sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A FÚRIA NEGACIONISTA

Vicente Vilardaga e Fernando Lavieri, ISTOÉ

São ideias aterrorizantes e contra os fatos, que, se prosperarem, podem levar milhares ou até milhões de pessoas à morte ou à invalidez, nos próximos anos, por inúmeras enfermidades reconhecidamente erradicadas pela vacinação. Trata-se de um retrocesso civilizacional com os ares sombrios da Idade Média. Grupos de direita que se opõem à imunização em massa aproveitam a crise da Covid-19 para promover a resistência às vacinas, comportamento que ganhou força nos últimos anos e é considerado uma ameaça global pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, tenta-se, a todo custo, politizar a doença, lançar teorias conspiratórias e incentivar a desobediência civil. A vacina contra o coronavírus nem existe e Bolsonaro já lançou uma campanha de descrédito contra ela.

Na segunda-feira 7, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) publicou no Twitter uma declaração do presidente dada na semana anterior: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. No dia 8, Bolsonaro voltou ao assunto e disse que “não se pode injetar qualquer coisa nas pessoas e muito menos obrigar”. Foram afirmações levianas e sem respaldo científico ou legal, que feriram princípios éticos, já que a vacinação não é uma escolha e a imunização que será oferecida para a população não será “qualquer coisa”. Na verdade, a lei 6259/1975, que estabeleceu o Programa Nacional de Imunização, prevê a obrigatoriedade da vacinação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, também estabelece a imunização compulsória para brasileiros de até 18 anos e sanções para pais e responsáveis que não cumprirem essa obrigação. E o próprio Bolsonaro sancionou uma lei, em fevereiro, que permite a vacinação compulsória no enfrentamento da pandemia.

“Quando a autoridade pública diz que a vacinação não é obrigatória, ela está prestando um desserviço enorme e mostrando desconhecimento da função das vacinas”, diz o hematologista Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan e membro do Comitê de Contingência do Coronavírus, em São Paulo. “O papel da vacina é a proteção social, antes de tudo. Não é só a proteção individual, mas da comunidade”, afirma. Quem fala, como Bolsonaro, que a vacina não é obrigatória, coloca o interesse coletivo em segundo plano. Além disso, todas as vacinas estão sendo testadas sob rígidos protocolos de segurança, apesar da situação de urgência. Prova disso é a suspensão temporária dos testes da vacina desenvolvida pela AstraZeneca, que vinha fazendo ensaios clínicos com voluntários no Brasil (ver box). Outras quatro vacinas estão sendo testadas e só chegarão à população quando tiverem a eficácia e a segurança comprovadas.

Interesse coletivo

As declarações antivacina de Bolsonaro causaram assombro na OMS. A cientista-chefe do órgão, Soumya Swaminathan, chamou atenção para a eficácia das vacinas. “O primeiro aspecto a se considerar é que as vacinas erradicaram doenças como sarampo e varíola e fizeram muito pela humanidade”, disse. “Essas declarações mostram o quanto é necessário educação, transparência e informação pública sobre a importância das vacinas em geral e, em seguida, sobre a vacina contra a Covid-19.” O diretor geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, também comentou o avanço do discurso negacionista. “As pessoas não devem ser confundidas por movimentos antivacinas, mas ver como o mundo usou a imunização para combater a mortalidade infantil e para erradicar doenças.” O fato é que as vacinas se revelaram uma das invenções mais salvadoras da humanidade. Segundo a OMS, a vacinação em massa evita, hoje, pelo menos 240 mortes por hora no mundo e causa uma economia de R$ 250 milhões por dia, diminuindo a pressão sobre os serviços de saúde. Esses cálculos incluem a imunização para doenças como difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, rotavírus, pneumonia, diarreia, rubéola e tétano. A OMS estima que as vacinas impeçam a morte de 2 a 3 milhões de pessoas por ano e poderiam salvar mais 1,5 milhão de vidas se a imunização fosse ampliada.

Capitão cloroquina

Uma evidente demonstração de que o pensamento antivacina prospera foi dada em uma manifestação na Boca Maldita, área no centro de Curitiba (PR), também no Dia da Independência, em que os participantes diziam em cartazes “não queremos a vacina, nós temos a cloroquina”. O grupo, que se autodenomina Curitiba Patriótica e marca seus atos pelas redes sociais, reuniu uma dezena de pessoas. “Organizamos o ato porque somos patriotas. Como não haveria o desfile cívico, nos prontificamos a fazer uma manifestação”, afirma o publicitário César Hamilko, um dos participantes do protesto. Ele costuma divulgar pelo Facebook vídeos com mensagens de incentivo ao tratamento precoce do coronavírus, nos quais defende o uso do vermífugo ivermectina, de vitaminas, especialmente a D, e da cloroquina. Segundo ele, quem faz o tratamento, a partir do mínimo sintoma, não tem chance de ficar doente. Hamilko acredita que “Bolsonaro foi eleito e tem legitimidade para dizer o que os brasileiros devem tomar para se precaver contra a Covid-19”. Quanto à vacina contra o coronavírus, ele declara que não vai tomar. “Não confio no que vem por aí”, diz.

Segundo o pesquisador emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Akira Homma, as vacinas e o processo de vacinação são um binômio de alto custo-benefício para a sociedade e para a civilização e os ganhos dela decorrentes só são comparáveis aos da água potável, em termos de saúde pública. A vacinação em massa previne doenças e aumenta a qualidade de vida. Junto com o saneamento básico, foi a principal responsável pela diminuição da mortalidade infantil e pelo aumento da longevidade da população no século XX. “Os movimentos antivacinas são insidiosos, altamente prejudiciais à saúde”, afirma Homma. O discurso antivacina, o questionamento constante do isolamento social, a aversão às máscaras, a promoção de remédios milagrosos: tudo é parte de um mesmo pacote negacionista. Para os bolsonaristas de plantão, pouco importa se a recusa à imunização contribui para que as doenças se alastrem. Mais importante para esses grupos é promover a desinformação.

Enquanto coloca em dúvida a eficácia das vacinas e relativiza sua importância, Bolsonaro continua na sua saga particular na defesa da cloroquina e não perde uma oportunidade de promover o medicamento. É uma completa inversão de prioridades. O presidente tenta desacreditar a vacina e trata a cloroquina como a solução do problema, aumentando as compras do produto a níveis estratosféricos e pressionando médicos para que adotem o medicamento. Dessa forma, espalhando tolices por onde passa, ele coloca o Brasil numa posição de pária internacional, onde a imunização coletiva, que permitirá a retomada da atividade econômica e a volta da normalidade, será sempre colocada sob suspeita pelos observadores internacionais. A imagem do País que o presidente promove é de um lugar onde não existe responsabilidade no combate à doença e onde as pessoas acreditam em informações falsas e fazem o que querem, sem obedecer a qualquer planejamento governamental porque para o presidente o que importa é massacrar a verdade.

Movimento antivax

Entre os negacionistas há os que promovem a liberdade vacinal (só se vacina quem quer) e há os que rejeitam sumariamente qualquer imunização. De qualquer forma, a direita populista que ganha força em todo o mundo se apropriou desse discurso e passou a pregá-lo abertamente. Naturalistas também questionam o sistema de vacinação massificado, além de acusarem conspirações entre governos e a indústria farmacêutica. O movimento antivacina já se apresentava difusamente desde o início do século 20, quando campanhas de imunização enfrentavam a oposição de alguns setores da população – um caso clássico é o da Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro. Houve protestos contra a Lei de Vacinação Obrigatória e os serviços prestados pelos agentes de saúde. Pelo menos 30 pessoas morreram nos conflitos. Em 1998, um estudo publicado pelo médico britânico Andrew Wakefield na prestigiada revista Lancet vinculava a vacina tríplice viral a casos de autismo. Wakefield analisou a saúde de 12 crianças, das quais oito teriam manifestado o autismo duas semanas depois da aplicação da vacina. O pesquisador atribuiu esse fato a uma sobrecarga do sistema imunológico. Soube-se depois que as conclusões do trabalho de Wakefield foram fraudadas, mas o estrago já estava feito. Vinculou-se a vacinação a uma doença terrível e outras vacinas, além da tríplice viral, também foram estigmatizadas. Apesar de desmentida, a pesquisa deu munição para os negacionistas, que até hoje insistem nessa mentira, aumentou a crise de confiança em relação à imunização e levou muitos pais a deixarem de vacinar seus filhos.

Ao mesmo tempo em que lançam críticas, fake news e promovem mentiras para assustar a população, o problema da baixa imunização no Brasil se acentua ano a ano. Em 2019, atingiu proporções calamitosas. Segundo dados do Programa Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde, sete das nove vacinas normalmente dadas para bebês registraram no ano passado os piores índices de cobertura desde 2013. No caso da tuberculose e da poliomielite, o percentual de crianças vacinadas foi o pior em 20 anos. Pela primeira vez no século, o Brasil não alcançou a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas a crianças de até um ano, segundo dados do PNI. No ano passado, metade das crianças brasileiras não recebeu todas as vacinas previstas no Calendário Nacional de Imunização. Para Bolsonaro, porém, a precariedade na imunização é uma opção.

Segundo dados do PNI, a cobertura vacinal média no Brasil está em 51,6% para as imunizações infantis. No caso da tríplice viral, o índice é de 60%. O ideal é que essa cobertura ficasse entre 90% e 95% para garantir proteção contra doenças como sarampo, coqueluche, meningite e poliomielite. Essas doenças, que haviam sido erradicadas, estão voltando por causa do abandono da prevenção. Cada indivíduo que deixa de tomar vacina por opção é um agente infeccioso em potencial. O ambiente de incerteza que envolve o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 só piora essa situação e favorece a proliferação de boatos e meias-verdades sobre a vacinação e a medicina. Testes estão sendo feitos para garantir num futuro próximo uma imunização eficaz e segura. Mas as ideias de Bolsonaro perturbam o ambiente e reforçam a insegurança que afeta a todos por causa da pandemia. Enquanto em todo o mundo só se fala em colaboração e ajuda mútua, para o presidente brasileiro, um promotor da ignorância, o que vale é o cada um por si.

Tudo pela segurança
Brasil abriga testes clínicos de cinco vacinas

A farmacêutica AstraZeneca anunciou,na semana passada, uma “pausa voluntária” nos testes clínicos de suavacina contra a Covid-19. A interrrupção temporária dos ensaios em todo o mundo mostra que a segurança é preocupação fundamental nos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento. A suspensão ocorreu porque foi detectada uma reação adversa grave em um voluntário inglês que participava da iniciativa e teria desenvolvido uma doença inflamatória. “Essa é uma medida de rotina”, disse um porta-voz da empresa, associada à universidade de Oxford no projeto. “Como parte dos testes globais controlados e randomizados em andamento, nosso protocolo de revisão padrão foi acionado e fizemos uma pausa voluntária na vacinação, para permitir a revisão dos dados de segurança”.

A decisão adia os planos do governo brasileiro, que, apesar do negacionismo de Bolsonaro, esperava lançar a vacina da AstraZeneca nos próximos meses. Na terça-feira 8, em uma entrevista para uma youtuber mirim, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse que a intenção do governo era começar a vacinar as pessoas a partir de janeiro de 2021. “Esse é o plano. A gente está fazendo os contratos com quem está fazendo a vacina e, em janeiro do ano que vem, a gente começa a vacinar todo mundo”, disse o ministro. A vacina que deveria chegar, porém, é, a que teve os testes interrompidos. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), parceira da AstraZeneca no Brasil, prevê um atraso no estudo da vacina.

Há mais de 170 vacinas contra a Covid-19 em desenvolvimento, hoje, no mundo e 34 delas estão em fase de testes clínicos, sendo dez na fase 3, a penúltima. No Brasil, há quatro projetos em andamento. Um deles é o da vacina Sinovac, cujos estudos foram autorizados pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em junho. Essa vacina está sendo desenvolvida junto com o Instituto Butantan. Participam dos testes, que até agora não apresentaram qualquer imprevisto, nove mil pessoas. Outra iniciativa é da vacina Biontech e Wyeth/Pfizer. Deverão participar desse estudo 29 mil voluntários, sendo mil deles brasileiros. A Jansen-Cilag, divisão farmacêutica da Johnson & Johnson, também está desenvolvendo um estudo no Brasil que envolverá 60 mil voluntários.

A vacina russa Sputnik V desenvolvida pelo centro de pesquisas Gamaleya também está em fase 3 de testes. O estudo foi acolhido no Brasil pelos governos da Bahia e do Paraná. e os ensaios devem começar em outubro. Na quarta-feira 9, os laboratórios Dasa e a Covaxx, divisão da americana United Biomedical, anunciaram um novo projeto, o décimo do mundo a entrar na fase 3 e o quinto com testes clínicos no Brasil. Segundo Gustavo Campana, diretor médico da Dasa, a rede de laboratórios usará sua base de dados para recrutar os pacientes para os testes.

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