfermidades reconhecidamente
erradicadas pela vacinação. Trata-se de um retrocesso civilizacional com os
ares sombrios da Idade Média. Grupos de direita que se opõem à imunização em
massa aproveitam a crise da Covid-19 para promover a resistência às vacinas,
comportamento que ganhou força nos últimos anos e é considerado uma ameaça
global pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, tenta-se, a
todo custo, politizar a doença, lançar teorias conspiratórias e incentivar a
desobediência civil. A vacina contra o coronavírus nem existe e Bolsonaro já
lançou uma campanha de descrédito contra ela.
Na segunda-feira 7, a Secretaria de Comunicação da
Presidência (Secom) publicou no Twitter uma declaração do presidente dada na
semana anterior: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. No dia 8,
Bolsonaro voltou ao assunto e disse que “não se pode injetar qualquer coisa nas
pessoas e muito menos obrigar”. Foram afirmações levianas e sem respaldo
científico ou legal, que feriram princípios éticos, já que a vacinação não é
uma escolha e a imunização que será oferecida para a população não será
“qualquer coisa”. Na verdade, a lei 6259/1975, que estabeleceu o Programa
Nacional de Imunização, prevê a obrigatoriedade da vacinação. O Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, também estabelece a imunização
compulsória para brasileiros de até 18 anos e sanções para pais e responsáveis
que não cumprirem essa obrigação. E o próprio Bolsonaro sancionou uma lei, em
fevereiro, que permite a vacinação compulsória no enfrentamento da pandemia.
“Quando a autoridade pública diz que a vacinação não é
obrigatória, ela está prestando um desserviço enorme e mostrando
desconhecimento da função das vacinas”, diz o hematologista Dimas Covas,
diretor do Instituto Butantan e membro do Comitê de Contingência do
Coronavírus, em São Paulo. “O papel da vacina é a proteção social, antes de
tudo. Não é só a proteção individual, mas da comunidade”, afirma. Quem fala,
como Bolsonaro, que a vacina não é obrigatória, coloca o interesse coletivo em
segundo plano. Além disso, todas as vacinas estão sendo testadas sob rígidos
protocolos de segurança, apesar da situação de urgência. Prova disso é a
suspensão temporária dos testes da vacina desenvolvida pela AstraZeneca, que
vinha fazendo ensaios clínicos com voluntários no Brasil (ver box). Outras
quatro vacinas estão sendo testadas e só chegarão à população quando tiverem a
eficácia e a segurança comprovadas.
Interesse coletivo
As declarações antivacina de Bolsonaro causaram assombro na
OMS. A cientista-chefe do órgão, Soumya Swaminathan, chamou atenção para a
eficácia das vacinas. “O primeiro aspecto a se considerar é que as vacinas
erradicaram doenças como sarampo e varíola e fizeram muito pela humanidade”,
disse. “Essas declarações mostram o quanto é necessário educação, transparência
e informação pública sobre a importância das vacinas em geral e, em seguida,
sobre a vacina contra a Covid-19.” O diretor geral da OMS, Tedros Ghebreyesus,
também comentou o avanço do discurso negacionista. “As pessoas não devem ser
confundidas por movimentos antivacinas, mas ver como o mundo usou a imunização
para combater a mortalidade infantil e para erradicar doenças.” O fato é que as
vacinas se revelaram uma das invenções mais salvadoras da humanidade. Segundo a
OMS, a vacinação em massa evita, hoje, pelo menos 240 mortes por hora no mundo
e causa uma economia de R$ 250 milhões por dia, diminuindo a pressão sobre os
serviços de saúde. Esses cálculos incluem a imunização para doenças como
difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, rotavírus, pneumonia, diarreia,
rubéola e tétano. A OMS estima que as vacinas impeçam a morte de 2 a 3 milhões
de pessoas por ano e poderiam salvar mais 1,5 milhão de vidas se a imunização
fosse ampliada.
Capitão cloroquina
Uma evidente demonstração de que o pensamento antivacina
prospera foi dada em uma manifestação na Boca Maldita, área no centro de
Curitiba (PR), também no Dia da Independência, em que os participantes diziam
em cartazes “não queremos a vacina, nós temos a cloroquina”. O grupo, que se
autodenomina Curitiba Patriótica e marca seus atos pelas redes sociais, reuniu
uma dezena de pessoas. “Organizamos o ato porque somos patriotas. Como não
haveria o desfile cívico, nos prontificamos a fazer uma manifestação”, afirma o
publicitário César Hamilko, um dos participantes do protesto. Ele costuma
divulgar pelo Facebook vídeos com mensagens de incentivo ao tratamento precoce
do coronavírus, nos quais defende o uso do vermífugo ivermectina, de vitaminas,
especialmente a D, e da cloroquina. Segundo ele, quem faz o tratamento, a
partir do mínimo sintoma, não tem chance de ficar doente. Hamilko acredita que
“Bolsonaro foi eleito e tem legitimidade para dizer o que os brasileiros devem
tomar para se precaver contra a Covid-19”. Quanto à vacina contra o
coronavírus, ele declara que não vai tomar. “Não confio no que vem por aí”,
diz.
Segundo o pesquisador emérito da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) Akira Homma, as vacinas e o processo de vacinação são um binômio de
alto custo-benefício para a sociedade e para a civilização e os ganhos dela
decorrentes só são comparáveis aos da água potável, em termos de saúde pública.
A vacinação em massa previne doenças e aumenta a qualidade de vida. Junto com o
saneamento básico, foi a principal responsável pela diminuição da mortalidade
infantil e pelo aumento da longevidade da população no século XX. “Os
movimentos antivacinas são insidiosos, altamente prejudiciais à saúde”, afirma
Homma. O discurso antivacina, o questionamento constante do isolamento social,
a aversão às máscaras, a promoção de remédios milagrosos: tudo é parte de um
mesmo pacote negacionista. Para os bolsonaristas de plantão, pouco importa se a
recusa à imunização contribui para que as doenças se alastrem. Mais importante
para esses grupos é promover a desinformação.
Enquanto coloca em dúvida a eficácia das vacinas e
relativiza sua importância, Bolsonaro continua na sua saga particular na defesa
da cloroquina e não perde uma oportunidade de promover o medicamento. É uma
completa inversão de prioridades. O presidente tenta desacreditar a vacina e
trata a cloroquina como a solução do problema, aumentando as compras do produto
a níveis estratosféricos e pressionando médicos para que adotem o medicamento.
Dessa forma, espalhando tolices por onde passa, ele coloca o Brasil numa
posição de pária internacional, onde a imunização coletiva, que permitirá a
retomada da atividade econômica e a volta da normalidade, será sempre colocada
sob suspeita pelos observadores internacionais. A imagem do País que o
presidente promove é de um lugar onde não existe responsabilidade no combate à
doença e onde as pessoas acreditam em informações falsas e fazem o que querem,
sem obedecer a qualquer planejamento governamental porque para o presidente o
que importa é massacrar a verdade.
Movimento antivax
Entre os negacionistas há os que promovem a liberdade
vacinal (só se vacina quem quer) e há os que rejeitam sumariamente qualquer
imunização. De qualquer forma, a direita populista que ganha força em todo o
mundo se apropriou desse discurso e passou a pregá-lo abertamente. Naturalistas
também questionam o sistema de vacinação massificado, além de acusarem
conspirações entre governos e a indústria farmacêutica. O movimento antivacina
já se apresentava difusamente desde o início do século 20, quando campanhas de
imunização enfrentavam a oposição de alguns setores da população – um caso
clássico é o da Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro. Houve protestos
contra a Lei de Vacinação Obrigatória e os serviços prestados pelos agentes de
saúde. Pelo menos 30 pessoas morreram nos conflitos. Em 1998, um estudo
publicado pelo médico britânico Andrew Wakefield na prestigiada revista Lancet
vinculava a vacina tríplice viral a casos de autismo. Wakefield analisou a
saúde de 12 crianças, das quais oito teriam manifestado o autismo duas semanas
depois da aplicação da vacina. O pesquisador atribuiu esse fato a uma
sobrecarga do sistema imunológico. Soube-se depois que as conclusões do
trabalho de Wakefield foram fraudadas, mas o estrago já estava feito.
Vinculou-se a vacinação a uma doença terrível e outras vacinas, além da
tríplice viral, também foram estigmatizadas. Apesar de desmentida, a pesquisa
deu munição para os negacionistas, que até hoje insistem nessa mentira,
aumentou a crise de confiança em relação à imunização e levou muitos pais a
deixarem de vacinar seus filhos.
Ao mesmo tempo em que lançam críticas, fake news e promovem
mentiras para assustar a população, o problema da baixa imunização no Brasil se
acentua ano a ano. Em 2019, atingiu proporções calamitosas. Segundo dados do
Programa Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde, sete das nove
vacinas normalmente dadas para bebês registraram no ano passado os piores
índices de cobertura desde 2013. No caso da tuberculose e da poliomielite, o
percentual de crianças vacinadas foi o pior em 20 anos. Pela primeira vez no
século, o Brasil não alcançou a meta para nenhuma das principais vacinas
indicadas a crianças de até um ano, segundo dados do PNI. No ano passado,
metade das crianças brasileiras não recebeu todas as vacinas previstas no
Calendário Nacional de Imunização. Para Bolsonaro, porém, a precariedade na
imunização é uma opção.
Segundo dados do PNI, a cobertura vacinal média no Brasil
está em 51,6% para as imunizações infantis. No caso da tríplice viral, o índice
é de 60%. O ideal é que essa cobertura ficasse entre 90% e 95% para garantir
proteção contra doenças como sarampo, coqueluche, meningite e poliomielite.
Essas doenças, que haviam sido erradicadas, estão voltando por causa do
abandono da prevenção. Cada indivíduo que deixa de tomar vacina por opção é um
agente infeccioso em potencial. O ambiente de incerteza que envolve o
desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 só piora essa situação e favorece a
proliferação de boatos e meias-verdades sobre a vacinação e a medicina. Testes
estão sendo feitos para garantir num futuro próximo uma imunização eficaz e
segura. Mas as ideias de Bolsonaro perturbam o ambiente e reforçam a
insegurança que afeta a todos por causa da pandemia. Enquanto em todo o mundo
só se fala em colaboração e ajuda mútua, para o presidente brasileiro, um
promotor da ignorância, o que vale é o cada um por si.
Tudo pela segurança
Brasil abriga testes clínicos de cinco vacinas
A farmacêutica AstraZeneca anunciou,na semana passada, uma
“pausa voluntária” nos testes clínicos de suavacina contra a Covid-19. A
interrrupção temporária dos ensaios em todo o mundo mostra que a segurança é
preocupação fundamental nos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento. A
suspensão ocorreu porque foi detectada uma reação adversa grave em um
voluntário inglês que participava da iniciativa e teria desenvolvido uma doença
inflamatória. “Essa é uma medida de rotina”, disse um porta-voz da empresa,
associada à universidade de Oxford no projeto. “Como parte dos testes globais
controlados e randomizados em andamento, nosso protocolo de revisão padrão foi
acionado e fizemos uma pausa voluntária na vacinação, para permitir a revisão
dos dados de segurança”.
A decisão adia os planos do governo brasileiro, que, apesar
do negacionismo de Bolsonaro, esperava lançar a vacina da AstraZeneca nos
próximos meses. Na terça-feira 8, em uma entrevista para uma youtuber mirim, o
ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse que a intenção do governo era
começar a vacinar as pessoas a partir de janeiro de 2021. “Esse é o plano. A
gente está fazendo os contratos com quem está fazendo a vacina e, em janeiro do
ano que vem, a gente começa a vacinar todo mundo”, disse o ministro. A vacina
que deveria chegar, porém, é, a que teve os testes interrompidos. A Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), parceira da AstraZeneca no Brasil, prevê um atraso no
estudo da vacina.
Há mais de 170 vacinas contra a Covid-19 em desenvolvimento,
hoje, no mundo e 34 delas estão em fase de testes clínicos, sendo dez na fase
3, a penúltima. No Brasil, há quatro projetos em andamento. Um deles é o da
vacina Sinovac, cujos estudos foram autorizados pela Agencia Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), em junho. Essa vacina está sendo desenvolvida
junto com o Instituto Butantan. Participam dos testes, que até agora não apresentaram
qualquer imprevisto, nove mil pessoas. Outra iniciativa é da vacina Biontech e
Wyeth/Pfizer. Deverão participar desse estudo 29 mil voluntários, sendo mil
deles brasileiros. A Jansen-Cilag, divisão farmacêutica da Johnson &
Johnson, também está desenvolvendo um estudo no Brasil que envolverá 60 mil
voluntários.
A vacina russa Sputnik V desenvolvida pelo centro de
pesquisas Gamaleya também está em fase 3 de testes. O estudo foi acolhido no
Brasil pelos governos da Bahia e do Paraná. e os ensaios devem começar em
outubro. Na quarta-feira 9, os laboratórios Dasa e a Covaxx, divisão da
americana United Biomedical, anunciaram um novo projeto, o décimo do mundo a
entrar na fase 3 e o quinto com testes clínicos no Brasil. Segundo Gustavo
Campana, diretor médico da Dasa, a rede de laboratórios usará sua base de dados
para recrutar os pacientes para os testes.
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