sexta-feira, 30 de abril de 2021

AS PALAVRAS MACABRAS DE PAULO GUEDES SOBRE O SUS

Juan Arias, EL PAÍS

Escrevo esta coluna no momento dramático em que o Brasil contabiliza 400.000 mortos vítimas da covid-19. É uma triste efeméride que poderia ter sido evitada em boa parte sem a atitude de desprezo pela vida demonstrada pelo presidente Jair Bolsonaro e sua postura de bloquear a vacina. A isso se soma agora a macabra afirmação feita dias atrás por seu ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o sistema público de saúde (SUS) está quebrado porque as pessoas querem viver muito, “até os 100 anos”.

No mesmo dia em que se inaugurou a CPI do Senado para investigar possíveis crimes na tragédia da covid-19, Guedes fez graves declarações sobre o sistema público de saúde, considerado, apesar de suas falhas, um dos mais avançados do mundo. É uma glória do Brasil que nem sequer os ricos Estados Unidos conseguiram implantar, apesar das tentativas do ex-presidente Obama.

Guedes, em seu discurso do último dia 27, afirmou, sem saber que estava sendo gravado, que o atual SUS e o Estado estão quebrados. Com essa afirmação, enviou ao mesmo tempo uma mensagem subliminar aos empresários da saúde de que o futuro do setor no Brasil terá que passar às mãos dos particulares, favorecendo assim a indústria dos planos de saúde. E os milhões de pobres que jamais poderão pagar um plano ou se tratar num hospital privado? Aí chega a parte mais desumana. Segundo o ministro, a culpa do descalabro do sistema publico de saúde não seria do Estado, e sim das pessoas que pretendem viver demais. É uma afirmação que atribui a culpa do descalabro sanitário ao desejo das pessoas de viverem o máximo que puderem.

Talvez não tenha sido casual que o ministro tenha criticado as pessoas por quererem viver muito quando a CPI do Senado investiga a conduta do presidente durante a pandemia, a qual lhe valeu a crítica de estar provocando um genocídio nacional com seu negacionismo e sua rejeição à vacina.

Não podemos nos esquecer de que uma das primeiras declarações do capitão sobre a pandemia foi que “todos nós vamos morrer”, e que afinal os que mais se contaminam e morrem são os idosos e os doentes crônicos, já que os atletas como ele e os fortes resistem melhor.

Foi então quando ele revelou que o que mais lhe preocupava na pandemia era o problema econômico. Por isso, que morressem idosos e doentes importava menos, já que eles não são parte da força de trabalho. Seriam uns parasitas que consomem sem produzir.

Essa desumanidade de Bolsonaro, que parece elogiar a morte dos inúteis e improdutivos, casa perfeitamente com a fria e cruel afirmação de seu ministro da economia, que estigmatiza o desejo das pessoas de continuarem vivendo, o que poderia pôr em perigo o deus do liberalismo, para o qual as pessoas servem apenas enquanto são capazes de produzir. Do contrário, melhor que reprimam seus instintos de quererem continuar vivendo, já que representam um peso para a economia. Um bom tema para a CPI da covid-19 investigar é a responsabilidade de quem deixou a epidemia correr solta, vista como uma espécie de limpeza étnica para eliminar as vidas que o capitalismo cruel considera inúteis e até perigosas para o sistema.

Pena que as 400.000 vitimas mortais da pandemia não possam ressuscitar de suas tumbas para deporem nas investigações da CPI. Certamente os resultados do inquérito seriam muito diferentes do que será pelos rasteiros jogos políticos que essas CPIs costumam abrigar.

As palavras macabras de Guedes de que o sistema de saúde não funciona bem porque as pessoas se empenham em viver “até cem anos” leva a crer que o melhor seria criar uma eutanásia geral para os que já viveram bastante e não podem produzir, para não quebrar a economia.

Comprova-se uma vez mais que a filosofia do bolsonarismo está estreitamente ligada até metaforicamente à morte, e não à vida. Algo que se revela cada vez mais claramente na linguagem, na gestualidade imitando as armas, nos símbolos nazistas, no amor pela guerra e a violência, em seu desprezo pelos fracos que não mereceriam viver e por seus sentimentos de vingança, junto com uma escondida covardia e medo da vida.

Freud nos ensinou, inspirando-se na mitologia grega, que as duas colunas que sustentam o mundo são Eros e Tânatos, ou seja, o amor pela vida e a reprodução, e os sentimentos de morte. E que, no final, sempre prevaleceu no mundo o amor pela vida sobre a morte, já que do contrário o mundo não existiria. O esforço por continuar vivendo apesar de todas as dificuldades que a vida acarreta acaba sendo maior que o instinto de morte e de destruição. Por isso a humanidade continuou viva, apesar das grandes catástrofes, das guerras mundiais e das epidemias. O instinto de querer continuar vivendo acaba sempre por vencer. O bolsonarismo, pelo contrário, parece apostar no Tânatos freudiano, na morte, na negatividade, na violência e na destruição.

É lamentável, no momento em que o Brasil aparece tristemente como o epicentro da pandemia no mundo, que o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Casa Civil, revele que se vacinou “escondido”, certamente por medo da reação do seu chefe, o capitão Bolsonaro. O general, ao revelar que se vacinou escondido, acabou confessando: “Sim, me vacinei, não tenho vergonha, porque como todo ser humano eu quero viver”.

O jornalista João Batista Natali, da Folha do S. Paulo, depois de ter passado 21 dias em coma induzido por causa da covid-19, contou em seu jornal a dor causada por ter estado morto durante todo esse tempo. E termina seu relato com um grito: “Que linda é a vida!”. Tomara que seu grito de homenagem à vida tenha chegado aos ouvidos do ministro que critica quem deseja viver demais.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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OS 100 DIAS DE BIDEN

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Segundo o BEA (Bureau of Economic Analysis), do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, o PIB (Produto Interno Bruto) norte-americano cresceu à taxa anualizada 6,4% no 1o trimestre em relação aos três meses anteriores. Esse resultado foi superior ao registrado no trimestre anterior, de 4,3%, e está sendo comemorado pelo presidente democrata Joe Biden, que hoje completa 100 dias de governo. Emblematicamente, a avaliação desses 100 dias é uma tradição iniciada em 1933, no primeiro mandato de Franklin Roosevelt, no qual o novo presidente norte-americano se espelha.

Roosevelt fez um governo revolucionário ao seu tempo. À época, a crise do liberalismo econômico levou à maior intervenção do Estado sobre a economia e à reestruturação das práticas capitalistas do século passado. O crash da Bolsa de Nova York, em 1929, havia posto em xeque os princípios da economia clássica, ao deflagrar uma das maiores crises da história do capitalismo. Eleito em 1932, o desafio de Roosevelt fora reerguer a economia. Para isso, recorreu às ideias do economista John Maynard Keynes. O New Deal foi sua alternativa de desenvolvimento econômico.

Entre outras ações, o New Deal estabelecia o controle na emissão de valores monetários, o investimento em setores básicos da indústria e a criação de políticas de emprego. Roosevelt buscou uma recuperação econômica segura e gradual, com ações para conciliar as questões econômicas e sociais, o chamado welfare state (Estado do bem-estar social), que perdeu sustentabilidade no final da década de 1970, quando o neoliberalismo de Margareth Tatcher começou a ganhar fôlego. Com a eleição do presidente Ronald Reagan, em 1980, porém, um novo ciclo liberal foi iniciado, inspirado no chamado Consenso de Washington.

Biden parece disposto a fazer uma ruptura radical na economia. Mantém o pé no acelerador para neutralizar qualquer tentativa de o ex-presidente Donald Trump, que não conseguiu se reeleger, voltar ao poder. Logo após a sua posse, em 20 de janeiro, promulgou um projeto de lei para enfrentar a pandemia da covid-19 de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10,3 trilhões), com um auxílio de US$ 1.440 para a população diretamente atingida pela crise.

Seu governo atingiu a meta de 200 milhões de doses de vacinas de coronavírus aplicadas, agora já disponíveis a todos com 16 anos. O desemprego está caindo, os pedidos de seguro-desemprego atingiram o ponto mais baixo na pandemia e as escolas reabriram para aulas presenciais. Recentemente, Biden assinou um programa de recuperação da infraestrutura da ordem de US$ 2,3 trilhões e outro para a educação, no valor de US$ 1,8 trilhão. É uma injeção de US$ 4 trilhões na economia dos EUA.

Ficou a pé

Biden mudou a política externa dos Estados Unidos: retornou ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde, travou o financiamento do muro na fronteira com o México e anunciou a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão. Foi aí que o presidente Jair Bolsonaro caiu do cavalo. A mudança deixou o Brasil sozinho no relacionamento conflituoso com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e muito isolado no plano internacional, por causa da questão ambiental. Bolsonaro reproduzia a política externa de Donald Trump e seu negacionismo até com mais virulência.

Com a mudança de rumo, o chanceler Ernesto Araújo, que posava de ideólogo da política externa, foi defenestrado do cargo. Agora, quem está na berlinda é o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, completamente desacreditado, interna e externamente. Na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)), a aceitação do Brasil dependerá da mudança de rumo na questão climática; porém, na União Europeia, o acordo com o Mercosul será ainda mais difícil, pelo mesmo motivo. Mas o maior impacto da mudança na Casa Branca ainda está por vir: será na política econômica. O projeto ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para o espaço na pandemia. Com a mudança de rumo nos EUA, só falta agora o próprio ministro se ejetar da cadeira.

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2021, O PIOR ORÇAMENTO DA HISTÓRIA

Maílson da Nóbrega, O Estado de S.Paulo

O Orçamento da União para 2021, uma mixórdia, é o pior da era republicana. É inconcebível que isso tenha acontecido com a peça legislativa mais importante depois da Constituição. A Lei Orçamentária Anual é, ademais, a principal da área econômica, pois define as prioridades do País e a destinação dos recursos públicos.

O Orçamento esteve na origem da Carta Magna inglesa (1215), a primeira das grandes mudanças institucionais que legaram a democracia ocidental. A Revolução Gloriosa inglesa (1688) atribuiu ao Parlamento a supremacia do poder e a aprovação anual do orçamento. Questões orçamentárias compuseram as fontes e as transformações das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789).

No Brasil somos herdeiros de outras tradições, as do mundo ibérico colonial, em que as finanças do rei se confundiam com as do Estado. Talvez por isso o Orçamento não seja levado a sério. Até 1937 o Congresso o usava para dar nome a ruas e promover funcionários. Daí o dispositivo acaciano introduzido pela Constituição de 1937 e mantido desde então: o Orçamento só cuida da receita e da despesa.

Nos últimos 20 anos, segundo levantamento da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), várias vezes o Orçamento foi aprovado meses depois do início do exercício fiscal. Quase virou regra. De fato, durante esses 20 anos, em apenas dois a lei foi publicada antes do término do ano anterior.

Durante a Constituição de 1946, o Orçamento era desfigurado por excesso de emendas. No outro extremo, o regime militar proibiu-as. A Constituição de 1988 restabeleceu essa necessária atribuição do Congresso, mas condicionada ao cancelamento de dotações de mesmo valor ou por “erros e omissões”.

Erros e omissões seriam, óbvio, erros materiais, mas no primeiro Orçamento da democracia, o de 1989, o relator interpretou que abrangiam engano na estimativa da receita. Ao projetar artificialmente uma arrecadação maior, ele abriu espaço para emendas. A maroteira, inconstitucional, foi consagrada mediante sua inscrição como norma do Congresso.

O teto de gastos tornou a manobra inviável, pois a despesa passou a ter um limite. Mesmo que se reestime a receita, as emendas não podem aumentar. Depois de dois exercícios o Congresso achou a saída: criar o espaço para emendas pela redução de gastos obrigatórios como as aposentadorias. Flexibilizou-se o que é fixo por natureza.

Uma justificativa para a barbaridade teria sido estudo do Ministério da Economia sugerindo que o auxílio-doença fosse pago pelas empresas, que descontariam o seu valor no pagamento de tributos. Seria violado um princípio básico do processo orçamentário, pelo qual o Orçamento deve conter todas as despesas e receitas do governo. Prejudicaria a transparência e propiciaria fraudes.

O Congresso fez uma festa com as emendas: somaram inacreditáveis R$ 49 bilhões. Tudo com o aval do Ministério da Economia, segundo o relator, senador Márcio Bittar. Depois dos vetos, esse valor foi reduzido para R$ 35,6 bilhões, correspondente a 47% dos gastos discricionários, ou seja, os não obrigatórios. Para comparar, em 2008 atingiram 19,6%. Veremos mais ginásios de esportes, ambulâncias, tratores e postos de saúde Brasil afora, em detrimento da melhoria da infraestrutura nacional, da ciência e tecnologia, do apoio ao agronegócio e, pasmem, do censo demográfico.

O governo teria participado da negociação de uma pedalada fiscal. A meta do resultado primário de 2021 vai excluir as despesas com saúde, o programa de preservação de empregos (BEm) e o crédito para pequenas e médias empresas (Pronampe). O certo teria sido rever a meta, e não renovar essa estratégia petista. Tais despesas serão financiadas com créditos extraordinários, o que as exclui do teto de gastos. Para tornar viável a manobra, alterou-se a Lei de Diretrizes Fiscais aprovada em 2019, permitindo que essas despesas não precisem ser compensadas com cortes equivalentes em outras áreas.

Ainda mais esquisito foi incluir na Constituição os R$ 44 bilhões de recursos para financiar o auxílio emergencial. Uma dotação orçamentária virou mandamento constitucional, o que deve ser caso único no mundo. Se a pandemia não for controlada, será necessário estender o auxílio, provavelmente por crédito extraordinário. No mesmo exercício, um programa oficial será baseado em emenda constitucional e em decreto presidencial.

O valor das despesas discricionárias, R$ 74 bilhões, tende a ser insuficiente para manter o funcionamento das atividades administrativas do governo. Haverá o risco de shutdown, pois dificilmente o governo concordaria com a ruptura do teto, ainda que para ampliar dotações e desse modo evitar a paralisia da administração. Nas atuais circunstâncias, seria uma catástrofe, o que tornaria inviável a reeleição de Bolsonaro.

Depois de tudo isso, pelo menos se pode esperar a preservação do teto de gastos, que constitui a âncora fiscal do País. Parece que estamos livres do pior.

ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

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OS 23 PECADOS CAPITAIS DO GOVERNO

Carlos José Marques, ISTOÉ

No último domingo de Ramos — não o da festa cristã que celebra a semana anterior à Páscoa, mas sim no do ministro Luiz Eduardo Ramos, da Casa Civil, dias atrás —, Messias, não o da dimensão superior, o terreno, aquele mesmo que atende também pela alcunha de capitão Bolsonaro, teve de se curvar no altar do purgatório para espiar seus 23 pecados. Era uma lista de malversações sanitárias, crimes à saúde de toda a natureza, decisões erráticas, orientações fraudulentas de tratamento e inomináveis barbeiragens, contra as quais o governo buscava justificativas para a sua defesa junto à CPI da Covid.

 A relação de Ramos constituía um verdadeiro compêndio de aberrações, quase uma delação premiada, com provas e práticas a evidenciar a perversão do mandatário, responsável maior pela “causa mortis” de milhares de brasileiros. Fatos concretos estão ali. Não há nem como contestar, visto serem de conhecimento e testemunho geral. Da negligência no processo de aquisição de vacinas à promoção e produção indevida de medicamento comprovadamente ineficaz (com gastos inexplicáveis), desprezando orientações da OMS.

Desde o início, com o seu negacionismo, o governo minimizou a gravidade da pandemia. Tripudiou sobre ela. Fez pouco caso dos enfermos e de seus familiares. “Vamos deixar de mimimi”, dizia. “E daí?”, questionava quando indagado sobre o número de mortos, emendando logo a seguir com o atributo pejorativo de “País de maricas”, devido ao luto generalizado a tomar o povo. Não restam dúvidas hoje – quando a Nação alquebrada pelo demolidor número de mais de 400 mil mortos, cai desolada – sobre a investida bolsonarista desfavorável à vida. O mandatário parece alimentar algum tipo de obsessão funesta e singular de desprezo ao semelhante — bem descrita na literatura psiquiátrica. 

Para ele, é natural que “os fracos” tombem pelo caminho. 30 mil, 100 mil, 400 mil? “Paciência, fazer o que? É da vida”. Vida e morte ao alcance do dedo do “mito”. Foi ele, no topo da hierarquia de decisões de Estado, quem retardou recursos e deliberações para o enfrentamento da crise no Amazonas, levando pacientes a morrerem por asfixia, em um colapso do sistema sem precedentes. Foi ele quem repudiou campanhas de prevenção. Quem cancelou leitos de UTIs do SUS, quando mais eram necessários. Quem politizou a pandemia. 

Quem deixou apodrecer até o vencimento estoques de testes da doença, condenando o Brasil a ter o mais baixo índice de testagem do mundo (apenas 13,6% da população), segundo o “Our World Data” da Universidade de Oxford. Bolsonaro, em pessoa, não aceitou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, ainda em meados do ano passado. Reclamou da pressa sobre o assunto. Disseminou fake news. Promoveu aglomerações. Pressionou, exigiu e obrigou ministros a defenderem a hidroxicloroquina. Fez o diabo. 

Pesquisadores da Universidade de Michigan e da FGV elaboraram um estudo, denominado “Global Health Security Index”, que integrou o relatório comparativo das políticas globais anti-covid, e constataram que Bolsonaro usou de seus poderes constitucionais para negligenciar a pandemia e boicotar estados e municípios envolvidos no combate à doença. 

Por quatro vezes, em meio à pandemia, trocou o ministro da Saúde, algo inédito na história. Interferiu como pôde nos protocolos de tratamento, na forma de divulgação dos dados, nas escolhas de contratos e caminhos. Rejeitou nada menos que 11 ofertas de vacinas da Covid — e isso considerando apenas os episódios em que há comprovação documental de tal omissão. Por duas vezes recusou a participação nacional no consórcio da Covax Facility para aquisições de imunizantes a preços mais em conta. 

E, quando finalmente o fez, encomendou doses para apenas 10% da população, o menor limite de pedido possível. Uma das maiores publicações científicas do mundo, a Revista “Nature”, definiu, com todas as letras, sem ressalvas, que Jair Bolsonaro “provocou uma crise épica na Saúde” com a sua postura anticientífica e de falta de diálogo junto aos especialistas. 

Para a “Nature”, enquanto o Brasil e o mundo enfrentavam a “fase mais negra” da doença, o presidente da maior nação latino-americana passeava de Jet Ski, recusava-se a usar máscara, desprezava a dor alheia e reclamava do isolamento. “Não há exemplo paralelo de tamanha omissão no planeta”. Outro artigo, da “The Lancet”, revista médica de maior alcance internacional, aponta erros crassos na subutilização dos fundos de emergência de R$ 44,2 bilhões e o desmantelamento técnico da estrutura de enfrentamento do Ministério da Saúde, com a substituição de especialistas por militares sem a devida competência. 

A publicação “Science” relaciona o número de mortes no Brasil ao descompasso das ações federais. A comunidade global já tem o seu veredicto: Bolsonaro é um genocida em escala, de perigo crescente. Assombrosa é a espera de sua punição pelas autoridades competentes. A CPI da Covid inicia, com certo atraso, as investigações. O “mito” Messias, como qualquer réu em vias de prisão, alega não ter feito nada de errado. Ou não percebe, ou escolhe o papel de sonso. Tenta procrastinar os trabalhos. Recorre a ardis nos tribunais para dificultar a evolução das sessões e faz manobras paralelas buscando tirar o foco do assunto. 

O que move o presidente, para variar, é única e exclusivamente o desejo de se perpetuar na cadeira do Planalto. E, por incrível que possa parecer, conta com a morte como a sua grande aliada. Ao menos acredita nisso. Senão, vejamos: segundo ele próprio prega na sua cartilha de encíclicas do apocalipse, a melhor solução vem por via de uma contaminação de 70% das pessoas para atingir a esperada imunidade de rebanho. 

É o ideal, prega ele. Vacinação, no ritmo trôpego a seguir, não contará com a sua ajuda, nem mesmo por meio de campanhas destacando a importância da adesão. Afinal, o temor acalentado no Planalto é sobre o risco de muitos virarem jacaré. No plano destrutivo do mandatário, o melhor a fazer é armar, literalmente, a população e retirar controles de segurança — como os radares das estradas e as cadeirinhas de proteção dos bebês nos carros. Nessas deliberações expõe o grau de responsabilidade devotado aos eleitores que o colocaram no cargo. Anote qualquer decisão do Messias de araque.

Invariavelmente, irá comprovar o pendor irrefreável ao morticínio. Pedagógico seu comportamento. Grilagem, liberação de garimpos, invasão de terras, confrontos indígenas, incitação ao caos nas ruas estão juntos na mesma pajelança assassina. No momento, é necessário foco nas investigações da Comissão de Inquérito do Congresso. Na grotesca versão oficial, já disse Bolsonaro, “a melhor vacina contra a Covid-19 é o próprio coronavírus”. 

Talvez contra os seus 23 pecados capitais, a CPI da Covid lhe caia bem. O culto ao negacionismo está com os dias contados. E nem mesmo um salvador da pátria pode escapar do julgamento por tamanho mal. Até porque, como ele mesmo afirmou: é Messias, mas não faz milagres. No Juízo Final, as 400 mil mortes sairão bem caras ao capitão.

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TERRENO DE COMBATE

Alon Feuerwerker, Análise Política

Governos que perdem a maioria em casas do Congresso passam a ser alvo de uma “caça à raposa”. E a situação fica pior quando sofrem a ofensiva coordenada entre a oposição e os mecanismos de formação da opinião pública. Parece ser o caso agora das relações entre a administração Jair Bolsonaro e o Senado, como se está vendo nesta etapa inicial dos trabalhos da CPI da Covid-19.

Uma interpretação é o governo ter bobeado, pois em tese teria maioria no Senado, mas permitiu que a carruagem corresse solta até as bancadas indicarem, para compor a CPI, gente que faz oposição. Outra interpretação, talvez mais realista, deduz que o governo cuidou de não perder a Câmara, onde começam os processos de impeachment, e descuidou da outra casa. Onde, na real, já estaria hoje em minoria.

Que siga o debate, mas agora o teatro está instalado e a CPI opera numa correlação de forças extremamente desfavorável a Bolsonaro. Bem num momento em que a média móvel de casos e mortes começa a descer a ladeira (continuará?), a vacinação anda e os números que saem todo dia da economia não são tão ruins quanto eram as previsões. Inclusive porque EUA e China aceleram. 

E isso em algum grau nos puxa. Mesmo que não seja muito, já é um refresco.

Um efeito político já contratado na CPI é garantir que se prolongue no tempo o abastecimento de noticiário negativo, sempre um problema para o candidato à reeleição. Mas esse será um transtorno administrável se o governismo se mantiver protegido na Câmara, que tem o botão capaz de implodir a edificação. 

E talvez não seja de todo ruim para o oficialismo que o relator da CPI e o presidente da Câmara sejam do mesmo estado e ferozes adversários. Pois toda política é em boa medida local.

Mas, em última instância, é sempre o próprio governo que precisa lutar. E CPIs são mesmo terrenos de combate. E em CPIs de poucos membros, qualquer voto pode virar o placar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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BOLSONARO OFERECE 400 MIL MORTOS AO LÚMPEN-MILICIANATO

Reinaldo Azevedo, Folha de S.Paulo

A instalação da CPI da Covid mexe com os bofes de Jair Bolsonaro. Agride o seu senso de onipotência —injustificado segundo um crivo objetivo, mas compreensível se visto por lentes clínicas. O golpista de primeira hora, que nunca precisou de comissão de inquérito ou de oposição organizada para pregar o rompimento da ordem —como provam os atos antidemocráticos que patrocinou já em 2019—, não aceita que sua obra seja questionada. Os, até agora, mais de 400 mil mortos são o seu grande legado ao lúmpen-milicianato que o aplaude.

A política sempre deve ter precedência na análise da vida pública, embora os dados de personalidade não possam jamais ser ignorados. Uma leitura mais aberta de Maquiavel sugere que a “fortuna” e a “virtù” —a história herdada que condiciona alternativas e as escolhas ditadas pela personalidade— também podem ter um enlace negativo. Em vez de surgir o Príncipe, eis que aparece o ogro, que a democracia tem de esconjurar. Ou morreremos todos.

Assim, é claro que, ao não arredar um milímetro das posições as mais estúpidas e reacionárias, que muitos enxergam danosas e contraproducentes para seu próprio futuro político, Bolsonaro age com cálculo. Ele deu voz a esse público que existia nas sombras; que se esgueirava nos escuros da história; que se acoitava nos desvãos nunca visitados —não de modo suficiente ao menos— pela teoria política.

Há nesses cafofos mentais um potencial de ressentimento odiento; de rancor acumulado contra virtudes vistas como inalcançáveis —pouco importando se as limitações são objetivas ou subjetivas—; de repulsa a tudo o que escapa de suas escolhas, tidas como valores universais. Encontram no presidente a sua voz.

Essa esfera de sentimentos e sensações é infensa a dados da realidade fática. A evidência do erro só reforça a convicção. Daí a fúria patológica contra a imprensa, por exemplo.

Querem uma prova? A crítica ao distanciamento social, sob a alegação de prejuízos à economia, expressa uma racionalidade torta. É um erro, sim, mas faz sentido. O que explica, no entanto, a repulsa de muitos à máscara senão a reação dos que se sentem tolhidos na sua vontade e reprimidos por um mundo que não compreendem, por valores que lhes são distantes, por um discurso que entendem ser só afetação e hipocrisia?

Na arte e na vida, esse caldo alimentou os fascismos. Leiam “M, o Filho do Século”, de Antonio Scurati, sobre os primeiros anos da trajetória de Mussolini, o trânsfuga. Vejam ou revejam o filme “Lacombe Lucien”, de Louis Male, e percebam como o oprimido pode encontrar no peito do opressor o regaço para a sua ascese, ainda que destrutiva.

Bolsonaro pode não saber exatamente o nome do que pratica —embora viva cercado de alguns que o sabem—, mas já percebeu ter um público cativo —em mais de um sentido. O que um olhar objetivo e crítico apontaria como um tiro no pé é precisamente a seiva, vertida como fel, que plasma em eleitorado os ódios que ele açula e alimenta. E, por essa razão, o presidente não desiste nem recua nunca. Aí está a sua fortuna —este texto está pleno de palavras polissêmicas.Não é fácil a um outro qualquer liderar esse lúmpen-milicianato —presente em todos os setores e classes, já que não é o interesse econômico que une os fanáticos, mas uma espécie de identidade espiritual. Embora esteja consciente do jogo, Bolsonaro é um homem, a seu modo, sincero. Está plenamente convencido das coisas estúpidas que diz e faz. É o que a sua inteligência alcança. Creiam: nem os filhos são seus herdeiros naturais. Já pensam demais, ainda que a seu modo.

Nesse particular sentido, raramente houve no Brasil um representante que expressasse com tanta fidelidade o universo mental dos seus representados e que estivesse tão à altura do momento. Ele soube pôr as suas características pessoais a serviço da terra que a Lava Jato arrasou. É emblemático que, neste momento, o senador Renan Calheiros —uma das caças de predileção de procuradores— seja o homem mais temido pelo presidente e pelos fascistoides que ele mobiliza.

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SOBRE OS MEIOS E OS MODOS

Jorrge Henrique Cartaxo, OS DIVERGENTES

Parece não haver lugar para a decência no Brasil. Além dos desencontros diários do presidente Bolsonaro com a língua portuguesa, o bom senso e a empatia, não raro seus ministros inundam a República com persecutórias aleivosias. O camelô da 25 de março que faz as vezes de ministro da Economia, o personagem de Dante, Paulo Guedes, durante uma reunião do Conselho de Saúde Suplementar na última terça-feira – que ele não sabia que estava sendo gravada – expressou, sem receios, todo o seu olhar sinistro sobre o Brasil, os brasileiros e o nosso tenebroso tempo. “Nas universidades públicas ensinam Paulo Freire, sexo para crianças de 5 anos e há maconha e bebidas nas unidades de ensino mantidas pelo governo”, professorou Paulo Guedes emulando as mais “eruditas” teses bolsonaristas. E num araujiano assombro diplomático acusou os chineses de terem inventado o coronavírus e uma vacina menos efetiva do que a vacina americana. “Os americanos têm 100 anos de investimento em pesquisa. Os caras falam: qual é o vírus? É esse? Tá bom. Decodifica. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor que as outras. Então, vamos acreditar no setor privado”, vociferou Guedes, bolsonaristicamente, emporcalhando os fatos e a inteligência. Outras aberrações animaram a confraria palaciana que contou com a presença, dentre outros, dos ministros Luiz Eduardo Ramos, Marcelo Queiroga e Anderson Torres.

As insanidades dessa reunião foram tamanhas que se acredita que as ofensas primitivas do ministro Paulo Guedes, vazadas deliberadamente, cumprem uma estratégia no sentido de construir uma nova crise diante dos prováveis avanços da CPI da Covid instalada no início da semana no Senado. “Olha aí uma estratégia já até desbotada no governo federal. Sempre que um ministro não consegue cumprir o prometido ao povo brasileiro, para desviar a atenção do seu fracasso, copia uma das narrativas cretinas dos bolsonaristas ‘terraplanistas’ e soltam na mídia como se fosse uma ‘pérola’,” disse o deputado Fausto Pinto, presidente da Frente Parlamentar Brasil-China, formada por cerca de 270 deputados e senadores.

Bolsonaro, desde a sua posse na presidência da República, vem ofendendo a vida, a dignidade humana, a razão, a ciência, a decência, as instituições, a democracia, a Nação e a República. As tensões, artificiais e reais, sempre animaram o não-fazer do governo Bolsonaro. Do escandaloso descaso com a pandemia, passando pela sua evidente cumplicidade com os crimes ambientais, até as suas constantes sinalizações de que, a qualquer tempo, convocará as Forças Armadas para conter os seus fantasmas, Bolsonaro nunca sentiu, de maneira tão evidente, que o poder não está e nem nunca esteve exatamente em suas mãos.

As CPIs, no Brasil, costumam não dar em nada. É sempre plausível! Mas podem abrir as portas para o impeachment do presidente da República, como aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor. Podem também imobilizar o governo, paralisar as aspirações políticas e eleitorais do presidente em exercício, como aconteceu com o ex-presidente Michel Temer que, para conter uma ameaça de um eventual impeachment ou da instalação de uma CPI, não teve condições de se candidatar para um segundo mandato.

Um outro fantasma de Bolsonaro, ainda não devidamente valorizado pela mídia, é a eventual candidatura do senador Tasso Jereissati à presidência da República. Lula, Ciro, Eduardo Leite, Doria e Huck não assustam exatamente a reeleição de Bolsonaro. Ao seu modo, cada um desses nomes evidencia suas fragilidades, ainda que o nome de Ciro Gomes apresente significativas vantagens e qualidades diante dos demais. Já o senador Tasso Jereissati é um personagem diferente. Ele jamais bateu à porta do poder ou empurrou portões de Palácios para se fazer presente na cena pública com o devido destaque. Em 1986, foi convidado para ser candidato ao governo do Ceará, inaugurando a Nova República cearense. Desde então, tornou-se uma das vozes mais respeitadas e acreditadas no universo político do País.

Talvez a única vez que ele tenha se colocado, deliberadamente, à frente de uma disputa política tensa em seu partido, tenha sido na sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, Tasso sabia que o senador José Serra, que empurrava a porta do Palácio no momento, não teria condições de vencer o candidato do PT. Ele sabia que a elite paulista e o mundo empresarial temiam, por motivos justos ou não, o nome de Serra na presidência da República. Tasso seria o único nome tucano, naquele momento, com chances reais de vencer o Lula e por isso lutou pela indicação na legenda. Ele perdeu no PSDB e o partido perdeu o poder pelas urnas. Essa história deve ser mais rica e bem mais interessante, mas, objetivamente, foi isso o que aconteceu.

Agora, assim como em 1986, Tasso está sendo convocado para ser o candidato que daria qualidade à disputa presidencial, que seria apenas medíocre entre Lula e Bolsonaro. Claro, ainda é muito cedo para previsões. Mas o senador Tasso Jereissati jamais deixaria o seu nome ser colocado como presidenciável e menos ainda se colocaria a disposição da sua legenda, se as conversas, avaliações, possibilidades, articulações, meios e modos, já não estivessem devidamente analisados.

São boas as razões para as apreensões de Bolsonaro e dos bolsonaristas. O senador Jereissati não se fez como homem público tangendo plateias ou sujando os tapetes. De um modo geral, abrem a porta e o convidam. A conferir!  

*Jorge Henrique Cartaxo, jornalista, cientista político e historiador

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TENSÃO POLÍTICA E REFORMAS

Rogério Furquim Werneck, O GLOBO

Não falta quem nutra a fantasia de que, nos próximos meses, antes da completa mobilização de Brasília com as eleições de 2022, ainda haverá uma janela de tranquilidade política que permitirá engajamento efetivo do Congresso no avanço do programa de reformas. O mais provável, contudo, é que o paralisante clima de alta tensão política que hoje se vê no País perdure por muitos meses mais.

Com base em longo histórico de CPIs criadas com grande estardalhaço e que acabaram dando em nada, vem sendo arguido, agora, que a recém-instalada CPI da Pandemia pode perfeitamente se revelar um completo fiasco. Mas a verdade é que as peculiaridades dessa CPI tornam pouco crível o prognóstico de que, mais uma vez, a montanha acabará por parir um rato.

É preciso ter em conta que nesse momento dramático da evolução da pandemia e de indignação generalizada, com as proporções da devastação e a lentidão com que avança a vacinação, o objeto do inquérito permanecerá sendo uma questão crucial, de fácil entendimento, na qual a grande maioria da população terá grande interesse.

É bom também ter em mente que, tendo se permitido desmandos de toda ordem no enfrentamento da pandemia, o governo já não consegue esconder seu alarme com a instalação da CPI e com os danos políticos que dela poderão advir. E que, ao se deixar levar por reações completamente destrambelhadas, vem garantindo à CPI uma caixa de ressonância de enorme potência que, a mídia, por si só, jamais conseguiria replicar.

Contando com não mais que quatro senadores governistas, entre os 11 membros da Comissão Parlamentar de Inquérito, o Planalto não teve melhor ideia do que conseguir que um juiz federal de primeira instância concedesse grotesca liminar, determinando ao Senado que não permitisse que o senador Renan Calheiros fosse “eleito” relator da CPI, quando, de fato, a escolha do relator não é feita por eleição, mas pelo presidente da Comissão.

Ao ver a liminar solenemente ignorada, o senador Flávio Bolsonaro voltou suas baterias contra o presidente do Senado, acusando-o de irresponsabilidade e “ingratidão”, por ter acatado a decisão do Supremo que determinava a criação da CPI e desacatado a do juiz de primeira instância que impedia a “eleição” do relator.

Na situação em que está, não será com hostilização ostensiva do presidente do Senado e do relator da CPI que o Planalto conseguirá conter os danos políticos que a comissão de inquérito poderá lhe trazer.

Entre as reações desastradas à instalação da CPI, merece também destaque a impensada divulgação, pela “sala de guerra” montada no Planalto, de longa lista de nada menos que 23 flancos distintos pelos quais a postura do governo durante a pandemia poderia vir a sofrer censura na CPI.

Com justa razão, a lista foi logo vista no Senado como um roteiro de confissões de culpa no qual a comissão de inquérito poderia se basear, de início, para organizar o trabalho que tem pela frente.

Tudo indica que, ao longo dos próximos meses, a relação entre o Planalto e o Congresso estará dominada pelos atritos advindos da CPI. A composição da Comissão deixou mais do que claro o caráter flagrantemente minoritário do apoio parlamentar efetivo com que conta o governo.

Tendo isso em mente, alguém acredita mesmo que, a 17 meses das eleições de 2022, o Planalto terá condições de conduzir com um mínimo de sucesso a aprovação de reformas econômicas complexas no Congresso?

É dessa perspectiva que se deve avaliar a pretensão do presidente da Câmara, Arthur Lira, de retomar o esforço de aprovação, ainda que fatiada, da reforma tributária. Entre as muitas razões para ceticismo, não se pode deixar de mencionar que esta é uma agenda sobre a qual o governo tem mantido posições especialmente confusas.

É difícil que, logo agora, com o Ministério da Economia fragilizado, e já privado da colaboração da competente Vanessa Canado, o governo consiga se livrar das suas confusões e dar coerência a uma discussão séria sobre reforma tributária no Congresso.

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VIÉS DE IMUNIDADE

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo

Contra os vieses lutam os próprios deuses em vão. Uma das ilusões cognitivas mais danosas e esquisitas de que se tem notícia é a falácia do planejamento, que pode ser definida como a tendência de pessoas e instituições de subestimar o tempo e os recursos necessários para a realização de um projeto.

Ela é danosa porque leva governos, empresas e indivíduos a comprometer-se com orçamentos e cronogramas que não conseguirão cumprir, incorrendo em custos adicionais. E é esquisita porque, mesmo sabendo que o viés existe —qual governo ignora que orçamentos estouram e obras atrasam?—, temos enorme dificuldade para compensá-lo —e é por isso que orçamentos continuam estourando e obras atrasando.

Algo parecido ocorre em relação à Covid-19. Ao menos desde outubro, quando países europeus começaram a apresentar expressivos aumentos de casos, sabíamos que segundas ondas eram possíveis. Aqui no Brasil, mesmo cientes desse perigo, escolhemos ignorá-lo e relaxamos os cuidados assim que os números da primeira onda trouxeram um alívio.

Não somos só nós. Os indianos, mesmo tendo assistido ao que aconteceu na Europa, nos EUA e no Brasil, julgaram-se imunes ao problema e decretaram a volta à normalidade antes da hora. O resultado é a tragédia numa escala que ainda não havíamos visto.

A falácia do planejamento foi identificada pela dupla de psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky e é uma das modalidades do viés de otimismo que afeta nossa espécie quando julgamos nossas próprias capacidades. Mesmo sabendo que não há razões objetivas para tal, nos comportamos como se operássemos sempre acima da média e não precisássemos nos preocupar com os cenários mais negativos.

O melhor modo de escapar ao excesso de otimismo é incorporar o princípio da mediocridade. Não temos nada de especial. Se em algum lugar do mundo houve terceira onda, temos de estar prontos para ela.

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ESTÃO GOSTANDO DO PALHAÇO ?

Ruy Castro, Folha de S.Paulo

Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que “livro é coisa de rico”. E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.

Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de ficar calado. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por “querer viver 100, 120, 130 anos” e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque “quem muito pergunta ouve o que não quer”.

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

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QUATROCENTOS MIL CADÁVARES REVELAM PARTE DO QUE SOMOS

Do Blog do Noblat, VEJA

Pensar não dói

Doze meses e 401 mil mortos depois do início da pandemia no Brasil, passou da hora de refletir por que nos comportamos de maneira tão conformada e indiferente diante do maior cataclismo que se abateu sobre o país em pouco mais de um século. Porque é disso que se trata e que, aparentemente, nos recusamos a ver.

Um em cada cinco óbitos notificados desde março de 2020 se deve à doença. Foram 76 dias para ir de 200 mil a 300 mil mortos, e apenas 36 dias para chegar aos 400 mil. O Brasil é o segundo país do mundo com maior número de mortos. Em uma lista de 52, é o 22º em doses de vacinas aplicadas a cada 100 habitantes. 

O governo do presidente Jair  Bolsonaro, e dos militares paraquedistas que ocupam cargos estratégicos, tem a maior parcela de culpa por tantas mortes, só abaixo da do vírus letal. Deu passe livre à Covid-19 para que ela circulasse sem barreiras, matando os que estivessem marcados para morrer (e daí?).

Bolsonaro estava cansado de saber que não seria uma gripezinha. Sabia, porque lhe disseram, que se nada fosse feito, em dezembro último o número de mortos bateria a casa dos 200 mil (mas ele não é coveiro, não é mesmo?). E que sem isolamento social e vacinas, a mortandade só faria aumentar, e seguirá aumentando.

Não foi por engano, incúria ou ignorância, pois, que ele jogou suas fichas na arriscada aposta de que a pandemia seria contida por ela mesmo quando 70% da população fossem infectadas. Entre salvar os mais vulneráveis ou salvar o seu governo ameaçado pela recessão econômica, preferiu a última e falsa opção.

Pense se Bolsonaro tivesse feito o contrário. Se aos primeiros sinais da tragédia, ocupasse uma cadeia nacional de rádio e de televisão para dizer algo parecido com: a partir deste momento, só vidas importam. Diferenças políticas e ideológicas ficam suspensas. Convoco todos os brasileiros a lutar contra a morte.

E, no comando de um gabinete de crise formado pelos maiores especialistas do país no assunto, se pusesse à frente de todas as ações contra a doença sem poupar recursos, viajando pelo país a conferir o resultado das medidas adotadas, e tendo uma palavra de conforto a oferecer. Quem o venceria no ano que vem?

Mas, convenhamos, Bolsonaro não seria o que de fato é, um homem rude, mau, oportunista, interessado unicamente no próprio destino e no destino de sua prole, se tivesse agido de maneira diferente. Muito menos teria sido eleito se não fosse um espelho da parcela expressiva dos brasileiros que votaram nele.

Bolsonaro passará, e quanto mais rápido melhor para todos. Parte do que somos… Infelizmente não.

Oposição torce para que Bolsonaro siga desafiando a morte

Assim é se lhe parece

Ministro que toma vacina escondido. Ministro que acusa o principal parceiro comercial do país de exportar vírus. Presidente que se recusa a usar máscara, promove aglomerações, acusa governadores de roubar o dinheiro da saúde, e não se vacina…

Tudo isso será esquecido ao confirmarem-se as previsões dos sábios que raramente acertam de que a economia, no ano que vem, dará sinais de recuperação e de que a Covid-19 estará sob controle, incorporada de vez ao calendário das doenças infecciosas?

Bolsonaro e seus dependentes desejam que sim, essa seria a única maneira de permanecerem mais quatro anos no poder. Presidente da República, aqui, sempre se reelege. Os que querem vê-los pelas costas admitem em voz baixa que isso pode acontecer.

Contam para que não aconteça com os inevitáveis erros que Bolsonaro cometerá até lá. É da natureza dele arriscar-se em saltos mortais de grandes alturas sem rede, não dar ouvidos a auxiliares que dizem o contrário do que ele pensa, e só confiar nos filhos.

Por mais que procure mostrar-se simpático, próximo dos seus devotos e apareça sempre sorrindo, é um homem triste, angustiado, que enfrenta a solidão do poder com crescentes dificuldades. Uma pessoa assim está sujeita a muitos erros.

Esta semana, outra vez, ministros preocupados com a situação de Bolsonaro voltaram a pressioná-lo para que mude de comportamento, seja mais prudente, se exponha menos e dê prioridade à compra de vacinas. Ele respondeu que sabe o que faz.

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ESTRATÉGIAS PARA NÃO REPETIR O MAIOR ERRO DA ELEIÇÃO DE 2018

Fernando Abrucio, Valor Econômico

As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais.

Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.

Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento político.

Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram completamente ignoradas.

Uma lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da República.

O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o setor – o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.

O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.

Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais colocado em questão durante a campanha.

Há um terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.

O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido contrário.

A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.

A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo debate público.

Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.

Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?

Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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DESCARTES E A REFORMA TRIBUTÁRIA

Murillo de Aragão, VEJA

A reforma tributária deverá ganhar novo impulso no Congresso, já que está prevista para os próximos dias a apresentação de um relatório sobre o tema. O que devemos esperar desse movimento? Podemos ter sérias expectativas sobre a aprovação da proposta?

Em primeiro lugar, o consenso em torno da questão está longe de ser alcançado. Existem muitos atores relevantes com posições divergentes. Por exemplo, o setor de serviços não concorda com a taxação proposta. O governo federal não quer perder a receita obtida por contribuições não partilhadas com estados e municípios.

Estados que ganham com o atual ICMS não querem perder com o novo imposto sobre valor agregado (IVA). Governadores querem compensar as perdas decorrentes das eventuais mudanças, mas a União não quer bancar essas perdas.

Burocratas não querem uma radical simplificação do sistema, o que acabaria esvaziando o papel de fiscais, auditores etc. Como disse um anônimo: a burocracia aumenta para atender aos interesses do aumento da burocracia.

O setor empresarial está dividido. Alguns temem perder isenções e renúncias; outros querem reduzir a burocracia infernal. A equipe econômica quer implementar uma reforma por fases, começando pelo IVA e chegando ao IPI e ao imposto de renda de pessoas jurídicas. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), também defende que a reforma seja feita por partes.

“Falta consciência social sobre a necessidade de acabar com benefícios e injustiças do nosso sistema”

Como resolver o imbróglio? Vamos pensar em Descartes. O primeiro ponto é que tudo deve ser questionado e não deve existir nenhuma vaca sagrada no meio do caminho. O segundo ponto é dividir o problema em tantas parcelas quanto for possível, para facilitar a sua resolução.

Prosseguindo com Descartes, deve-se começar tratando dos itens mais fáceis e pouco a pouco ir avançando sobre o que é mais complexo. Importante também examinar os pontos de consenso, caso da excessiva burocracia do sistema. Simplificá-­la é um excepcional começo. Por fim, é preciso fazer enumerações completas e revisões gerais, buscando a certeza de não ter omitido nenhum aspecto do problema.

Voltando às perguntas iniciais, vou tentar respondê-las. Quanto às expectativas em torno do sucesso de uma reforma tributária, elas devem ser moderadas. Até mesmo por não sabermos o que será proposto, nem como será, nem em que tempo. Nem por isso devemos deixar de tentar estimulá-la.

Com relação a sua aprovação, devemos considerar que o tema continuará a ser debatido por algum tempo. Ainda falta conscientização social sobre a importância da reforma, ou seja, da necessidade de acabar com benefícios e injustiças existentes em nosso sistema tributário. Nesse sentido, caberia ao governo começar a reforma tributária dentro do próprio sistema — a reforma da porta para dentro —, a fim de dar o bom exemplo.

Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736

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VOANDO POR INSTRUMENTOS

César Felício, Valor Econômico

 “Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor.” A julgar pelas ações do governo Bolsonaro e pela sua devoção ao Livro Sagrado, o lema de sua administração deveria ser esta constatação que está em Eclesiastes 1:18, e não o sempre citado João 8:32 (“Conhecereis a verdade e ela vos libertará”). O aumento do conhecimento, com suas incômodas revelações, parece torturar a administração federal, em que desde seu início declarou guerra aos radares, questionou o mapeamento da devastação na Amazônia, lançou suspeitas sobre as estatísticas de desemprego, tentou interferir na contagem de mortos da pandemia de covid-19 e por fim sabotou o censo demográfico que deveria ter sido feito em 2020 e talvez só ocorra em 2023.

Vivemos tempos estranhos, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio Mello, que no Supremo Tribunal Federal acatou anteontem um pedido de liminar do governo do Maranhão para obrigar a realização do censo ainda este ano. Não dá para arriscar prognóstico sobre o que o plenário do STF fará em relação a essa liminar, já na próxima semana.

O Supremo tornou-se o escoadouro último de todos os contenciosos da sociedade e cabe a Marco Aurélio, por exemplo, decidir tanto sobre a realização do censo quanto sobre o peso da embalagem dos sacos de cimento produzidos no Espírito Santo. Executivo e Legislativo, os Poderes a quem cabe a definição e a gestão do Orçamento, estabeleceram que o censo não é prioridade, embora a sua realização decenal esteja prevista em lei.

O governo deve usar a pandemia como argumento para o cancelamento do censo, mas a inicial apresentada pelo governo do Maranhão mostra que fechar o visor da sociedade sobre o que nós nos tornamos na era Bolsonaro parece ser deliberado.

Lá se historia que Bolsonaro assumiu com uma previsão orçamentária de R$ 3,4 bilhões para a consulta. A presidência do IBGE foi trocada em fevereiro de 2019, a diretoria de pesquisas substituída em maio deste ano e em junho foi apresentada a redução do censo, de 112 para 76 perguntas no questionário da amostra e de 34 para 25 no formulário básico. Com isso diminuiu-se a verba para R$ 2,3 bilhões. A dupla formada pelo relator do Orçamento e o ministro da Economia fizeram o resto do serviço este ano para deixar somente R$ 53 milhões em recursos.

Se em 2021 pareceu tão pouco importante realizar o censo, certamente em 2022, um ano eleitoral, haverá para governo e base parlamentar gastos mais relevantes do que fazer a medição. Não realizá-lo agora é adiá-lo mais dois anos, e não um ano só.

Os efeitos mais graves do atraso do censo são bem conhecidos. Prejudica políticas públicas que envolvam alocação de recursos federais de modo geral. No universo de danos há um, entretanto, que mesmo não sendo nem de longe o mais importante, está encoberto e causa dano político: os estragos nas pesquisas de opinião pública, particularmente as eleitorais.

As pesquisas precisam definir um universo para iniciar a amostra. Entrevistar na medida certa pessoas que retratem no microcosmo a diversidade social que permita transpor os achados da parte para o todo.

Mesmo sem atraso do censo isso é difícil no Brasil, país onde a realidade social é porosa, com variações bruscas em curto espaço de tempo. Na escuridão proporcionada pelo governo Bolsonaro, todos vão ter que tatear.

“Qual o percentual de evangélicos que existe atualmente no Brasil? Qual exatamente a porcentagem da população que se autodeclara preta? Qual o tamanho da classe C? O prejuízo é enorme”, comenta o diretor científico do Ipespe, Antonio Lavareda.

Como se sabe que o presidente Jair Bolsonaro tem mais aceitação entre os evangélicos e menos entre os que se autodeclaram pretos; há viés para todos os gostos nos levantamentos feitos.

“Nossos modelos vão ficando defasados. Outro exemplo é o perfil demográfico. A população brasileira está envelhecendo. A estimativa de jovens pode estar superdimensionada nas pesquisas”, diz Mauricio Moura, do Instituto Ideia Big Data.

Uma estratégia para contornar essa dificuldade é limitar a amostra apenas aos dados para os quais há estimativas oficiais da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (Pnad), que não foi interrompida. Mas ainda assim a base é movediça. “A Pnad também é uma pesquisa, com margem de erro. Portanto, o levantamento eleitoral é uma pesquisa que toma como base outra pesquisa”, diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec, empresa de pesquisas.

A partir de uma amostra com cotas mais reduzidas do universo social, pesquisas como a do Ipec procuram identificar nas entrevistas o total de evangélicos, por exemplo. Márcia diz que levantamentos situam a população evangélica no Brasil entre 27% e 30% na atualidade, significativamente mais do que o censo.

O problema é como submeter os achados das pesquisas a um controle para se saber se há ou não problemas no universo amostral. Pesquisadores como Andrei Roman, do Atlas Político, tentam fazer esse controle pelo resultado da última eleição.

Sabe-se que em 2018 Bolsonaro teve 49,8% dos votos totais no segundo turno e Haddad 40,5%. Se o total das entrevistas de uma pesquisa de hoje for feita com este percentual de eleitores que optaram por Bolsonaro e Haddad na eleição passada, a chance de se ter um quadro fidedigno da sociedade no universo pesquisado aumenta. Mas quem garante que o bolsonarista arrependido fala a verdade quando perguntado sobre seu voto há três anos? Não há controle perfeito.

“A gente calibra a pesquisa com esses controles, mas não é uma situação confortável. É difícil até explicar no exterior o grau de incerteza que existe no caso brasileiro”, diz Roman.

Voar por instrumentos é o que resta, não apenas em relação a pesquisas eleitorais, mas a qualquer tipo de pesquisa. As consequências de apostas feitas pelo governo federal desaparecem da linha do horizonte. Há loucura no método, como sempre.

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NAMORADA DE WASSEF É A AUTORA DE REQUERIMENTOS FEITOS NO PLANALTO PARA A CPI DA COVID

Malu Gaspar, O GLOBO

A assessora do Palácio do Planalto que redigiu os requerimentos apresentados por aliados de Bolsonaro na CPI da Covid, Thais Amaral Moura, é namorada de Fred Wassef, advogado da família Bolsonaro. Thais e Wassef têm sido vistos juntos em público desde fevereiro, em jantares e eventos do governo, e não escondem o relacionamento. 

Ela é assessora especial da Secretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência da República desde janeiro deste ano, quando foi transferida do Ministério do Turismo para a secretaria de Governo. 

Segundo o portal da Transparência, Thais detém um DAS.5, segundo mais alto nível para os cargos comissionados, atrás apenas do DAS 6, remuneração normalmente reservada a secretários e ministros.  Sua última remuneração líquida foi de R$ 16.240,60.

O GLOBO revelou na quarta-feira que foi Thais quem redigiu sete dos requerimentos apresentados à CPI pelos senadores Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Melo (PL-SC). A identificação de autoria  aparece nos metadados dos documentos, registro que indica data e hora em que o arquivo foi criado, quem o criou e quantas modificações foram feitas. 

Os requerimentos escritos por Thais pediam a convocação de médicos defensores do uso de cloroquina no tratamento da Covid-19 para depor na CPI, além do prefeito de Chapecó, João Rodrigues, entusiasta do tratamento precoce. Com os depoimentos, o governo pretendia mostrar que o discurso de Bolsonaro a favor da  coloroquina e da ivermectina se baseia na opinião de especialistas. Esses requerimentos específicos ainda não foram avaliados pela CPI.

Procurada ontem, por telefone, Thais disse que não comentaria nem os requerimentos e nem o relacionamento com Wassef. Afirmou apenas  que, como servidora, não pode falar sobre assuntos internos do governo. Além de já ter defendido Jair Bolsonaro, Wassef advoga para dois dos cinco filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro e  Jair Renan. 

Depois de um período de ostracismo forçado, quando se descobriu que  Fabrício Queiroz se escondia em seu sítio em Atibaia,  Wassef voltou a ser visto com frequência em Brasília mais recentemente. 

Ele é visita frequente no Palácio do Alvorada e gosta de se mostrar influente junto ao clã Bolsonaro. “Nada mudou na minha relação com a família. Toda a imprensa sabe que sou advogado do Flávio e família e me tratam como tal”,  declarou à revista Época em março passado. 

Já Thais, formada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, chegou a Brasília no início do governo Bolsonaro para trabalhar como chefe de parcerias e projetos na Embratur. Depois, foi diretora substituta no Departamento de Políticas e Ações Integradas e assessora especial do Ministro do Turismo. 

Ela já estava na assessora na secretaria de governo quando a nova ministra, Flávia Arruda, assumiu o comando da pasta. No Palácio do Planalto, sua indicação para o cargo é atribuída ao senador Flávio Bolsonaro. 

Com Mariana Carneiro

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400 MIL CPFs CANCELADOS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

Nosso Brasil, tão brasileiro, atingiu a marca de 400 mil mortos por covid-19 com um rastro de dor e tristeza e um horizonte de dúvidas e disputas políticas. “São só 400 mil CPFs cancelados, e daí?”, diria o presidente Jair Bolsonaro. Mas, por trás de cada um desses CPFs há uma vida perdida, uma família despedaçada e tantos amores desesperados.

Dos 5.570 municípios brasileiros, só 65 têm mais de 400 mil habitantes (IBGE, 2020). Logo, é como se a população inteira tivesse desaparecido em 5.505 cidades do País. Como se aquela cidade, porventura a sua, tivesse sumido do mapa, virado fantasma, em um ano de pandemia.

Diante dessa calamidade histórica, que marcará nossas vidas e a história do País para sempre, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso e o Ministério Público querem investigar, saber e informar por que, e por responsabilidade de quem, caímos nesse precipício. Para isso existem, por exemplo, as CPIs.

Há quem ataque as instituições e seus representantes, mas a história e a Nação têm o direito de saber a verdade. Goste-se ou não do senador Renan Calheiros, ou dos integrantes da CPI, do Senado ou do Congresso inteiro, eles foram eleitos e têm tanta legitimidade quanto o presidente. Bolsonaro

tinha a obrigação de combater a pandemia, mas não combateu. Eles têm o dever de investigar fatos e erros e estão investigando. O foco é a pandemia, “quem não deve não teme”.

O ex-presidente Lula foi condenado e preso pela Justiça por corrupção, mas Dilma Rousseff sofreu impeachment no Congresso, não por corrupção, mas por pedaladas fiscais e incompetência, porque a economia não resistiria a mais dois anos com ela. A corrupção é criminosa e imoral, mas há outros crimes graves de responsabilidade, que até matam brasileiros.

Como Dilma, Bolsonaro é um desastre inclusive na articulação política. Não queria a CPI, ela está aí. Não queria Renan Calheiros relator, ele é. Achou que manipularia o presidente da comissão, Omar Aziz, e ele cumpre seu papel. Tentou conquistar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e ele tem sido um magistrado. Os fatos fazem o resto. Deixam o Planalto sem defesa, em pânico, enquanto a seita bolsonarista produz dossiês apócrifos contra testemunhas e faz ameaças anônimas contra senadores.

A semana que vem será quente. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta contando como alertou o presidente para a carnificina, se o Brasil não ouvisse a OMS e a ciência. Seu sucessor Nelson Teich relatando pressões pela cloroquina. E o vexame – e as mentiras – do general Eduardo Pazuello…

O atual ministro, Marcelo Queiroga, vai admitir que o governo confiscou e depois sonegou o kit intubação, orientou torrar as vacinas com a primeira dose, sem garantia da segunda? E o respeitado almirante Barra Torres, da Anvisa, vai repetir na CPI que foi contra o uso da cloroquina contra a covid, como disse ao Estadão? (“É um risco enorme”, 20/3/2020).

O governo continua dando farta munição à CPI. No mundo inteiro, os líderes tomam orgulhosamente a vacina, mas, aqui, o chefe da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, confessa: “Tomei escondido, né, porque a orientação era para não criar caso”. O governo é contra a vacina!

O ministro Paulo Guedes diz que a China “inventou o vírus” e lamenta que a população viva tanto. Pazuello, ex-ministro da Saúde, vai ao shopping sem máscara. Em Manaus! Onde pessoas morreram sem oxigênio, sem piedade e sem governo.

E a CPI pode fazer ao presidente da República a pergunta de milhões de idiotas: por que ele estava morrendo de rir com a placa do “CPF cancelado”? Essa é a gíria dos grupos de extermínio para cada morte, logo, são 400 mil CPFs cancelados. Isso, sinceramente, não tem graça nenhuma.

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OS VALORES DE GUEDES

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

Paulo Guedes perdeu a aura de superministro, mas continua a ser o homem certo para o cargo que ocupa. Nenhum outro economista espelharia tão bem os valores e princípios do bolsonarismo. Ou a ausência deles.

Em dois anos e quatro meses no poder, Guedes já ofendeu mulheres, servidores públicos e pobres em geral. A lista de insultos voltou a crescer na terça-feira, em reunião do Conselho de Saúde Complementar.

Sem saber que estava sendo gravado, o ministro disse que “o chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a americana”. A frase criou um novo atrito diplomático com o maior parceiro comercial do Brasil.

Guedes também reclamou do envelhecimento da população, um fato que deveria ser comemorado. “Todo mundo quer viver cem anos”, resmungou, acrescentando que não haveria como atender a todos no setor público.

A queixa revela desprezo pelos idosos mais pobres e insensibilidade com o morticínio no país. Um estudo de Harvard mostrou que a pandemia reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em quase dois anos.

O ministro não pode culpar a câmera indiscreta pelo seu festival de preconceitos. Em eventos públicos, ele já fez coisas como chamar servidores de “parasitas” e dizer que a primeira-dama da França “é feia mesmo”.

Em outra palestra, apontou o que via como efeito indesejado do dólar baixo: “Empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada”. Ele sugeriu que as trabalhadoras deveriam se contentar com passeios mais modestos: “Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu”.

Na reunião de terça, Guedes reclamou que o Fies bancou a faculdade de “filho de porteiro” que tirou zero no vestibular. A história é inverossímil porque o programa exige nota mínima para conceder bolsas. Mas a mentira não é o pior da fala ministerial.

Em novembro, o jornal “El País” entrevistou Gabriella Juvenal Figueiredo, mestranda em história da arte na Espanha. Filha de um porteiro e uma doméstica, ela relatou uma vida de discriminação por estudar entre jovens da elite. “Infelizmente, tive de aprender a sobreviver ao lado dessas pessoas que te olham por cima do ombro”, disse.

Ao contar o que enfrentou, Gabriella resumiu os valores de Guedes.

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PARA PARAR DE CONTAR CADÁVARES

Vera Magalhães, O GLOBO

Há 13 meses, nós, brasileiros, contamos cadáveres. Fazemos isso com as estatísticas dos mortos por Covid-19 e no seio de nossas famílias e círculos de amizade. Não precisava ser desta maneira. Muitos dos 400 mil “CPFs cancelados” na pandemia, no linguajar chulo e desrespeitoso chancelado pelo presidente da República, poderiam estar ativos se tivéssemos um governo decente. Não digo nem competente ou eficiente. É um mínimo de decência que falta a Jair Bolsonaro e a seu escrete mortífero.

O que fazer para atenuar essa rotina de empilhar corpos, retroceder em todas as áreas da vida nacional, adiar o futuro e colecionar traumas? É preciso agir imediatamente, em todas as frentes possíveis. É preciso responsabilizar Bolsonaro, Eduardo Pazuello e a cadeia de comando de ambos em todas as pastas que tenham contribuído, por ação e omissão, para atrasar nossa resposta ao vírus e desmontar nossa estratégia de enfrentamento.

O Sistema Único de Saúde, a despeito de seus problemas crônicos de financiamento e atendimento, tem capilaridade única no mundo, experiência em lidar com epidemias e profissionais de saúde pública treinados, que estão mostrando, mesmo diante de toda a adversidade, abnegação, garra, fibra e compromisso com a vida.

O Plano Nacional de Imunização é um edifício de glórias para o Brasil, que nos fez erradicar doenças ao longo de décadas e mostra incrível capacidade de realizar campanhas de imunização em massa.

Obrigar os responsáveis pelo mau uso do SUS e o desmonte do PNI a responder na Justiça é algo para já. Pode ser feito pelo inquérito conduzido no Supremo Tribunal Federal e pela CPI da Covid. Ambos têm instrumentos para solicitar documentos, perícias, levantar gastos, ouvir a cadeia de servidores do Ministério da Saúde, estados e municípios e apontar quem são os CPFs que têm de virar réus. Isso é tarefa de agora, não de depois, senhores Arthur Lira e Rodrigo Pacheco. Se Vossas Excelências acharam que poderiam postergar uma resposta ao morticínio de brasileiros aos milhares, enquanto negociam suas emendas e projetos de interesse de pequenos grupos, só por terem ascendido ao comando do Congresso com o apoio do Planalto, a resposta é não.

Além de responsabilização, é preciso exigir de Bolsonaro, enquanto ele continua ocupando a Presidência como o pior ser humano, eleito ou biônico, que já passou por lá, que pare de cometer desatinos retóricos e administrativos diários e cumpra seu dever constitucional de proteger a vida de seus concidadãos.

Isso significa destinar todos os recursos — orçamentários, diplomáticos, de logística, administrativos e políticos — para a compra imediata de vacinas em quantidade suficiente para imunizar ao menos 70% da população apta a recebê-las. Para isso, o Ministério da Saúde tem de ser instado (pelo Congresso, pelo Supremo) a fornecer um calendário realista de chegada de vacinas, distribuição e aplicação. Isso não pode ficar para 2022. Para isso existe a Justiça, para isso existe um Congresso que tem de estar disposto a votar recursos emergenciais para a compra de imunizantes.

A terceira frente de ação cabe à sociedade. Não é compreensível a letargia com que, a cada número redondo de pessoas que se foram, colocamos tarjas pretas em nossos perfis nas redes sociais e seguimos, entre negacionistas, meio comprometidos com as medidas sanitárias ou discípulos do Átila, mas sem exercer nosso dever cívico de dar um basta a essa gestão desastrosa, única no mundo em sua conjugação de pestilência verbal, inação administrativa e incompreensão histórica do que se passa no planeta. Até quando assistiremos a esse horror e admitiremos que o presidente siga em marcha batida ao precipício, levando cada um de nós de carona?

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UMA CPI PARA A HISTÓRIA

Artigo de Fernando Gabeira

Nesta já são conhecidos os fatos sobre a responsabilidade do governo e de Bolsonaro.

A instalação da CPI da pandemia inaugura uma nova fase na política, embora não tenha efeito imediato sobre a crise sanitária em si. Acompanhei muitas CPIs no passado, mas esta tem características especiais. Não pede oposicionistas exaltados, muito menos documentos ou testemunhas bombásticos. A singularidade desta investigação é a de trabalhar com fatos conhecidos, que precisam apenas ser articulados e documentados para que a responsabilidade do governo, especificamente a de Jair Bolsonaro, fique muito clara.

Nesse sentido, a experiência dos senadores envolvidos é um dado positivo, porque, embora não se tenham destacado nesse gênero de trabalho, têm as condições necessárias para suprir lacunas que ainda existem na compreensão dessa tragédia humana.

Pela experiência passada, tendo a pensar que uma CPI nunca produz resultados jurídicos imediatos. De modo geral, seu impacto é político, as consequências jurídicas seguem um curso necessariamente mais lento.

Foi assim, por exemplo, com a CPI dos Sanguessugas. Ela derrotou a maioria dos envolvidos nas eleições de 2006, porém quase nenhum deles chegou a ser julgado nos anos que se seguiram.

Parece que o plano de trabalho da comissão vai enfocar inicialmente a questão das vacinas. É uma opção, porque nesse particular os erros repercutem em vidas perdidas e Bolsonaro tem uma posição especial. Ele foi, segundo o Le Figaro, o único presidente que resistiu às vacinas como instrumento estratégico.

Inicialmente, Bolsonaro flertou com o movimento antivacina, insinuando os perigos de efeitos colaterais. Está gravado o famoso episódio em que mencionou a possibilidade de o vacinado virar jacaré, de homem falar fino ou de crescer barbas nas mulheres. Embora não tenha sido explícito, referia-se às vacinas produzidas com a técnica de RNA mensageiro, especificamente as da Pfizer e da Moderna. Nas redes bolsonaristas, afirmava-se até que esse tipo de vacina iria alterar o DNA das pessoas.

Bolsonaro também combateu a Coronavac, por causa de sua origem, a China, e de seu intermediário no Brasil, o governador paulista, João Doria.

No capítulo dos documentos, acaba de ser noticiado que Bolsonaro recusou 11 propostas de compra de vacinas. Quem não se lembra de sua arrogância: o Brasil é um grande consumidor, os laboratórios têm de nos procurar? Como se não bastassem essas indicações para o trabalho, houve uma entrevista do ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten revelando como a incompetência impediu a compra de vacinas da Pfizer no momento em que foram oferecidas.

Isso são apenas trilhas para um dos tópicos. O próprio governo enunciou 23 acusações para as quais prepara a sua defesa, numa espécie de demonstração antecipada da própria culpa.

Outro ponto que a CPI deve examinar é o episódio de Manaus, com quase três dezenas de mortos por falta de oxigênio. O Ministério da Saúde sabia da crise e a discutia desde dezembro do ano passado. Não soube antecipar-se a ela e tentou caminhos equivocados, como o tratamento com hidroxicloroquina.

Nesse campo, a Polícia Federal (PF) já deve ter avançado um pouco, pois foi aberto inquérito a partir de determinação do STF. A CPI certamente vai munir-se desse material, mas seria interessante seguir um roteiro próprio. A pressão sobre a PF é muito grande. Recentemente foi afastado o delegado Alexandre Saraiva, por ter denunciado a cumplicidade de Ricardo Salles com madeireiros ilegais.

Num tema tão vasto, é preciso distinguir os erros que influem diretamente na morte das pessoas e no seu sofrimento. Um deles é a incompetência em abastecer o País de sedativos e relaxantes musculares, indispensáveis para a intubação. Há documentos sobre esse desleixo.

O episódio da hidroxicloroquina vai tomar semanas. Desde a importação dos insumos da Índia e a escolha dos laboratórios do Exército para processar a cloroquina até as campanhas abertas de propaganda de Bolsonaro para o uso do remédio e os ofícios do Ministério da Saúde, existe farto material, que se pode estender aos empresários que possivelmente lucraram com esses medicamentos.

Na impossibilidade de percorrer as duas dezenas de tópicos, limito-me a lembrar um deles: a mortandade nas aldeias indígenas. Pouco discutida no Brasil, é o que mais repercute no exterior, sobretudo nos processos enviados ao Tribunal Internacional.

Esse tema acabou no STF, que se incumbiu de obter do governo um comportamento compatível com o dever de proteger as diferentes etnias. O ministro Barroso tem tentado, mas seria bom ouvi-lo sobre o que não conseguiu nesse campo. Naturalmente, os líderes indígenas devem ser ouvidos e analisados os vetos de Bolsonaro a uma série de medidas que originalmente se dedicam à proteção das aldeias durante a pandemia. Isso também é documento.

Enfim, é um trabalho tão longo que não consigo sintetizá-lo aqui. Como em outras CPIs, o apoio da opinião pública será vital, mas nesta o conhecimento do tema a qualifica para exigir um trabalho sério e profundo.

Artigo publicado no jornal O Globo em 30/04/2021

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UMA HISTÓRIA INTELECTUAL DA EXPERIÊNCIA CHILENA

Alfredo Riquelme Segovia, Horizontes Democráticos

Ao reler o livro de Alberto Aggio, Democracia e socialismo: a experiência chilena, publicado pela primeira vez em 1993 e cuja terceira edição em português tenho a honra de prefaciar, reencontro a obra em que, pela primeira vez, vi se desdobrar em uma mesma narrativa explicativa a história do processo político vivido no Chile durante o governo de Salvador Allende e, ao mesmo tempo, a história das discussões que ao longo da experiência e principalmente após seu catastrófico final, tentaram dar sentido ou transformá-la em fonte de lições muito diferentes.

Há três décadas atrás e vinte anos depois da via chilena ao socialismo, agregando a escrita de uma magnífica interpretação histórica do que o Chile viveu entre 1970 e 1973, e também traçando, para isso, uma síntese da trajetória da sociedade e da política chilena durante o século XX, Alberto Aggio produziu a primeira história intelectual daquela inédita experiência política, que buscou articular legalidade e revolução, compromisso democrático e determinação, para construir o socialismo com um respaldo da população que variou de um terço a pouco menos da metade do eleitorado.

Nessa história intelectual dos debates em torno da experiência chilena, o profundo conhecimento da trajetória e das características das culturas políticas do país analisado se articula com uma compreensão extraordinária da discussão global da esquerda da época a respeito da inserção dessa experiência no então denominado processo revolucionário mundial. Aggio examina, intrinsecamente, os argumentos em torno da experiência chilena e suas lições provenientes de políticos e acadêmicos que se consideravam líderes ou intelectuais orgânicos de uma comunidade imaginada como sujeito universal de uma longa luta pelo progresso e pela igualdade dos setores mais negligenciados do mundo, em torno dos quais se acreditava estar culminando no século XX o encontro entre história e utopia por meio da transição do capitalismo para o socialismo.

Comunistas e socialistas, miristas e mapucistas[1], no Chile, juntamente com marxistas soviéticos e ocidentais, trotskistas, maoístas e guevaristas, no mundo, compartilhavam a crença de praticar uma ciência da revolução, entendida como um conjunto de conhecimentos fortemente organizado e hierárquico sobre como tornar realidade a transferência de poder dos capitalistas para os trabalhadores, o que permitiria iniciar a construção do socialismo. Todos eles acreditavam conhecer os passos para acessar a utopia, que, por sua vez, se constituía na justificativa de todos os meios considerados necessários para tornar realidade o triunfo da revolução, que acreditavam faria a história marchar para essa utopia. Todos eles compartilhavam singulares discursos sobre a história em andamento, que articulavam o passado e o futuro e, geralmente, tinham a comunidade revolucionária como protagonista e como antagonista – ou aliados mais ou menos ocasionais – as outras organizações, instituições, poderes, sujeitos coletivos e indivíduos que participavam na luta pelo poder.

Aggio abordou, em 1993, pela primeira vez e a partir de um enfoque que privilegiava a história intelectual, a tensão finalmente insolúvel entre a via chilena ao socialismo –pacífica, democrática, pluralista e sujeita à legalidade – e aquele cânone revolucionário predominante na esquerda mundial da época, que os próprios protagonistas da experiência chilena se empenhavam em proclamar sua adesão. Explicou como, em uma esquerda cujos militantes e intelectuais aderiram a tal cânone, os recursos conceituais para pensar e conduzir a via chilena ao socialismo ficaram severamente limitados, assim como limitaram também a capacidade de se assumir as lições de uma derrota, para a qual não se pode ignorar a incongruência entre o cânone revolucionário e a mutação teórica que teria exigido a articulação da democracia pluralista com um processo revolucionário de orientação socialista. Esse amplo e profundo enfoque, que conecta a interpretação histórica da experiência chilena com a historicização do debate global em que ela se inseriu constitui, na minha avaliação, a característica mais original e inovadora deste libro, visto pelo prisma da história intelectual. E, 28 anos depois, quando a própria argumentação do autor já foi incorporada a esta história, ela continua a ser uma das chaves para sua recorrente atualidade.

[1] Miristas corresponde ao MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionario, que não fazia parte da Unidade Popular (UP). Mapucistas corresponde ao MAPU – Movimiento de Acción Popular Unificado, partido de inspiração cristã e marxista, membro da UP, junto com comunistas e socialistas.

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