sábado, 11 de agosto de 2018

O CURRAL DO CORONEL

Da ISTOÉ
Durante a eleição municipal de 2016, o horário de funcionamento da prefeitura de Sobral, segundo maior município do Ceará com 205 mil habitantes, foi alterado a pretexto de economizar energia. Na realidade, a portaria instituída pelo então prefeito Clodoveu Arruda (PT) teve outro propósito: o de mobilizar funcionários públicos para trabalhar na campanha do irmão caçula do candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes, Ivo Ferreira Gomes, candidato a administrar a cidade. Um verdadeiro exército de professores, agentes de saúde e secretários municipais cumpriu a missão a contento. Trajados de amarelo, os servidores da prefeitura bateram de porta em porta em favor da candidatura do irmão de Ciro. Durante o corpo-a-corpo eleitoral, houve até quem trocasse votos por água encanada. A agricultora Maria do Livramento Paiva, da fazenda Campo Grande, distrito de Taperuaba, confessou à ISTOÉ que, para receber água potável em sua residência, teve de “jurar fidelidade aos Gomes”, que consistia em cabalar o maior número de votos possíveis no seio da própria família. “Por essa água eu me despedacei arrumando voto de todo jeito”, afirmou. O resultado não poderia ter sido diferente: Ivo foi eleito com 57,9 mil votos – 51,4% do total. No primeiro ano de mandato, durante encontro para definir o Plano Plurianual da cidade, Ivo Gomes discursou: “Quem tem o poder sou eu e quem não rezar na minha cartilha vai sair. Experimentem me desafiar”, ameaçou. Os episódios são ilustrativos da influência exercida pelos Ferreira Gomes em Sobral. Mais do que berço político de Ciro, o município se transformou numa espécie de curral eleitoral da família. Ali, impera a lei do mais forte, na acepção do termo.
Não foi sempre assim. Além de primogênito, Ciro Gomes era o filho predileto de José Euclides Ferreira Gomes, o “advogado dos pobres”, como os defensores públicos eram chamados na década de 60, em Sobral. O garoto sempre foi considerado um virtuose. Lia muito e gostava de recitar Camões – chegou a ganhar um concurso para viajar a Portugal. Mas o começo da vida não foi fácil para o candidato do PST ao Planalto. Estudou em escola pública – Colégio Dom José –, pois os pais não tinham dinheiro. Conseguiu ingressar no Colégio Sobralense, privado, faltando apenas três anos para o vestibular. Ciro era resiliente. Para concluir o curso de Direito em Fortaleza, onde foi aprovado em 1º lugar, teve que morar num mosteiro de franciscanos. Motivo: o aluguel era mais barato. A situação mudou da água para o vinho em 1976 com a eleição do pai para a prefeitura de Sobral. Eleito, José Euclides fez um bom mandato e se vinculou ao coronel Cesar Cals, que virou ministro das Minas e Energia do governo João Figueiredo. A partir de então passou a mandar e desmandar na cidade, catapultando a carreira política do filho. O município foi a plataforma que lançou o aspirante ao Planalto a vôos mais altos, destaques para as eleições a prefeito de Fortaleza, governo do Ceará e para a nomeação a ministro da Fazenda do governo Itamar Franco.
Hoje, em Sobral, a família é detentora de 50% do eleitorado. Outros 20% votariam neles por medo, segundo revelou Luiz Melo Torquato, 77, ex-presidente do Guarany de Sobral. Torquato, que acompanha a vida política do clã Ferreira Gomes desde suas raízes, lembra que, ao todo, a cidade já teve seis prefeitos da família.  “Ciro gosta de falar o que o povo gosta de ouvir”, disse o empresário, emendando na sequência uma ponta de mágoa e frustração. Ele conta que eles eram muito amigos, mas que Ciro “se contaminou” ao se cercar “de gente grande e poderosa”. “Ciro era muito inteligente e honesto, mas virou uma máquina mortífera com quem passou a se opor a ele. Basta ver a rasteira que deu no ex-governador do Ceará Tasso Jereissati e Lúcio Alcântara, homens que investiram nele sem medir esforços e o colocou em cargos importantes que o projetou no cenário nacional e depois foram traídos”, lamenta.  Torquato não é voz isolada. Professor de português no colégio Sobralense, hoje extinto, o padre Osvaldo Carneiro Chaves, aos 94 anos, enrijece os músculos do rosto e pede para mudar de assunto quando indagado sobre seu ex-aluno Ciro Gomes: “Tem tanta gente no mundo, vamos falar de outras pessoas”, suplicou ele. Perguntado com insistência se Ciro ao menos era um aluno aplicado, Chaves respondeu com rispidez: “Era uma estrela, mas um aluno aplicado não se julga pelas notas e sim pela sua capacidade de trabalho e pelo respeito ao próximo”. Contemporâneo de Ciro no Colégio Marista Cearense, na década de 70, o engenheiro Hermenegildo Souza Neto atesta a fama de “geniozinho de temperamento forte” do hoje aspirante à Presidência. Conta que o presidenciável se destacava, ajudava amigos de sala e não precisava estudar muito para tirar boas notas. “Nos dias de provas todos queriam sentar perto dele para pescar as questões”, afirma. Mas lamenta que Ciro “engrossou o pescoço depois que entrou na política”: “Ele se acha melhor que todo mundo”.
Agricultora disse que, para receber água potável em sua residência, teve de “jurar fidelidade aos Gomes”. Ou seja, votar e pedir votos para eles
Embora, nas recentes sabatinas, tente exibir um semblante mais sereno, Ciro mudou pouco, garantem moradores de Sobral. O jeitão explosivo pode até permanecer em stand by durante alguns momentos, mas segue latente, pronto para aflorar a qualquer hora. Como em setembro de 2016, quando, segundo testemunhas, Ciro percorria o distrito de Taperuaba, distante 65 quilômetros de Sobral, fazendo visitas e pedindo votos para o irmão Ivo. Incomodado com uma moto que o seguia, o candidato do PDT ao Planalto desceu do carro embebido em fúria, xingou o rapaz e tentou agredi-lo. Qual não foi sua surpresa: o motoqueiro conhecido por Júnior era dono de um certeiro cruzado de direita. Ciro acabou nocauteado com um único soco no rosto e precisou ser amparado por seus seguranças. O caso foi abafado.
Em novembro do ano passado, a família de Ciro sofreu o que seria o seu maior revés na cidade. A justiça eleitoral cassou o diploma de Ivo Ferreira Gomes, por compra de votos. Na ocasião, o Ministério Público Federal também foi favorável à cassação, mas o poder da oligarquia falou mais alto e o quadro foi revertido no TRE, em Fortaleza. Na última semana, o MDB e o Ministério Público Eleitoral impetraram um embargo de declaração e o processo seguiu para o TSE. Ivo atribui as recentes desventuras à oposição. O momento para os Ferreira Gomes não mesmo é favorável em seu berço político. Além da pendenga eleitoral, Sobral vive uma escalada de violência, com aumento do número de homicídios e bairros inteiros dominados por facções criminosas. De tantos mandos, o reduto dos Ferreira Gomes no interior do Ceará virou um desmando.
“ (Ciro) Era uma estrela, mas um aluno aplicado não se julga pelas notas e sim pela sua capacidade de trabalho e pelo respeito ao próximo” Osvaldo Carneiro Chaves, professor de Ciro no colégio Sobralense
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