quinta-feira, 21 de novembro de 2024

LULA RECUPERA A POSSE DA BOLA

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Êxitos na política externa e constrangimento da extrema-direita favorecem o governo na preparação do terreno para o segundo biênio

A primeira-dama queimou a largada acocorando-se para ofender Elon Musk, e 34 chefes de Estado, o maior quórum de uma reunião do G20, acordaram com a notícia de que a segurança do evento estava sendo provida por militares que chegaram a fazer planos para envenenar o colega anfitrião. Parecia que tudo ia dar errado para um presidente que pretendia fazer uma retumbante estreia na trilha dos grandes eventos mundiais que presidirá - COP30 e Brics acontecerão em 2025-, mas a emenda saiu melhor que o soneto.

Janja da Silva recebeu uma reprimenda pública inédita do marido ao mesmo tempo em que o Brasil anunciava entendimentos com a China para buscar alternativas à Starlink de Musk. A notícia de que o G20 estava salvaguardado por golpistas se provaria falsa e a operação policial que ameaçava ofuscar o evento acabou trazendo dividendos externos e internos para o governo.

No noticiário internacional, a operação da Polícia Federal foi retratada na linha “as instituições estão funcionando” no país em que o multilateralismo foi celebrado como um ato de resistência a Donald Trump. A diplomacia brasileira arrancou uma declaração final, a primeira em três anos de G20, a despeito do alvoroço provocado pela autorização de Joe Biden, em solo brasileiro, ao uso de mísseis americanos pela Ucrânia contra a Rússia. A menção a este conflito teve 83 palavras contra 152 do parágrafo sobre Gaza e Líbano. Tudo isso menos de dois anos depois do fim do governo que constrangeu o Brasil perante o mundo nos fóruns internacionais.

Se, no último G20, os chefes de Estado se depararam com uma foto de Narendra Modi a cada 50 metros ao longo dos 12 km que separavam o aeroporto de Nova Déli da área hoteleira da capital indiana, o culto à personalidade não encontrou guarida no Rio. Não houve culto nem mesmo a obsessões que um dia deram o tom à política externa petista. Em nenhum dos três discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi pronunciado o termo “sul global”.

O G20 foi sucedido por uma visita de Estado de Xi Jinping, saudada pelo “Financial Times” como o coroamento de uma estratégia bem-sucedida da China em ocupar os espaços escancarados pela ausência de prioridade para a América Latina na diplomacia americana. A China, diz o ex-embaixador do Brasil em Pequim Marcos Caramuru, é o parceiro estável de um mundo que está às vésperas de assistir a volta de Donald Trump à arena. Num cenário que favorece a formação de novas alianças, o Brasil se posiciona de maneira vantajosa para explorar uma relação que se iniciou com o reconhecimento da China comunista sob Ernesto Geisel quatro anos antes que os Estados Unidos o fizessem.

A visita de Xi seguiu a cartilha com 37 memorandos e nenhum anúncio estrondoso que pudesse vir a caracterizá-la como um divisor de águas do desenvolvimento nacional, como chegou a ser retratada por integrantes deste governo. Nos dias que antecederam a visita, diplomatas brasileiros se precaveram. Avisaram não ter controle sobre a “narrativa” chinesa sobre o status da relação do Brasil com o programa “Cinturão e Rota” definida pelo governo brasileiro como de “sinergia”. Os temores não se confirmaram. O “South China Morning Post”, um dos mais influentes jornais da região, deixou claro que o Brasil não tinha aderido ao programa.

A gordura acumulada pelo presidente com a agenda diplomática acabou coroada pela operação da PF sobre os militares golpistas. Se as bombas na Praça dos Três Poderes já haviam embatucado a extrema-direita e seus sócios na política nacional, foram as digitais de Jair Bolsonaro na tentativa de golpe, expostas pela operação, que, de fato, os constrangeu - vide a agressividade do mais centrado do clã, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Ainda que a concomitância seja fortuita, o acordo entre as Forças Armadas e o Ministério da Fazenda em torno das propostas para a reforma da aposentadoria dos militares foi anunciado um dia depois da operação policial. Registre-se que este acordo se mantinha travado mesmo depois que o ministro da Defesa, José Múcio, intermediou um encontro dos três comandantes militares com o ministro Fernando Haddad.

Se a reforma ainda enfrentava alguma resistência, esta ruiu ante a evidência de que os militares não dispunham de gordura para queimar neste momento. Não teriam como não contribuir com a cota de sacrifício de cada um, mote do discurso de Lula para o pacote. O presidente não conseguiu que a idade mínima para a aposentadoria dos militares, que findou em 55, chegasse a 60 anos, mas o acordo representa a superação do último grande entrave do pacote que pretende recolocar as finanças públicas dentro do arcabouço fiscal.

A operação da PF também acabaria por fortalecer a conduta do atual comando do Exército em relação ao golpismo militar. A minuta do envenenamento do presidente da República e do seu vice acabaria servindo como um “conforme quisemos demonstrar” sobre a fronteira sem limites de uma força armada contaminada pela politização.

É este o terreno sobre o qual os rumos do segundo biênio do governo Lula começarão a ser definidos. O presidente ainda tem o Congresso pela frente, o que não chega a ser um detalhe, mas recuperou a posse da bola.

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