segunda-feira, 31 de maio de 2021

DESFAZER A CARICATURA DOS EVANGÉLICOS

Vinicius do Valle, EL PAÍS

As pesquisas eleitorais dos principais institutos do país, divulgadas no mês de maio, trouxeram apreensão ao palácio do planalto. Nelas, o ex-presidente Lula apareceu isolado em primeiro lugar nas intenções de voto do primeiro turno, enquanto, no segundo, apareceu com larga vantagem à frente do presidente Jair Bolsonaro. O conjunto dos dados, olhados por qualquer prisma, é péssimo para o Governo. Aqui, gostaria de chamar atenção para um dos seus aspectos: a intenção de voto dos evangélicos. Tomarei como base os últimos dados divulgados que isolaram esse grupo religioso, fornecidos pela pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada dia 12 de maio. Segundo os dados apresentados, 35% desse segmento religioso optam pelo candidato petista já no primeiro turno, contra 34% que preferem Bolsonaro. Em um eventual segundo turno entre os dois, ambos ficam com 45% das intenções de voto. Quando olhamos para os dados de rejeição, a situação é levemente favorável ao petista: 45% do grupo diz que não votaria de jeito algum no atual mandatário, contra 42% em Lula.

Esses números, se confirmados por outras pesquisas, representam uma virada no quadro político dessa fatia importante do eleitorado que, desde 2016, tem optado por candidatos anti-petistas. Tal mudança, no entanto, não deveria surpreender, ainda mais considerando o histórico do posicionamento político dos evangélicos e a situação econômica e social do país em 2021.

Quando olhamos mais atentamente para esse grupo, vemos que apesar dos posicionamentos recentes de aliança e apoio a este Governo e de uma postura majoritariamente conservadora ao longo das últimas décadas, os evangélicos correspondem a um conjunto multifacetado, complexo e plural, que ao longo do tempo viu líderes e instituições oscilarem no posicionamento político. Muitos dos que agora estão com Bolsonaro já foram, inclusive, aliados de governos petistas.

A inclinação política da maior parte dos líderes desse segmento em direção a candidatos de direita e extrema-direita se deu só no final da última década, tendo como pano de fundo a crise econômica pós 2015. Esse posicionamento é perfeitamente explicável a partir da constatação de que os evangélicos correspondem ao grupo religioso com maior contingente de famílias em situação de baixa renda e vulnerabilidade social. Parte importante desse segmento abandonou o barco dos governos petistas com a piora da situação econômica. Agora, em um momento de perda do poder de compra, alto desemprego e ausência de perspectivas – situação cada vez mais evidentemente ligada às más escolhas do atual governo –, punem também Bolsonaro.

As chamadas pautas morais, ligadas principalmente às questões de gênero e sexualidade, têm sim sua importância para os evangélicos, mas é importante desfazer caricaturas e entender que o discurso dos líderes religiosos não é o mesmo da maior parte dos fiéis, principalmente os mais jovens. Além disso, tais discursos radicalizados, amplificados e distorcidos por fake news para alvejar a esquerda, só ganharam o eco que tiveram em um contexto de insatisfação já existente contra os governos petistas devido à situação econômica. Por fim, ainda que consideremos a persistência dessas pautas moralizantes entre candidatos evangélicos, é preciso ter em mente que elas tendem a gerar um retorno eleitoral mais contundente em candidatos ao legislativo do que ao executivo.

Em outras palavras, os fiéis votam no nome indicado pela igreja no legislativo, mas no executivo, a escolha envolve um conjunto mais complexo de variáveis, em que ganha destaque a situação econômica. É isso que minhas pesquisas de mestrado doutorado em Ciência Política na Universidade de São Paulo, realizadas entre 2011 e 2018, sinalizaram.

A situação econômica do próximo período, bem como os próximos capítulos da CPI da Pandemia, que devem evidenciar a responsabilidade do atual governo para o prolongamento da pandemia e a multiplicação das mortes, deverão sedimentar esse novo quadro. Resta saber o que farão os líderes e políticos da bancada evangélica, hoje abraçados com Bolsonaro. A julgar pelo histórico, podem também facilmente mudar de lado.

Vinicius do Valle é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e autor de “Entre a religião e o lulismo” (Ed. Recriar).

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BOLSONARO TURBINA NOVA CRISE MILITAR E PÕE MINISTRO BRAGA NETTO À PROVA

Aiuri Rebello e Flávio Marreiro, EL PAÍS

No cargo há menos de dois meses, o ministro da Defesa, general da reserva Walter Braga Netto, terá uma semana decisiva e desconfortável à frente da pasta. Seu comandante-em-chefe, Jair Bolsonaro, estica a corda mais uma vez para testar até que ponto os militares, e em especial o Exército, estão dispostos a se acomodar à nova ordem do Planalto, que lhes deu poder como nunca desde a redemocratização. A crise da vez, gestada por Bolsonaro, é em torno do general três estrelas e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. O presidente ultradireitista levou seu ex-ministro a tiracolo em um evento público no Rio de Janeiro há uma semana. De acordo com o regramento do próprio Exército e das Forças Armadas, Pazuello não poderia ter participado de evento político e por isso agora responde a um procedimento disciplinar aberto por seus pares.

O Exército já vinha fazendo vista grossa a respeito de seu próprio arcabouço legal, já que aceitou que um general da ativa seguisse com esse status enquanto ocupava um cargo público, como foi o caso de Pazuello. Mas o imbróglio agora faz parte de outra ordem. A avaliação é que o novo ministro da Defesa e o novo comandante do Exército, Paulo Sergio Nogueira, estão sendo testados pelo Planalto. Bolsonaro já deixou claro, até publicamente, que não deseja ver Pazuello punido, enunciando sua teoria de que não protagonizou um evento político no Rio com o general, apesar dos discursos na ocasião. É a mesma defesa que um desafiante Pazuello apresentou ao Exército. Assim, Bolsonaro deixou a Braga Netto (e também a Nogueira) apenas duas escolhas: desafiar o chefe ou reduzir sua estatura diante dos subordinados ―se a punição a Pazuello for branda demais ou nem vier.

A situação põe à prova Braga Netto. Até integrar o Governo Bolsonaro como ministro-chefe da Casa Civil, o general da reserva era visto como politicamente discreto, no máximo avesso à imprensa, mesmo ocupando posições de destaque deste as presidências de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), ainda como oficial da ativa. Em 2013, sob Dilma, foi responsável pela segurança dos Jogos Olímpicos em 2016, missão considerada pela mídia e Governo um sucesso. Nesse meio tempo, foi um dos comandantes da controversa ocupação feita pelas Forças Armadas no Complexo da Maré, em 2014 e 2015. Com essa experiência e já comandante militar do Leste, foi escolhido por Temer como interventor do Rio de Janeiro. Em comum nesses últimos nove anos a serviço de três presidentes, nunca se furtou a fazer serviços pesados para nenhum deles.

A entrada na Casa Civil do Governo Bolsonaro, já no segundo ano da administração, mostra que ele não era a primeira opção do presidente. Foi uma decisão tomada pelo núcleo duro dos generais bolsonaristas lotados no Palácio do Planalto e hoje composto pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e o ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, também lotado no GSI. A avaliação dos generais bolsonaristas, segundo um dos próprios, era a de que Braga Netto trazia algo que faltava a todos ali: experiência administrativa na máquina pública, adquirida nos dois governos anteriores.

Além de, em tese, saber tocar a administração federal, Braga Netto deixou o serviço ativo no ano passado como um dos comandantes mais respeitados do Exército, de acordo com pelo menos três oficiais ouvidos pelo EL PAÍS. Com Bolsonaro, sua primeira missão foi tentar coordenar o caótico combate do Governo federal à pandemia de covid-19 ―mas não foi bem sucedido. Calouro de Villas Bôas e Heleno na Cavalaria do Exército, sempre contou com a confiança dos dois. Rapidamente conquistou espaço no núcleo decisório do Governo e também a estima do próprio presidente, o que, no entanto, não o blindou de seus problemas atuais.

Um posto desconfortável

No começo de abril, Bolsonaro despachou Braga Netto para a Defesa. Foi para substituir o general da reserva Fernando de Azevedo e Silva, defenestrado da pasta, entre outros motivos, por não ser considerado alinhado o suficiente pelo presidente. A demissão dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica após a troca de ministro ―a maior crise em décadas na caserna― evidenciou que as altas patentes, sobretudo o alto comando do Exército, não estavam satisfeitas com o rumo do Governo e para os danos de imagem que essa associação lhes causa. Muito menos com os discursos flertando com o golpismo, quando Bolsonaro fala do “meu Exército” e empenha o nome dos militares em nome de suas bandeiras. Ou seja, Braga Netto já chegava em situação incômoda.

Sua própria indicação para o cargo foi vista como uma quebra grave e hierarquia. Por isso, para não jogar ainda mais combustível na crise, Bolsonaro e o novo ministro decidiram respeitar critérios de antiguidade para o novo comando das forças, na avaliação de um general da reserva que não faz parte do Governo e também preferiu não ser identificado na reportagem. Os escolhidos foram o já citado general Paulo Sérgio de Oliveira, um entusiasta do combate à pandemia, o terceiro mais antigo do Exército na lista de militares com quatro estrelas e na ativa; o almirante Almir Garnier, o segundo mais antigo na Marinha; e o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, o primeiro da lista. Se com essa manobra a ideia de presidente era amarrar ainda mais as Forças Armadas ao seu projeto de poder, com um homem de mais ascendência sobre os subordinados, a princípio, deu errado.

“Poucos generais aceitariam o cargo nessas condições com Braga Netto fez. Mostra que ele é um fiel escudeiro do Bolsonaro como o Heleno e o Ramos”, pontua o professor João Roberto Martins, estudioso dos militares brasileiros. No cargo, o novo ministro vem cumprindo o script esperado pelo Planalto. Comparece a extensa agenda pública ao lado de Bolsonaro. Participa de idas a feiras de rua e manifestações. No começo de maio, e antes da crise Pazuello, lá estava o novo ministro da Defesa participando de um passeio de moto com o presidente, que aglomerou cerca de mil motoqueiros durante uma volta por Brasília. Sem máscara, como de costume. No final de abril, na posse do novo comandante do Exército, Braga Netto disse que era “preciso respeitar o projeto escolhido pela maioria”, sobre a eleição de Bolsonaro. Em seu primeiro ato à frente da Defesa, elaborou, assim como os anteriores nomeados por Bolsonaro, uma ordem do dia, para ser lida nos quartéis, em que diz que o golpe militar de 1964 faz parte da “trajetória histórica” do Brasil e que os acontecimentos de 31 de março daquele ano devem ser “compreendidos e celebrados”.

“Ele saiu do Exército na condição de um dos maiores líderes da geração recente”, afirma um pesquisador das Forças Armadas brasileiras que é próximo de alguns generais citados nessa reportagem e acha melhor não ser identificado na reportagem para não se indispor com eles. “O movimento do Bolsonaro com essa mudança foi claramente colocar um cara com grande ascendência sobre as tropas e que ao mesmo tempo fosse completamente alinhado com o projeto do núcleo duro de generais do Planalto”, diz. Para pesquisador, independentemente do aparente insucesso da manobra de enquadrar as Forças Armadas em um primeiro momento, não há dúvidas de que Bolsonaro vai continuar tentando esse alinhamento. “A corda vai continuar sendo esticada não pelo Braga Netto, que é um cumpridor de ordem e missão exemplar, mas pelo presidente, que vai usar ele para isso”, disse o especialista ao EL PAÍS, no começo do mês.

Não demorou muito para a corda ser esticada. O novo teste desenhado pelo Planalto para Braga Netto e os militares veio justamente por meio de Pazuello, que pode ter um desfecho nos próximos dias. Para o professor João Roberto Martins, o que está em jogo é a manutenção e a ampliação do poder que os militares conseguiram desde o Governo de Michel Temer, que voltou a nomear um general para o cargo de ministro da Defesa, algo que não acontecia desde 1998. “Bolsonaro é muito problemático para os militares. Se com o atual presidente conseguiram voltar ao poder de uma forma inimaginável poucos anos antes, por outro lado ele é incontrolável”, afirma.

A reportagem solicitou uma entrevista com Braga Netto, mas o pedido ainda encontra-se em análise no Ministério da Defesa.

INDICAÇÃO DE FILHA DE BRAGA NETTO A POSTO NA ANS FOI CANCELADA

No âmbito pessoal, há pouca informação pública sobre o general. No ano passado, chamou a atenção da imprensa a indicação de sua filha, Isabela Oassé de Moraes Ancora Braga Netto, que recebeu o aval da Casa Civil comandada pelo próprio pai na época para ocupar um cargo técnico na área de credenciamento de planos de saúde com salário de R$ 13.074 na Agência Nacional de Saúde (ANS). Como o cargo é de livre nomeação, não é necessária a realização de concurso público, mas Isabela é formada em comunicação e nunca desempenhou função parecida. Depois da repercussão do caso, ela não aceitou o emprego. Seu irmão, oficial da Marinha, foi assassinado ao tentar evitar um assalto em 1984.

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POR QUE LULA NÃO PARTICIPOU DOS ATOS CONTRA BOLSONARO

Bela Megale, O GLOBO

Com seu rosto e nome estampados em parte das manifestações realizadas contra Bolsonaro no último sábado, Lula preferiu não comparecer aos atos e nem se manifestar publicamente. A pessoas próximas, porém, o ex-presidente deixou claro que considerou o movimento positivo. Segundo aliados do petista, ele avalia que os atos mostraram que há capacidade de mobilização da esquerda.

Para integrantes da cúpula do PT, incluindo o próprio Lula, os protestos também evidenciaram menor capacidade de mobilização de bolsonaristas. Enquanto opositores de Bolsonaro foram às ruas em capitais de todos Estados e em muitas cidades do interior, os últimos protestos realizados pelos apoiadores do presidente, inclusive com a presença de Bolsonaro, aconteceram de forma mais isolada em Brasília e, semanas depois, no Rio de Janeiro.

Interlocutores de Lula relataram que ele optou por não participar dos atos para evitar aglomeração em seu entorno, em um momento em que especialistas alertam sobre riscos de uma terceira onda da Covid no Brasil. A avaliação é que esse comportamento ajuda a “blindá-lo”, se quiser seguir na linha se condenar os atos políticos e aglomerações de Bolsonaro. O problema é que, apesar de Lula não ter ido aos atos, vários líderes do PT foram às ruas.

O ex-presidente também disse a aliados que sua presença poderia dar um caráter eleitoral para os protestos contra Bolsonaro e que não é momento para isso.

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A VOZ DAS RUAS

Bruno Carazza, Valor Econômico

E o povo voltou para as ruas. Abandonando as recomendações da ciência de que é preciso evitar aglomerações a fim de se evitar uma terceira onda da covid, milhares de pessoas lotaram as cidades do país nos dois últimos fins de semana em nome da política.

Embora o senso comum atribua ao brasileiro uma natureza passiva e conformista, não foram poucos os episódios de nossa história em que a população se indignou e se mobilizou em massa reivindicando mudanças. Das revoltas populares no Império (Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Farroupilha), passando pela Revolta da Vacina (1904), as greves operárias na década de 1920, os movimentos a favor e contra a ditadura militar (1964-1968) e chegando mais recentemente às Diretas Já (1984) e ao impeachment de Collor (1992), milhares ou milhões marcharam em favor de causas variadas.

Esquerda e direita se aglomeram em nome da política

Em junho de 2013, porém, algo diferente aconteceu. Sua dinâmica e sobretudo suas consequências ainda são motivo de estudos e controvérsias, mas o fato é que, articuladas nas redes sociais, as manifestações cresceram em número de participantes, abrangência territorial e diversidade de reivindicações, numa velocidade sem precedentes em nossa história.

O gigante acordou a partir de uma proposta de aumento de 20 centavos na tarifa de transporte público no município de São Paulo – mas é óbvio que não se tratava apenas disso. Os protestos por aqui repercutiam um espírito dos novos tempos, inspirados na Primavera Árabe e nos movimentos Ocuppy surgidos nos Estados Unidos e na Europa na esteira da grave crise financeira de 2008-2010.

Durante duas semanas, justamente quando o país se preparava para receber a Copa das Confederações (evento teste para a Copa do Mundo de futebol de 2014) milhões saíram às ruas de mais de 500 municípios e sacudiram o país, com efeitos sentidos até hoje.

Junho de 2013 talvez tenha sido a última vez em que pessoas de esquerda e de direita, progressistas e conservadores, estiveram lado a lado reivindicando mudanças na política brasileira. Também havia uma ampla diversidade de segmentos sociais: contingentes expressivos do chamado “precariado”, de uma “nova classe média” que havia ascendido economicamente e da classe média tradicional mostravam-se insatisfeitos, cada qual com seus argumentos, com um Estado que entregava serviços públicos de péssima qualidade e uma elite política que não mais os representava.

Circunstâncias especiais contribuíram para o ineditismo do movimento. Sem lideranças claras, com uma pauta difusa e refutando a presença de partidos, sindicatos e políticos tradicionais, as pessoas se sentiram confortáveis a aderir às passeatas sem serem rotuladas como seguidora dessa ou daquela corrente. E assim a promessa de que “amanhã vai ser maior” se cumpriu dia após dia.

As jornadas de junho desapareceram da mesma forma surpreendente com que surgiram. De lá para cá, porém, os brasileiros parecem ter retomado o gosto pelas manifestações de rua. Suas características alteraram-se radicalmente, contudo.

Os motivos deixaram de ser genéricos e tornaram-se muito bem definidos. Protestou-se contra a corrupção sistêmica revelada pela Operação Lava-Jato, pelo impeachment de Dilma, contra o golpe do impeachment de Dilma e também em oposição aos cortes de recursos para a educação – e mais recentemente a pandemia ensejou manifestações daqueles que se opõem às medidas de restrição à circulação de pessoas e, ontem, contra a gestão da crise de saúde pelo governo federal. E por trás das justificativas para cada uma dessas demonstrações populares havia objetivos políticos também bem específicos, capitaneadas por movimentos de esquerda ou de direita.

Muitos analistas apontam os protestos de 2013 como a origem da crescente polarização que desde as eleições de 2014 divide o país. Ao refutarem a configuração do sistema político brasileiro, questionando a representatividade dos partidos e da classe dirigente, abriu-se a caixa de Pandora. A agenda da melhoria da qualidade dos serviços públicos deu lugar à negação da política como instrumento de mediação e ao questionamento dos valores democráticos duramente reconquistados com a Nova República.

Com o agravamento da pandemia e sua consequente queda de popularidade, Bolsonaro tem fomentado recorrentemente manifestações públicas como tentativa de demonstrar força e apoio social. Seja a pé ou montado a cavalo, sobrevoando de helicóptero ou acelerando uma motocicleta, o presidente estimula aglomerações defendendo o fim do distanciamento social para evitar o desemprego e a fome. Embora não se duvide que uma parte considerável do público presente a esses eventos se preocupe com os efeitos econômicos e sociais do fechamento do comércio, por trás do discurso de Bolsonaro há um objetivo meramente político e eleitoral.

A gravidade da pandemia, com suas mais de 460 mil mortes e ondas intermináveis de contaminação, dificultava a resposta de seus opositores. Afinal, seria contraditório promover a mobilização de pessoas quando era essa uma das principais críticas ao comportamento irresponsável do presidente. As milhares de pessoas que lotaram praças e avenidas de dezenas de cidades brasileiras no último sábado comprovaram, porém, que temem mais a política de Bolsonaro do que o risco de contaminação pela covid.

As manifestações de sábado foram um legítimo grito de indignação contra a gestão deplorável da pandemia por parte do governo federal. No entanto, apesar de não ter tido candidato discursando nos palanques, pelos movimentos que a organizaram e as bandeiras e camisas envergadas por boa parte dos presentes, elas tinham cor e inclinação política muito bem definidas.

As jornadas de maio de 2021 inauguram o início oficial da disputa eleitoral do ano que vem – ou pelo menos o momento em que a campanha, seja de motocicleta ou a pé, começa a tomar de modo antecipado as ruas do país.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”

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DECISÕES DE BOLSONARO CAUSARAM, POR BAIXO, 90 MIL MORTES

Celso Rocha de Barros, Folha de S.Paulo

Dois fatos apurados pela CPI da pandemia, ambos documentados, mostram, sozinhos, que o número de brasileiros que comprovadamente morreram por culpa de Jair Bolsonaro durante a pandemia já se aproxima de 100 mil. Como calculamos duas colunas atrás, 100 mil mortos é mais do que a soma das vítimas de todos os assassinos brasileiros em 2019 e 2020.

A primeira decisão foi a de não aceitar a oferta de vacinas da Pfizer. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, utilizando parâmetros conservadores (isto é, desfavoráveis à hipótese de que a decisão de Bolsonaro custou vidas), 14 mil brasileiros (5.000 no mínimo, 25 mil no máximo) teriam sido salvos se a oferta da Pfizer tivesse sido aceita. Uma única decisão: 14 mil pessoas morreram por ela.

A segunda decisão foi a de não aceitar a proposta do Instituto Butantan para entregar 45 milhões de vacinas da Coronavac ainda em 2020. A mesma conta feita pelo professor Hallal estimou em 81,5 mil (80,3 mil no mínimo, 82,7 mil no máximo) o número de brasileiros que não teriam morrido se a oferta do Butantã tivesse sido aceita. Outra estimativa, feita pelo jornal O Estado de S. Paulo, mostrou que as vacinas do Butantan teriam sido suficientes para vacinar todos os idosos brasileiros até fevereiro. Entre o meio de março e semana passada, morreram 89.772 idosos brasileiros.

Somando as vítimas das duas decisões, já são, no mínimo, cerca de 90 mil mortes que Jair Bolsonaro, comprovadamente, causou sozinho. Se algum defensor do governo tiver cálculos diferentes, por favor, apresente-os.

Esses 90 mil são só o começo da história. Bolsonaro combateu desde o início a Coronavac, que só existe no Brasil por iniciativa do Governo de São Paulo e é responsável pela esmagadora maioria das vacinas aplicadas no país até agora. Além disso, vacinação é só um dos pilares do combate à pandemia. Bolsonaro não investiu em nenhum dos outros: nem isolamento social nem testagem e rastreamento.

Mesmo depois de verem apresentadas todas as provas citadas acima, os senadores Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Marcos Rogério (DEM-RO) continuam fazendo o possível para esconder esses fatos na CPI da pandemia.

Na última semana, Girão tentou emplacar o boato de que a Coronavac é feita com células de fetos abortados (não é). Marcos Rogério mentiu que outras autoridades defenderam a cloroquina ao mesmo tempo que Bolsonaro, o que só ocorreu no curto período antes de vários estudos médicos (não apenas o de Manaus, Heinze) demonstrarem a ineficácia da cloroquina contra a Covid-19. .

Heinze tenta desviar qualquer conversa para falar de cloroquina, que só é assunto no Brasil. Em 2020, a cloroquina foi utilizada por Bolsonaro para mandar trabalhadores para as ruas com risco de morte. Agora é utilizada por Heinze na CPI para desviar o assunto, dos crimes enormes que a população entende claramente, como boicote à vacinação, para crimes menores e mais difíceis de serem entendidos, como o curandeirismo de cloroquina.

Se o único crime de Bolsonaro na pandemia tivesse sido a defesa da cloroquina, se tivesse feito todo o resto certo, o título desta coluna teria um número muito menor. Heinze não quer que investiguemos todo o resto.

Eu acho que isso é crime, senador.

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SIGILO PARA A MATANÇA

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

A polícia escondeu os registros da maior chacina da história do Rio. A medida driblou a Lei de Acesso à Informação e pôs os documentos em sigilo por cinco anos. Tempo suficiente para esfriar o clamor por uma investigação isenta sobre a matança.

Segundo a versão oficial, não houve execuções na operação que deixou 28 mortos no Jacarezinho. Se isso é verdade, não existiria motivo para ocultar os relatórios que narram a incursão na favela.

Ao classificar os papéis como “reservados”, o subsecretário Rodrigo Oliveira afirmou que sua divulgação não é “pertinente” porque poderia revelar “dados sensíveis”. No dia da matança, ele acusou o Judiciário de praticar “ativismo”. Acrescentou que os defensores de direitos humanos teriam “sangue nas mãos”.

O delegado fez uma inversão de papéis típica da retórica bolsonarista. A polícia mata, mas a culpa pelas mortes não é de quem puxa o gatilho. A ordem é acusar advogados, defensores públicos e pesquisadores que criticam a violência fardada.

O ataque ao Judiciário está em sintonia com a ocultação dos registros do massacre. São dois lances de uma queda de braço que opõe a polícia fluminense ao Supremo Tribunal Federal.

Em junho de 2020, o ministro Edson Fachin decidiu que as operações em favelas só poderiam ocorrer em “hipóteses absolutamente excepcionais”, com justificativa ao Ministério Público. A liminar foi confirmada pelo plenário da Corte, mas não mudou as práticas da polícia por muito tempo.

Nos últimos meses, a decisão passou a ser ignorada e a violência voltou a escalar. A operação no Jacarezinho foi batizada de “Exceptis”, numa provocação explícita ao tribunal.

“A polícia adotou uma atitude de desafio à autoridade do Supremo”, avalia o professor Daniel Sarmento, autor da ação do PSB que resultou na decisão de Fachin. Na quinta-feira, ele pediu à Corte que derrube o sigilo sobre os relatórios da polícia.

“A Lei de Acesso à Informação afirma que não pode haver sigilo em casos de violação de direitos humanos. As investigações desses episódios têm se revelado muito ineficazes. A imprensa e a sociedade civil precisam de meios para ficar de olho”, afirma.

“Existe um claro conflito de interesse quando a Polícia Civil, que investiga se os próprios agentes violaram a lei, decide decretar sigilo de informações sobre a operação”, apontou a ONG Human Rights Watch.

A afronta ao Supremo pode ter sido a menor das ilegalidades no Jacarezinho. Segundo a Defensoria Pública e a Comissão de Direitos Humanos da OAB, há fortes indícios de execuções extrajudiciais, abusos contra presos e destruição de provas.

Em nota técnica enviada ao Supremo, advogados da Rede Liberdade listam ao menos oito irregularidades na operação. O documento também aponta falhas do MP no controle externo da atividade policial.

“A cada dia que passa, verificamos mais fragilidades em tudo o que a polícia alegou”, diz o advogado Felipe Freitas, um dos autores da nota. “O que aconteceu no Jacarezinho não foi uma operação policial. Foi uma chacina praticada por agentes do Estado”, conclui.

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A VIA-CRÚCIS DA TERCEIRA VIA

Eduardo Affonso, O GLOBO

Bolsonaro é a segunda pior coisa que já aconteceu ao Brasil. A pior foi Lula, que, além de tudo, nos legou Bolsonaro — uma “herança maldita” que corre o risco de se prolongar por mais quatro anos. O ex e o atual presidente se tomam mutuamente como antimodelos (no popular, como bicho-papão). Mas se retroalimentam: um é o esmeril onde o outro afia as garras.

Lulopetismo e bolsonarismo, hoje apresentados como os únicos caminhos politicamente viáveis, estão longe de ser simétricos, mas não são assim tão antagônicos. Vão dar no mesmo lugar: a negação da política, o desprezo pelo diálogo.

A expressão “terceira via” não ajuda muito. Ficou marcada como um Frankenstein com cérebro de capitalista e coração socialista. Mas aqui nomeia algo que nos liberte de um círculo vicioso, de uma espiral de hostilidade que torna a cada dia mais difícil desfazer o nó do “nós x eles”. Conseguimos não nos unir nem mesmo diante de uma pandemia que já matou quase meio milhão de brasileiros — ao contrário, encontramos nela combustível para nos afastar ainda mais.

Terceira via (ou quarta, ou quinta) não é a média aritmética dos extremos: é um vasto campo de possibilidades. Não é um muro sobre o qual os indecisos se acomodam para não tomar partido: é de onde se pode ver quão próximas estão as pontas da ferradura — e escolher não estar em nenhuma delas. É rejeitar a estridência das militâncias e optar por um sistema em que todas as vozes sejam ouvidas. No lugar do “um manda, o outro obedece”, escolher a argumentação e o convencimento.

Construir uma terceira via significa sair do simplorismo do branco ou preto e contemplar a complexidade de uma escala Pantone inteira. Buscar a pluralidade e escapar da “alternância de poder” entre um Centrão comprado pela esquerda mais venal e o mesmo Centrão aliciado pela direita mais torpe.

É um “caminho do meio” que pode até não levar ao nirvana, mas nos livrará da tirania maldisfarçada do populismo. E de falácias, como insistir que a responsabilidade por todas as mortes em decorrência da Covid-19 caiba ao atual governo — inepto, errático e irresponsável — sem considerar que, mesmo com os melhores quadros e as melhores práticas, parte das perdas humanas seria inevitável. Ao mesmo tempo, não cogitar quantas vidas teriam sido poupadas se os bilhões de reais desviados nos governos anteriores tivessem sido investidos em saúde, segurança, educação, infraestrutura, geração de emprego.

Negacionismo e milícias matam. Corrupção e ineficiência também.

Ainda há tempo de viabilizar uma alternativa cujo projeto político seja de reformas, não de manutenção de privilégios. Que não transforme distribuição de renda em curral eleitoral. Que seja capaz de transcender o antipetismo e o antibolsonarismo e evitar que o país continue refém de um jogo maniqueísta cujo resultado sabemos — na carne — qual é.

Reelaborando o primeiro parágrafo, Lula é a segunda pior coisa a ter acontecido ao Brasil. A pior terá sido Bolsonaro — porque é por causa dele que corremos o risco de ter Lula de volta.

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O PARADOXO DA ESQUERDA

Merval Pereira, O GLOBO 

A esquerda brasileira está diante de um paradoxo que pode derrota-la ao promover passeatas como as de ontem, por todo o país, contra o governo Bolsonaro. Estou convencido de que se não tivéssemos a pandemia, as manifestações de rua já teriam criado um clima político favorável ao impeachment do presidente. Não é preciso levar em conta a ação do governo na pandemia para impedi-lo de continuar na presidência da República.

Antes disso, já havia cometido barbaridades, como as manifestações antidemocráticas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. A partir da divulgação daquele vídeo com o “golden shower”, logo no início de seu governo, Bolsonaro deu motivos suficientes para ser impedido de estar na presidência da República.  

Mas promover manifestações de rua neste ambiente de pandemia, ainda mais agora, com uma terceira onda de COVID-19 às portas, parece tão insensato quanto o desfile de motocicletas patrocinado por Bolsonaro, ou as aglomerações que ele promove a cada aparição pública.

É um paradoxo mortal termos uma CPI no Senado tentando fazer conexões entre o comportamento de Bolsonaro durante a pandemia com uma política premeditada de alcançar a imunidade de rebanho, e ao mesmo tempo se comportar como ele e seus seguidores, dando margem a que manifestações como essas sejam normalizadas.

Da mesma maneira, seria dispensável o empenho escancarado do relator da CPI, senador Renan Calheiros em incriminar o presidente se ele conseguisse fazer perguntas tão objetivas quanto as respostas que exige dos inquiridos. Chega a ser impertinente a maneira como ele interrompe os depoentes, impedindo que terminem sua argumentação.

Uma coisa é se empenhar em não deixar que as testemunhas tentem ganhar tempo sem explicar direito como as coisas se passaram. Outra é cortar pelo meio as respostas, ficando apenas com as partes que interessam ao seu modo de ver as coisas. Acho que ele está no caminho certo, mas se atrapalha com as próprias pernas no caminhar. As incoerências ficam patentes à medida que os depoimentos prosseguem, e não é preciso ser tão irritadiço ou apressado para chegar a uma conclusão.

As aglomerações que o presidente Bolsonaro continua a promover, e as bravatas com que impressiona seus seguidores o incriminam, mas a oposição nas ruas validam essas manifestações, não levando em conta o momento crítico que estamos vivendo. Uma terceira onda cada vez mais provável é a condenação do presidente Bolsonaro e das políticas sanitárias insanas que seu governo patrocina.

Já há documentos suficientes para provar que o governo postergou a compra de vacinas, se não por deliberação assassina, por incompetência que levou ao mesmo triste fim. De uma maneira ou de outra, o governo Bolsonaro é culpado pelos mortos brasileiros atingirem números estratosféricos, caminhando para, proporcionalmente, ser o maior do mundo.

Talvez a tragédia indiana impeça que atinjamos esse triste recorde, mas quase certamente ultrapassaremos os Estados Unidos, que estão contendo a pandemia enquanto nós continuamos com ela descontrolada. Uma pandemia como essa exigiria, desde seu início, um governo diligente que mobilizasse o país como em uma guerra, que é o que estamos vivendo.

A mobilização, no entanto, foi no sentido de negar a gravidade da doença, e a tragédia não está sendo maior ainda porque os estados e municípios assumiram uma autonomia federativa, respaldada pelo Supremo Tribunal Federal, que certamente amenizou os efeitos da doença com lockdowns e distanciamento social, a obrigatoriedade do uso de máscaras, que o presidente Bolsonaro contesta até mesmo no Supremo.

Como se o direito de ir e vir fosse mais importante do que a saúde pública. Como se os governantes, especialmente o presidente da República, não tivesse obrigação de proteger seus cidadãos numa guerra. 

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PAZUELLO RESPONDEU A INQUÉRITO POR OBRIGAR SOLDADO NEGRO A FAZER PAPEL DE ANIMAL

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vítor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.

Depois de 16 anos, o antigo soldado ainda se lembra de tudo naquele 11 de janeiro de 2005. Chagas fora escolhido por um tenente para ajudar um colega a carregar uma banheira na carroça. “Ele não tinha como pegar sozinho.” Foi quando Pazuello apareceu. “Eu não estava pilotando o cavalo, estava na carroça. Quem estava era o outro garoto.” Mas foi ele o escolhido para o castigo pelo então tenente-coronel.

Ao ser questionado por que Pazuello tomou essa decisão, o ex-soldado disse acreditar em racismo. “Pelo meu tio eu botava para frente (na Justiça), mas eu dei mais ouvido ao meu pai, que é evangélico, por medo de represália. Isso aí agora está nas mãos de Deus, Ele é o Senhor de todas as coisas.”

A história do dia em que Pazuello mandou um jovem puxar carroça no quartel faz parte da carreira militar do homem que está no centro de uma das tantas crises do governo de Jair Bolsonaro: a presença do general de divisão da ativa no palanque montado pelo presidente na República para um ato no domingo, dia 23, no Aterro do Flamengo, no Rio, em apoio ao homem que busca a reeleição em 2022.

Filho de um comerciante de família sefardita estabelecida na Amazônia com uma gaúcha da fronteira, Pazuello considera ter entrado para a vida militar quando tinha 10 anos. Foi quando seu pai o matriculou no Colégio Militar de Manaus.

‘FE’

A empresa de navegação da família foi a inspiração para que o cadete da Academia Militar da Agulhas Negras escolhesse o Serviço de Intendência do Exército para seguir a carreira. O futuro ministro se formaria na turma de 1984 e logo pegou um atalho, que teria um grande impacto em sua carreira: o jovem oficial decidiu parar na Brigada Paraquedista e fez o curso de operações especiais, tornando-se ele mesmo um Força Especial (FE), o que garantiu um lugar em uma das mais exclusivas igrejas do Exército.

Foi entre os FEs, a turma da “faca na caveira”, que Pazuello encontraria companheiros que o seguiram até o Ministério da Saúde. São homens como os coronéis Élcio Franco, que se tornaria o secretário executivo da pasta e carregava o broche de FE no terno, e George Divério, o superintendente da Saúde no Rio nomeado por Pazuello e defenestrado após tentar contratar sem licitação empresas para reformar prédios. Foi ainda na Brigada e entre os FEs que Pazuello conheceu o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, outro Força Especial.

Na Brigada, o general conheceu ainda o futuro presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, o homem que 35 anos depois fez dele ministro na maior crise sanitária do século e o demitiu quando o número de mortos atingiu 279 mil, para depois chamá-lo de “nosso gordinho” no palanque no Rio. Ganhou fama de duro entre os subordinados quando estava na 1.ª Região Militar. E, no Depósito de Munições, se viu às voltas com uma investigação sobre o desvio de munição excedente do local para ser vendida como sucata. Foi na mesma época em que o futuro ministro conheceu o recruta Chagas.

Na época, a 1.ª Região Militar resolveu pela abertura do Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a conduta do oficial. O Estadão encontrou o recruta ainda com medo. Não queria falar por telefone, mas tinha consciência de que a situação que colocava Pazuello em evidência também o levaria a ser procurado por jornalistas. “É sobre o general Pazuello?”, questionou Chagas ao atender ao telefonema. Ele tinha receio de contar pelo telefone o que lhe acontecera no quartel há tanto tempo.

Naquele dia, ele estava na carroça com o também soldado Celso Tiago da Silva Gonçalves. No Inquérito Policial Militar do caso, o soldado disse que estava com o ombro machucado e por isso “não poderia cumprir a ordem de puxar a carroça”. “Foi prontamente atendido pelo tenente-coronel”, conforme registrou a procuradora-geral militar Maria Ester Henrique Tavares, que decidiu arquivar o caso.

O episódio seria um ponto fora da curva na carreira do oficial? O Estadão procurou sua defesa e antigos colegas. Poucos se dispuseram a falar – seu advogado, Zoser Hardman, não respondeu à reportagem. Dois oficiais – um colega de turma e outro que foi seu colega na Brigada – demonstraram restrições à narrativa do “especialista em logística” que levou o oficial à Saúde. Disseram que ele tinha uma fama imerecida, que, se não fosse a “Igreja FE”, não teria recebido o comando da 12.ª Região Militar (Manaus), cargo normalmente reservado aos integrantes das Armas, como infantes e artilheiros, e não a intendentes, como Pazuello.

Candidato

As alegadas humilhações ao soldado não impediram Pazuello de seguir sua carreira. Após o depósito, ele comandou o 20.º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista. E seria mandado à Amazônia para coordenar a Operação Acolhida dos imigrantes venezuelanos. No governo de Jair Bolsonaro viraria ministro da Saúde. A exposição pública poderia lhe garantir a candidatura a um governo estadual ou ao Senado.

É que ninguém mais se lembrava do argumento usado pelo tenente-coronel para se livrar do IPM da carroça. Além de dizer que ele tratava os subordinados com “seriedade e dignidade”, a defesa usou depoimentos de outros militares para atestar que Pazuello não quisera impor maus-tratos ao recruta. “Há aspectos pessoais da vida de Pazuello que demonstram sua familiaridade e, sobretudo, amor aos equinos.”

Tudo se resolveu assim. Pazuello não quis humilhar o soldado; só orientá-lo “para a preservação da boa saúde dos cavalos de tração utilizados na OM (organização militar)”. Quinze anos depois, promovido a general de divisão, Pazuello se viu de novo diante dos limites da disciplina. O afeto e a obediência a Bolsonaro – “É simples assim: um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho” – o transformaram em alvo da CPI da Covid.

Um mês antes, Pazuello esteve em evento político

Um mês antes de comparecer ao comício de Jair Bolsonaro no Aterro do Flamengo, no Rio, o general de divisão Eduardo Pazuello participou de evento político do governo, em Manaus, que foi encerrado pelo presidente com seu slogan da campanha eleitoral de 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Tratava-se da inauguração do Centro de Convenções do Amazonas, que se transformou em ato de desagravo a Pazuello e à política do governo na pandemia nas vésperas da abertura da CPI da Covid, no Senado. O ministro do Turismo, Gilson Machado, abriu a cerimônia. Saudou os colegas ministros presentes, como general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), deputados federais e os comandantes militares. Em seguida, disse: “Eu quero fazer uma saudação especial. Cadê o general Pazuello? Cadê ele? Venha cá”. A claque bolsonarista interrompeu Machado aos gritos: “Pazuello! Pazuello!”

O ex-ministro da Saúde havia voltado ao Exército e estava à disposição do Comando Militar da Amazônia – naquele dia seria transferido para a Diretoria-Geral de Pessoal, em Brasília. Já havia, portanto, sido revertido à ativa e, como militar da ativa, não poderia participar de atos político-partidários. Trajando roupas civis, Pazuello foi abraçado por Bolsonaro, que acenava ao público como uma celebridade.

Machado continuou: “Fui testemunha da luta desse homem pela erradicação da doença em nosso país”. Pazuello agradeceu. “Obrigado.” E voltou para seu lugar no palanque. Machado prosseguiu com a defesa da ação do governo na pandemia. Depois, Bolsonaro agradeceu o trabalho de Pazuello no ministério. O evento durou pouco mais de 50 minutos e foi encerrado por Bolsonaro com o slogan da campanha de 2018.

Para o ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, a presença de Pazuello no Aterro do Flamengo não foi a única vez que o militar comparecera a evento político. “Essa não foi a primeira vez.”

O caso está nas mãos do Comando de Exército, que decidirá se pune o general por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército. O comportamento de Pazuello, como sua presença no evento em Manaus, será levado em consideração.

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UMA BOA REFORMA TRIBUTÁRIA FICOU MAIS DISTANTE

Maílson da Nóbrega, O Estado de S.Paulo

O término da Comissão Especial da PEC 45 na Câmara dos Deputados, decidida por seu presidente, Arthur Lira, foi um duro golpe nas esperanças de dotar o País de um moderno sistema de tributação do consumo. Havia fundadas expectativas de aprovação daquela proposta de emenda à Constituição, que previa a criação de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), nos moldes do que há de melhor entre os mais de 180 países que adotam o método.

A PEC 45, baseada em estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), poderia superar as dificuldades enfrentadas por iniciativas semelhantes nos últimos 20 anos. De um lado, estribava-se no melhor dos projetos, cujo texto se beneficiou da experiência acadêmica, internacional e de governo de seus autores. De outro, obteve adesão unânime dos Estados, que antes se opunham a ideias de reforma da tributação do consumo para não perderem o comando do ICMS, usado para atrair investimentos via incentivos fiscais.

Houve amplo apoio de formadores de opinião e da imprensa à PEC 45. Ela sofreu, é certo, críticas de tributaristas apegados excessivamente a aspectos formais e à equivocada ideia de prejuízo à autonomia de Estados e municípios. Ao mesmo tempo, estudos indicaram que a reforma contribuiria para elevar em 20% a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB). Estimular-se-ia o abandono da guerra fiscal e a adoção de novas formas de atrair investimentos, na linha de práticas bem-sucedidas em outros países.

O presidente da Câmara preferiu aliar-se à estratégia do Ministério da Economia, que nunca demonstrou simpatia pela PEC 45. Inventou-se a ideia de reforma “fatiada”, que supostamente facilitaria a aprovação. O sistema tributário reclama mudanças nas suas demais partes: no Imposto de Renda, para restaurar a progressividade; no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para modernizá-lo (seu conceito nasceu há 60 anos); na tributação de heranças e doações, para torná-la progressiva. Pode-se falar em etapas, e não em “fatiamento”.

O caótico sistema tributário é hoje a principal fonte de ineficiências da economia. Inibe ganhos de produtividade. Freia a expansão do PIB e a geração de emprego e renda. A essência do desastre é a tributação do consumo e suas cinco confusas incidências: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A mais irracional de todas é o ICMS, impregnado de incontáveis regimes e inúmeras alíquotas.

Esperava-se que o governo federal se envolvesse na tramitação da PEC 45, que criava o Imposto sobre Bens e Serviços e substituía as cinco incidências, incluído o ICMS. A liderança da União e sua capacidade de coordenação podiam melhorar seu conteúdo, fortalecendo as condições para sua aprovação. Optou-se, todavia, por uma solução tímida e insuficiente – a fusão do PIS e da Cofins – que pode duplicar a tributação das telecomunicações e enfrentar a oposição das áreas de serviços e de venda de livros. Parte dessa resistência também existe na PEC 45, mas, já que haveria consumo de capital político, o razoável seria apoiar a PEC 45, e não buscar solução pouco ambiciosa.

Para piorar, o Ministério da Economia cogita de recriar a CPMF com outro nome, associada a elevação do emprego. A ideia incorre em dois erros. Primeiro, reintroduz incidência tributária em cascata, de efeitos negativos na intermediação financeira e na produtividade. Em segundo lugar, a literatura indica que medidas como essa aumentam a renda para os trabalhadores, e não postos de trabalho. Adicionalmente, a nossa experiência prova que tributos fáceis de arrecadar, como a CPMF, terminam sendo a válvula para momentos de dificuldades fiscais. A correspondente elevação da alíquota tende a ser frequente, elevando os danos à economia e à sociedade.

O presidente da Câmara atuou como o juiz de futebol que apita o fim do jogo no meio da partida e pede a bola para se juntar a outro time, de qualidade inferior. Com a opção pelo adversário, dificilmente ganhará o campeonato. Pior, a decisão ocorreu quando o relatório era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da PEC 45. Ele havia sido instado a tanto pelo próprio Arthur Lira. Inacreditável. O deputado, que se dedicara por quase dois anos à missão, produziu um bom documento.

O texto contém saídas para contemplar distintas demandas, incluídas as do setor de serviços. Cria um oportuno imposto seletivo para lidar com externalidades como as decorrentes da poluição e do consumo de fumo e de bebidas alcoólicas. O próprio governo ganharia tempo para discutir a constituição do Fundo de Desenvolvimento Regional, demandado pelos Estados para manter a capacidade de atrair investimentos, sem os defeitos da guerra fiscal.

A extinta comissão, não prevista em regimento, pretende continuar seu trabalho, acolher emendas ao relatório e apresentar a versão final em breve. O exame da matéria pode continuar no Senado, mas com menos força. Além disso, o timing da reforma foi perdido. Agora é torcer para que a PEC 45 renasça no próximo governo. O custo do adiamento será enorme.

ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA,FOI MINISTRO DA FAZENDA

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PESSIMISMO EXAGERADO DA OPOSIÇÃO PODE FAVORECER BOLSONARO ATÉ 2022

Vinicius Torres Freire, Folha de S.Paulo

O Brasil sob Jair Bolsonaro tem sempre algo de bom, diz uma piada sarcástica que corre nas redes sociais: a situação desta semana é sempre melhor do que a da semana que vem. O gracejo faz pensar na atitude da esquerda e da oposição. Em geral, esperam que Bolsonaro vá cair de podre ou assim vá chegar à eleição.

A mera sugestão de que pode não ser assim provoca acusações de delírio otimista a respeito da economia e da Covid. Mas pode haver condições objetivas para que o governo esteja em melhor situação daqui a seis meses ou um ano –se vai estar, depende também do confronto político.

O pessimismo exagerado é uma espécie de otimismo negligente que pode custar caro a quem queira derrotar Bolsonaro em 2022. Tentar fazê-lo antes disso já parece fora de questão. O plano é aquele clichê: “deixa sangrar”.

Vai sangrar? Pode ser até pior, dadas as incertezas. Há riscos imponderáveis, do tamanho de um vírus mutante que talvez venha a matar ainda mais e reiniciar a epidemia do zero, driblando as vacinas e as imunidades dos já infectados. Nossa burrice selvagem nos habilita até a essa catástrofe. Uma seca pior do que a prevista pode causar um apagão. Etc.

Afora desastres, porém, a perspectiva destes dias é de despiora mais rápida da economia e lento recuo da epidemia depois da metade do ano.

Quanto à epidemia, a atitude é de “já acabou”, visível em ruas, conversas e políticas estaduais de restrição, cada vez mais relaxadas e rendidas. Bolsonaro venceu. Não há tentativa de controlar a Covid, apenas a lotação de UTIs, se tanto. Encara-se a morte, por necessidade ou futilidade, como este jornalista via na sexta-feira em São Paulo, de aglomerações desmascaradas em padarias, botecos e bares, em pleno repique.

Talvez o fato de mais de um terço da população adulta já ter ficado doente ou tomado ao menos uma dose de vacina colabore para a “nonchalance” suicida ou, melhor, homicida. Difícil imaginar que a preocupação crítica aumente quando houver mais vacinados e menos mortes.

Isso vai acontecer, afora naquela hipótese de criarmos o coronapet, o vírus vira-lata nacional assassino. Quase 100% da população adulta deve ter tomado a primeira dose de vacina em novembro; 80%, as duas doses. Um país acostumado a 2 mil mortes por dia pode ficar ainda mais indiferente com meros 300 cadáveres diários. Pode ser que brote uma memória raivosa do horror passado? Até pode, o que depende também de política de oposição, que não há.

Despiora econômica significa PIB crescendo entre 4% e 5% em 2021, com o que o nível de produção e renda voltaria ao que era em 2019. Decerto “PIB” é uma abstração. Na prática, pode não encher barriga, necessariamente. Ainda que o faça, pode não satisfazer o eleitorado (a revolta de 2013 ocorreu quando o país vivia com a renda mais alta desde sempre).

A fase viral da crise brasileira de quase oito anos terá efeitos duradouros. A inflação alta, da comida em particular, vai reduzir a renda dos mais pobres por mais de um par de anos. O desemprego duradouro vai incapacitar muitos para o trabalho; permanecerá alto no mínimo porque a economia deve operar abaixo da capacidade ao menos até 2023. A adaptação técnica à recessão da Covid deve acelerar a crise estrutural do trabalho. Isto posto, são consideráveis as chances de despiora do PIB em 2021: isso quer dizer apenas alívio, não melhora “estrutural”.

Além do mais, o governo “vai para o ataque”, como diz Paulo Guedes. Haverá pacotezinho social e favores para falanges bolsonaristas, como a dos caminhoneiros. Haverá grande perdão de impostos, para pequenas empresas em particular. Guedes articula agrados à indústria. Há jabutis de favores até privatização (a da Eletrobras). Há um esquema azeitado para adquirir apoio de parlamentares.

A oposição vaporosa que existe está inebriada pela ideia de “crise social e econômica” terminal para Bolsonaro. Além de não pensar no passado que nos conduziu a este desastre, não olha seis meses adiante. A “despiora” é profecia? Não. É um alerta.

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"BOLSONARO TRANSFORMOU AGENTES PÚBLICOS EM VASSALOS COM DISPUTA POR CADEIRA NO STF"

Rodolfo Borges e Naiara Galarraga Gortázar, EL PAÍS

Acostumado a analisar pelo lado de fora as dinâmicas político-jurídicas do país, o professor de direito Conrado Hübner Mendes foi tragado para o centro do debate pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. O indicado por Jair Bolsonaro para a Procuradoria Geral da República (PGR) não gostou de ser chamado de “Poste Geral da República”, entre outros desabonadores, numa série de críticas sobre suas supostas omissões à frente do Ministério Público Federal. A apresentação de uma queixa-crime contra o jurista é vista pelo meio político e acadêmico brasileiro como mais uma das tentativas intimidação do Governo contra seus críticos, apesar de a máquina pública não ser usada no caso.

Na entrevista abaixo, feita na terça-feira por videoconferência, Hübner, professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Análise a Liberdade do Autoritarismo, fala sobre a atuação de Aras, aparentemente condicionada pela promessa de uma indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ele também analisa os desafios e dilemas internos do tribunal ―explorados nesta semana em seminário online do Foro Inteligência que pode ser assistido abaixo― para enfrentar a “estratégia governamental de inundar o STF com casos difíceis” e “gerar uma fadiga da legalidade”.

Pergunta. Como interpretou a queixa-crime apresentada pelo procurador-geral da República?

Resposta. O clima de tensão e vigilantismo ideológico no país vem se intensificando nos últimos anos, precede o Governo Bolsonaro. Se manifesta, por exemplo, no movimento Escola sem Partido. Mais recentemente, há uma tentativa de instrumentalizar a justiça para intimidar. O alvo desse “Estado de intimidação”, como chamei numa coluna, é a comunidade acadêmica, a comunidade dos críticos. Meu caso é bem peculiar, porque é uma ação penal privada. Ele [Aras] não está usando a máquina do Ministério Público para me processar. Diferente de outros casos recentes, em que o Governo usou de seu aparato como ferramenta de intimidação, muitas vezes com base na lei de segurança nacional, o meu caso é de um ator que não é do Governo, apesar de ser reconhecido como apoiador e colaborador do Governo.

P. Você considera que o Ministério Público foi capturado pelo Governo?

R. O Ministério Público Federal vive uma luta interna, entre o chefe, que tem bastante autoridade e certas competências exclusivas, que só ele pode exercer —por exemplo, para processar o presidente. Se o presidente consegue capturar ou neutralizar o chefe do Ministério Público, ele se salva de investigações. Ao mesmo tempo, o Ministério Público tem essa característica da autonomia funcional para os procuradores. Com isso, eles podem fazer ações que incomodam o Governo, mas não uma investigação direta do presidente. Isso faz que a colaboração do chefe do Ministério Público gere muito dano.

P. Bolsonaro parece condicionar os movimentos do procurador-geral, entre outros, com a promessa de uma indicação para o Supremo Tribunal Federal.

R. Bolsonaro manejou isso como ninguém. É muito problemático, ele estimula uma competição permanente pela cadeira do STF. Isso é inédito nos outros presidentes, e começou quando a vaga ainda nem estava no horizonte. Acabou virando uma espécie de corrida por quem presta mais favores. E exige autoridades que se prestem esse papel. Augusto Aras, André Mendonça [atualmente advogado-geral da União], ministros do STJ [Superior Tribunal de Justiça]. E eles não têm nenhuma garantia de que o Bolsonaro de fato vai, por gratidão, premiá-los com uma cadeira [quando o ministro Marco Aurélio Mello se aposentar, em julho]. No caso da primeira nomeação [de Kassio Nunes Marques], foi exatamente isso que aconteceu: o Bolsonaro no final nomeou alguém que era completamente desconhecido.

P. Como seria possível evitar que isso volte a acontecer?

R. Uma regra de quarentena. Se a pessoa é ministro do Governo ou procurador-geral da República, não poderia ser imediatamente nomeado ao STF. O procurador-geral da República precisaria, sei lá, esperar dois anos depois de terminado o mandato de procurador para que possa ser nomeado ao STF. Defendo que isso valesse para ministros de Estado também, porque deveria valer para advogado-geral da União. Foi ridícula essa competição travada entre o procurador-geral da República, o advogado-geral da União e o ministro da Justiça. Essas pessoas não podem ser seduzidas por isso, eles não podem receber e ter seu comportamento, influenciado por uma promessa de prêmio, por serviços prestados. Bolsonaro percebeu esse ponto cego da Constituição, percebeu que poderia, por meio desses sinais e estímulos por especulações na imprensa, transformar agentes públicos em vassalos do Governo. Augusto Aras é um vassalo, André Mendonça é outro. Quando ele falou em nomear um “ministro terrivelmente evangélico”, passaram a surgir evangélicos, passaram a falar da Bíblia. É uma competição muito explícita.

P. Por outro lado, curiosamente, o STF assumiu uma função de contrapeso perante o Governo.

R. Sim, eu não diria que é um contrapeso suficiente ou sem falhas e hesitações, mas sem dúvidas é um contrapeso. O Poder Judiciário é o local onde ainda se vê alguma espaço para de resistência, de oposição, de tentativa de contenção. Mas também está muito longe de ser homogêneo. Há uma fração do Poder Judiciário que se mostra em sintonia com o pensamento e a atitude e sensibilidade bolsonarista. Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal ainda não foi capturado pelo bolsonarismo. Esse é um dos grandes foros de tentativa de imposição de limites. Não surpreende que o STF seja um dos maiores alvos de ataque também do Governo.

P. Esse contrapeso está sendo feito dentro dos limites das atribuições do STF? Ou as críticas de atuação política dos apoiadores de Bolsonaro fazem sentido?

R. É importante caracterizar bem o que que a gente vê como manifestação política do STF. Isso, sim, é muito prejudicial: a falta de colegialidade, a falta da percepção de que aquilo é uma instituição acima dos onze ministros e de que é importante o STF se manifestar institucionalmente, não individualmente. Porém, é uma característica já enraizada no STF de muito tempo, o fato de que cada juiz se vê como um indivíduo legitimado a opinar, a comentar, seja sobre política nacional, seja sobre casos específicos do STF. A individualização do STF, a fragmentação do STF em ministros particulares, prejudica o tribunal. É uma espécie de desvio ético.

Essa normalização de que ministro pode ser um comentador da política, que o ministro pode ser um palestrante em grandes organizações, de grupos sociais como os empresários, a ideia de que o ministro do STF pode fazer palestra na Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], num banco, para os clientes especiais de um banco. Um banco tem interesses no STF, industriais têm interesse no STF. Isso é muito perverso e desnatura um pouco certos rituais de imparcialidade. O STF é absolutamente indisciplinado nos mandamentos éticos muito elementares da conduta judicial.

P. Como isso prejudica a atuação do tribunal?

R. Todo tribunal com a estatura de um tribunal superior ou de uma suprema corte como o STF lida com casos, em geral, bastante explosivos. São casos que tocam em grandes interesses, em grandes forças sociais e econômicas. Para esse tipo de caso, um tribunal precisa administrar um capital, precisa ter respeitabilidade, para que as suas decisões sejam levadas a sério. Em última instância, para que suas decisões sejam respeitadas. Então, ele não pode ser percebido como um lugar da promiscuidade, da indisciplina, da absoluta arbitrariedade, da seletividade. Na medida em que tribunal desrespeita esses mandamentos básicos para o comportamento judicial, o seu capital político é prejudicado.

P. Qual o impacto desse comportamento especificamente na relação com o Governo Bolsonaro?

R. Tem algo importante que não é exatamente culpa do STF: uma forma de tentar minar o capital político do STF. É a estratégia governamental de inundar o STF com casos difíceis. O Governo vem produzindo decretos com uma ilegalidade ou inconstitucionalidade flagrante, sabendo que são decretos de ilegalidades flagrantes, mas, ao mesmo tempo, sabendo que o tribunal não vai ter capital político suficiente pra controlá-los. Mesmo que o STF não tivesse nenhum desses defeitos, mesmo que fosse a Corte Constitucional sul-africana ou colombiana, duas grandes referências, pra não citar referências europeias… Elas não têm condições políticas de lidar com 50 casos explosivos ao mesmo tempo. Cada um gera muito desgaste.

P. De que tipo de caso estamos falando?

R. Um é o do armamento, o decreto das armas. Do ponto de vista jurídico, é trivial, é um decreto ilegal. Mas o Governo fica jogando com o STF, sabendo que o STF pode até controlar aqui, ali, mas não vai conseguir controlar tudo. Outra área é a ambiental, O STF também teve uma postura importante sobre política sanitária, no caso da pandemia, quando determinou que Estados e municípios têm competência pra estabelecer normas. Não é exagero dizer que o STF tem sido muito importante neste momento, mas, ao mesmo, é sempre importante olhar o que o STF está escolhendo não decidir.

P. Como assim?

R. O STF tem muita liberdade pra não decidir casos. Pode decidir em um mês ou pode jogar o caso para 20 anos mais tarde. É uma distorção, uma aberração, mas dá muita margem política para o tribunal. Enfim, o STF ainda sobrevive como uma instituição que faz contrapeso ao Governo. Ao mesmo tempo, ele tem um grande adversário: um Governo que quer gerar o que eu poderia chamar de fadiga da legalidade. O STF não vai dar conta dessa gente, de casos tão pesados. Então, tem que escolher, um aqui, um ali, e administrar a pauta, porque ele sabe que o seu capital político não é infinito. Eles sabem que tem gente fazendo manifestação pelo fechamento do STF. O tribunal está sendo alvo como nunca foi de um discurso muito violento, que atinge não só a instituição, mas os ministros individualmente. Alguns ministros já foram ameaçados de morte. Coisas de típicas de um movimento de extrema direita.

P. Como corrigir os rumos do STF, se teoricamente isso só depende dele mesmo?

R. É muito difícil imaginar mecanismos que possam submeter a controle o STF e seus ministros. É muito difícil controlar grandes autoridades, o STF ainda mais. O ideal é que ele fosse um órgão colegiado, que passasse por uma revolução de ética judicial. Se tornou muito comum no STF a liberalidade nas decisões, quando o juiz tomar decisões monocráticas, liminares. São decisões preliminares, mas que geram efeitos irreversíveis, interrompem um processo legislativo, e foi um ministro sozinho que tomou. É um problema do individualismo do STF, não apenas o fato de que seus ministros falam pelos cotovelos sobre tudo. Eles tomam decisões sozinhos também, ou obstruem a pauta do Supremo. Esse tribunal fragmentado é muito custoso para o capital político. Combater e reduzir esse grau de fragmentação do STF é importante.

P. Há quem atribua essa fragmentação à transmissão dos julgamentos ao vivo. Você concorda?

R. A TV Justiça precisa ser bem compreendida. Não é um debate sobre ser a favor ou contra. Ela é importante para trazer algum grau de transparência ao STF. Perverso é a ideia de que a TV Justiça deve transmitir todas as reuniões e todas as sessões, tudo que acontece no tribunal. Ela pode cumprir um papel educativo, tem programas interessantes sobre temas, recados e decisões do STF. Mas gera obscuridade quando põe os ministros sob holofotes e câmeras. São elementos que valorizam, intensificam e incentivam a individualidade. Eles falam paras as câmeras, e isto gera um tipo de populismo judicial. No caso do mensalão, cada voto era um voto lido com teatralidade para o povo brasileiro. Não tinha nada a ver com uma deliberação judicial, tinha a ver com um discurso, naquela histeria anticorrupção, do Judiciário envolvido numa grande causa nacional de combate à corrupção, que se aprofundou com a Lava Jato. A maior transparência que o tribunal pode oferecer é a clareza da argumentação constitucional das suas decisões. A TV Justiça não é a única causa da cacofonia do STF, mas um incentivo para o enrijecimento dessa cacofonia.

P. O processo de impeachment de um ministro, que vem sendo cobrado por apoiadores de Bolsonaro, ajudaria ou atrapalharia nesse processo de unificação do STF?

R. O único mecanismo externo que resta na Constituição brasileira [para interferir no STF] é essa ideia quase fictícia de impeachment, porque isso nunca aconteceu, e é um instrumento muito dado a abusos. Você passa a pedir impeachment de ministro porque discorda das suas decisões. Isso é um ataque muito sério à independência judicial, e há um número recorde de pedidos de impeachment de ministro do STF. Era uma coisa muito incomum e, nos últimos dois anos, se juntaram pelo menos duas dezenas. O pedido de impeachment de ministro do STF é uma bomba muito perigosa. É preciso ser um caso muito flagrante de violação da lei, precisa ter muito consenso, porque é algo mais delicado do que o impeachment de qualquer outro ministro ou mesmo do presidente.

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O 29M FOI GRANDE E IMPORTANTE. E AGORA, O QUE ESPERAR ?

Vera Magalhães, O GLOBO

Muitas dúvidas, de diversas naturezas, cercaram a organização dos atos deste 29 de maio, convocados por múltiplas organizações, diversos partidos e diferentes correntes políticas, pelo impeachment de Jair Bolsonaro e exigindo responsabilização do presidente e de seu governo pela decisão de não comprar vacinas contra o novo coronavírus, o que agravou a pandemia de covid-19 no Brasil.

Já na segunda-feira passada escrevi a esse respeito, apresentando os dilemas colocados para os cientistas, para os políticos que até então vinham apontando o negacionismo de Bolsonaro e as aglomerações por ele incentivadas, e para a imprensa. Mas a oposição acabou levando adiante a organização dos atos, fazendo questão de marcar importantes distinções com os eventos bolsonaristas, principalmente no incentivo ao uso de máscaras de alta proteção, como as PFF2, e a distribuição gratuita das mesmas em todas as cidades onde as manifestações ocorreram.

Os debates acerca da oportunidade de realização de grandes atos, mesmo com esses cuidados, quando se avizinha uma terceira onda, vão continuar ao longo dos próximos dias. Jornalisticamente, há muitos enfoques a adotar nessa cobertura, que precisa ser feita.

Mas não é possível ignorar que as manifestações ocorreram e, ao menos na praça mais emblemática de atos políticos nas últimas décadas, a avenida Paulista, no coração de São Paulo, ela foi robusta, não ficou restrita aos partidos de esquerda e mostrou a existência de uma oposição vigorosa, disposta a desafiar até as recomendações sanitárias que continuam em vigor, para expressar sua indignação e o sentimento de que uma boa parcela da sociedade não aceitará mais que o presidente siga tentando ocupar sozinho o espaço público, quase sempre zombando da pandemia, negando sua gravidade, ignorando o sofrimento das famílias enlutadas, promovendo desinformação a respeito da propagação da covid-19 e fazendo ameaças golpistas contra adversários e aqueles que não são seus seguidores.

As ruas mostraram, pela primeira vez desde que a pandemia começou, o que as pesquisas de opinião já mostravam sem fotos: que aqueles que rechaçam Bolsonaro e sua política negacionista são em maior número que aqueles que o apoiam. A pé, os oposicionistas foram às ruas em maior número que os motorizados e barulhentos motociclistas de Bolsonaro, um fim de semana antes.

E agora, o que esperar?

A forma acabrunhada com que os bolsonaristas reagiram, nas redes sociais, aos atos do 29M mostra que sentiram o golpe. Resta saber se vão dobrar a aposta, promovendo outras manifestações para tentar medir forças com os oposicionistas nas próximas semanas.

Isso nos leva ao dilema que havia antes dos atos deste sábado: por mais que se tomem cuidados como o uso de boas máscaras, manifestações desse tipo promovem aglomerações difíceis de controlar (dicas como “fique com os que moram com você” soam entre ingênuas e inócuas, se não forem apenas para inglês ver, mesmo).

A terceira onda de contágio da pandemia é uma realidade: como se portarão cientistas que até aqui têm defendido que a vida é mais importante que a política (e é, mesmo)? E os políticos que têm apontado negacionismo de Bolsonaro, mas neste fim de semana entoaram clichês negacionistas como “o governo mata mais que o vírus”? Vale o mesmo para nós, jornalistas, para artistas e todos os que até aqui se posicionaram do lado da Ciência. Esse compromisso não pode mudar em nome de um duelo infantil que, no fim, vai resultar no aumento de casos e, consequentemente, de mortes. Dos dois lados.

A resposta mais robusta precisa vir das instituições. O fato de as ruas antibolsonaristas terem falado em voz alta, desafiando a pandemia, serve de alerta para os mercados, que vinham numa euforia histérica, e para o Centrão, que fecha os olhos a tudo em nome de polpudas verbas de emendas, abertas ou secretas: não será possível esquecer só à base de 4% do PIB a escalada de morte, fome, miséria, retrocesso educacional e de liberdades e chegar a 2022 com o discurso irresponsável de que a economia terá voltado a crescer.

Além de tudo porque nada indica que esse crescimento será vertiginoso como cantam as patativas do mercado. Basta ver a crise de fornecimento de energia elétrica que começamos a observar, isso com a economia girando bem devagar.

Quanto tempo o Centrão ficará com o governo, agora que está evidente que ele é repudiado por grandes parcelas da sociedade, gente de toda cor partidária, gente que votou em Bolsonaro em 2018, gente que perdeu parentes e não aceita a falta de respeito e de providências diante da tragédia?

Saber se vai começar o desembarque dos políticos é o passo mais decisivo para concluir se o 29M terá consequências. E se existe alguma chance de impeachment, hipótese hoje bastante remota, para não dizer praticamente impossível. 

É preciso inteligência e responsabilidade da parte dos opositores do presidente. O silêncio de Lula diante dos atos de sábado não é à toa: ele ao mesmo tempo evitou a armadilha de ajudar a carimbar as manifestações como exclusivamente petistas, como se preservou para não ser acusado de negacionista.

A mesma discrição foi vista por opositores que também são governantes, e sabem que amanhã podem ter de adotar novas medidas restritivas de atividades econômicas, e não querem correr o risco de serem acusados de hipócritas ou incoerentes.

Não é simples guiar esse barco num mar que inclui icebergs e nevoeiro para todos os lados. Mas Bolsonaro está cada vez mais acuado pela CPI e, agora, pelas ruas.

Nesse sentido, o recado do 29M foi bem dado. E histórico.

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A VIOLÊNCIA DA PM EM RECIFE E O PERIGO DE CONFLITOS EM 2022

Malu Gaspar, O GLOBO

A comparação entre a postura da Polícia Militar nos protestos do último sábado, contra Bolsonaro, e na manifestação do final de semana anterior, a favor do presidente, traz um alerta preocupante para as eleições de 2022: o de que o bolsonarismo enraizado nas polícias e a insubordinação contra governadores de oposição ao presidente possa  provocar ainda mais conflitos num ambiente político já polarizado e conflagrado. 

Na motociata a favor de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, havia mais de mil policiais militares, mas a única pessoa agredida foi um jornalista – e pelos próprios manifestantes, hostis à presença da imprensa. 

No ato em Recife, a escaramuça começou sem motivo aparente, e foi desencadeada pela própria PM – contra a orientação do chefe da polícia, o governador Paulo Câmara (PSB), que recomendava apenas acompanhar a manifestação e evitar excessos. 

Imagens registradas pelos manifestantes mostram que o ato transcorreu pacificamente até o final do trajeto, quando os policiais passaram a disparar balas de borracha e spray de pimenta sobre as pessoas.

Nas apurações preliminares, os PMs disseram ter disparado balas de borracha porque os manifestantes não se dispersaram no local combinado e seguiram caminhando por mais um trecho. 

Nos dias anteriores à manifestação, o Ministério Público estadual notificou o governo para que o ato não fosse permitido, mas a decisão final foi de autorizá-lo. 

Na confusão, ao final do protesto, a vereadora do PT Liana Cirne foi derrubada com um jato de spray de pimenta. E  duas outras pessoas que nem sequer participavam do protesto – Daniel Campelo da Silva, 51 anos, e o arrumador Jonas Correia de França, de 29 –, foram atingidos no rosto por balas de borracha disparadas por policiais militares. Daniel perdeu a visão no olho esquerdo e Jonas, no olho direito. 

O governador afastou os comandantes da operação, abriu um procedimento disciplinar e já determinou que as vítimas da PM sejam assistidas e indenizadas. Paulo Câmara também gravou vídeos em que repudia a ação violenta da PM. Mas não dá entrevistas, por exemplo, para não melindrar a polícia mais do que o que considera que seria razoável. 

Câmara tem diante de si um desafio pelo qual já passaram seus colegas de São Paulo, João Doria (PSDB), do Ceará, Camilo Santana (PT), e da Bahia, Rui Costa (PT)  – todos de oposição ao presidente da República. 

Em maio de 2020, atos pró e contra Bolsonaro convocados para o mesmo dia em São Paulo terminaram com conflito entre a PM e manifestantes contra o governo federal. 

Antes dos protestos deste final de semana, porém, Doria reuniu o Conselho de Segurança Pública de São Paulo e deu ordem expressa aos comandantes das polícias para que não houvesse agressão aos manifestantes. Desta vez, funcionou. 

A preocupação de especialistas e de governadores é que o caldo de insatisfação e de politização das tropas Brasil afora provoque ainda mais conflitos à medida que as eleições se aproximarem, com mais manifestações contra e a favor do governo. 

“As polícias militares são hoje um barril de pólvora”, diz  Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP.  “Os policiais estão à flor da pele. Eles gostariam de estar reivindicando melhores salários, mas para fazer isso teriam que bater no Bolsonaro, porque os salários estão congelados por ação do governo federal”, explica Lima.

Uma pesquisa publicada pelo Fórum no ano passado mostrou que 35% dos oficiais e 41% dos praças de todo o Brasil interagem em redes sociais bolsonaristas. Em geral, se posicionam de forma favorável ao presidente, que desde a pandemia alimenta conflitos com os governadores em torno da necessidade de isolamento social. 

“Essa contradição só aumenta a tensão na tropa”, explica Lima. 

No Ceará, em fevereiro de 2020, PMs fizeram um motim e pararam durante 13 dias por melhores salários. 

Situação semelhante aconteceu na Bahia, em março deste ano, quando um policial militar foi abatido depois de passar cerca de quatro horas dando tiros para o alto e gritando palavras de ordem no Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos de Salvador. Na ocasião, houve ameaça de greve, mas a paralisação acabou não acontecendo. 

Nos dois casos, os governadores ameaçaram punir os policiais, mas até hoje não foi divulgada nenhuma punição. 

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POLARIZAÇÃO E ATAQUE

Thiago Resende e Mateus Vargas, Folha de S. Paulo

Aliados de Bolsonaro reforçam polarização e atacam Lula após atos contra presidente

Aliados de Jair Bolsonaro reagiram às manifestações de sábado (29) contra o presidente de forma alinhada: inflaram o discurso de polarização e miraram ataques a Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O ex-presidente, segundo a última pesquisa Datafolha, aparece com vantagem para a disputa pelo Palácio do Planalto em 2022.

Lula não foi aos protestos de sábado e manteve silêncio, mas em diversas cidades houve declarações de apoio ao petista. Ele readquiriu o direito de disputar a eleição após o STF (Supremo Tribunal Federal) anular condenações da Lava Jato.

No sábado, os atos contra Bolsonaro reuniram milhares de manifestantes em várias cidades do país, incluindo todas as 27 capitais brasileiras. Liderados por centrais sindicais, movimentos sociais e partidos de esquerda, eles foram alvo de críticas por acontecerem presencialmente em meio à pandemia da Covid-19, que já deixou mais de 450 mil mortos no país.

Presidente Jair Bolsonaro gesticula, com a mão em frente ao seu rosto, enquanto caminha ao lado do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni UESLEI MARCELINO/Ueslei Marcelino – 06.mai.2021\REUTERSLeia Mais

De olho nas urnas, o PT evita atropelar a construção da candidatura e busca não associar a mobilização à força política de Lula.

Diante de um adversário com elevada rejeição e um cenário difícil inclusive na economia, a estratégia dos petistas é deixar que Bolsonaro se desgaste. A gestão da pandemia da Covid já é alvo de uma CPI no Senado.

Embora tenha rachado na preparação de sábado devido ao dilema de provocar aglomerações durante a pandemia, a esquerda não descarta a convocação de novos protestos contra Bolsonaro, com foco nas críticas ao combate da pandemia e a favor do impeachment.

O final de semana fez emergir entre os políticos a avaliação de que a eleição presidencial de 2022 foi antecipada. O mesmo diagnóstico é traçado por bolsonaristas e políticos de esquerda.

PT e PDT foram estimulados a traçar planos. Bolsonaristas tentaram minimizar a mobilização e afirmam que, agora, o presidente da República tem um salvo-conduto para ir a atos nas ruas.

Ao contrário das agitadas agendas dos últimos finais de semana, Bolsonaro se encastelou no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília.

No sábado, dia dos protestos, fez uma publicação em rede social segurando uma camiseta com a mensagem “imorrível, imbroxável, incomível” —mesmos termos usados recentemente por ele quando atribuiu a Deus a exclusividade de poder tirá-lo do cargo.

Lula também não se manifestou até a publicação deste texto. Na sexta (28), o petista atacou Bolsonaro, que, segundo ele, nunca trabalhou na vida. “Acha que eu tenho medo dele?! Eu nasci na rua, minha vida política é na rua”, escreveu o ex-presidente em rede social.

A estratégia do PT é deixar Lula mais afastado dos atos nas ruas para fazer um contraponto a Bolsonaro, que promove frequentes aglomerações durante a pandemia.

Bolsonaristas aproveitaram o ambiente de apoio ao petista nas manifestações para reforçar a percepção de polarização. A aposta é reeditar o antipetismo presente na campanha de 2018.

Líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) afirmou que as manifestações contra Bolsonaro colocaram a eleição já em pauta.

“A polarização está consolidada. A terceira via vai se dividir em muitas candidaturas. Como se diluem as candidaturas, a tendência é Lula e Bolsonaro no segundo turno”, disse Barros à Folha.

Para a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que é próxima de Bolsonaro, os atos pelo país tiveram baixa adesão, mas afirmou que a exceção foi São Paulo, cuja manifestação a impressionou.

“Mas precisará muito mais do que isso para o impeachment avançar”, disse Zambelli. Ela disse que o processo depende de crime de responsabilidade e vontade política, e não apenas de atos nas ruas.

Em ataque a Lula, a deputada afirmou que o apoio demonstrado ao petista durante as manifestações é uma “tentativa de levantar um defunto”.

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, também usou a estratégia de levar Lula ao centro da discussão.

“A maior propaganda gratuita que o Bolsonaro pode ter é o PT colocar essas bizarrices nas ruas novamente. O brasileiro precisa rememorar essa turma que estava escondida dentro de casa e só destilando ódio pelas redes sociais”, escreveu o ministro em uma rede social.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, saiu em defesa do governo nas redes sociais. “Ontem [sábado] mais uma máscara caiu”, escreveu. Segundo ele, a oposição só criticava “aqueles que vão para as ruas” por não conseguir mobilizar atos volumosos.

Os organizadores dizem que houve protestos no sábado em ao menos 213 cidades do Brasil e 14 do exterior, com cerca de 420 mil pessoas. ​Apesar de ampla adesão ao uso de máscaras, houve aglomerações que desrespeitam as recomendações sanitárias para evitar a transmissão da Covid-19.

A mobilização foi realizada pela Frente Brasil Popular, pela Frente Povo Sem Medo e pela campanha Fora Bolsonaro.

Apesar de os atos reunirem milhares, Barros disse que os protestos foram “dentro da normalidade” e não geraram preocupação no governo —em linha com o discurso de Zambelli. Já o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP) afirmou à Folha que as manifestações foram “pífias e vergonhosas”.

PT e PDT afirmaram que os atos mobilizaram mais pessoas do que o esperado, o que reforça o desgaste do governo diante da condução da crise sanitária.

Embora petistas e outros políticos de oposição afirmem, nos bastidores, que a melhor estratégia é prolongar o desgaste de Bolsonaro até a eleição, alguns nomes da esquerda declaram que o movimento nas ruas levanta discussões sobre um processo de afastamento do presidente.

Vice-presidente nacional do PT, o deputado José Guimarães (CE) disse que há pressão popular para que o Congresso abra um processo de impedimento. “Ninguém pode ficar surdo frente ao que aconteceu ontem [sábado] no país.”

“O presidente [Bolsonaro] é incompetente para gestão da crise da pandemia e ineficiente na apresentação de saída para a grave e brutal crise econômica que o Brasil vive”, afirmou Guimarães.

No entanto, para o presidente do PDT, Carlos Lupi, o cenário ainda não é favorável para um impeachment de Bolsonaro. “É um processo que depende muito do ambiente. É mais político do que técnico-jurídico.”

A partir da mobilização deste fim de semana, Lupi disse que vê com mais otimismo o desempenho do partido em 2022. O candidato a ser lançado deve ser o ex-governador do Ceará Ciro Gomes.

Na avaliação do presidente do PDT, é possível que, com o desgaste do governo Bolsonaro, haja espaço para um segundo turno entre Ciro e Lula.

“A inflação está muito alta. Foram muitos erros nesse governo. Isso deve jogar Bolsonaro apenas para o gueto da direita mais raivosa, abrindo chance para nós no segundo turno”, disse Lupi.

O secretário-geral do PT, deputado Paulo Teixeira (SP), afirmou que novas manifestações contra o governo devem ser convocadas, mas defende o uso de novos formatos, com menos riscos, como carreatas.

“Há um sentimento de que as pessoas já estão saturadas. Precisam se manifestar e mostrar cansaço em relação a essas políticas dele [Bolsonaro], a essa maneira dele de menosprezar a pandemia”, disse .

Os conflitos entre Lula e Bolsonaro vão ganhando capítulos. Em outro episódio de embate com Lula, Bolsonaro criticou na sexta, um dia antes das manifestações, o padre Júlio Lancellotti, que é próximo de Lula.

O petista postou em uma rede social na semana passada uma foto com Lancellotti e escreveu: “Estou disposto a viajar o país para levantar a cabeça do nosso povo e dizer: esse país é nosso. Esse país não é o país do ódio”.

Bolsonaro, ao comentar o episódio, questionou a integridade de Lancellotti. “Colocam o Lula com um padre pensando que fosse um padre realmente sério, responsável”, disse.

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COM PAZUELLO, INTEGRANTES DAS FORÇAS ESPECIAIS TOMARAM CONTA DA SAÚDE

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

Caro leitor,

“Qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer maneira” é o lema das Forças Especiais (FE). Foi dentro desse universo que o general Eduardo Pazuello viveu parte de sua carreira militar. Para os que o conhecem, mais do que intendente, Pazuello é um FE, uma das igrejas do Exército. A prontidão para enfrentar a fome, o frio e a fadiga desses homens na guerra pode ser excepcional. Mas aplicada à política pode ter efeitos desastrosos, além de produzir frases para cativar a internet.

Quando radicais se encontram diante de um obstáculo legal, por exemplo, eles podem reagir de duas formas: ou tratam a todos como idiotas, contando uma lorota que só os tolos ou condescendentes acreditam, ou buscam no histórico de indisciplina e baderna nos quartéis de nossa República a justificação para absolver as trangressões legais ou disciplinares. Costumam ver os colegas como “idealistas” e perdoam seu “temperamento”. Acreditam que tudo se resume a uma questão de modo, de forma e não de conteúdo.  

Para não ser expulso do Exército, Jair Bolsonaro, por exemplo, contou aos ministros do Superior Tribunal Militar (STM) a lorota dos quatro laudos que se contradiziam sobre sua caligrafia no croqui em que se mostrava onde seriam colocadas bombas. O jornalista Luiz Maklouf de Carvalho desmontou a mentira ao examinar os autos e ouvir as gravações da sessão do julgamento. Mas Bolsonaro conseguiu seu intento: a lorota fez o STM reverter a decisão do Conselho de Justificação que o expulsava por Exército.

Agora é a vez de Pazuello tentar contar mais uma lorota para brincar com a seriedade da disciplina militar. Quer ele afirmar que o comício de Jair Bolsonaro no Rio, após a motociata do dia 23, não era político nem partidário. Como Bolsonaro não está filiado a partido nem há campanha eleitoral, estaria tudo resolvido: Pazuello não teria cometido transgressão disciplinar. Para os colegas que o criticam, a defesa de Pazuello é um deboche. Um influente general da ativa não consegue entender por que Pazuello não pediu para ir para a reserva a fim de se dedicar à política, pois o intendente não tem mais a mínima condição de voltar a comandar nos quartéis.

Não só ele defende a punição do intendente que Bolsonaro quer evitar, fazendo o Exército engolir mais uma lorota. Entre os bolsonaristas, além da defesa dos argumentos de Pazuello, existem os que começam a tolerar abertamente a volta da política aos quartéis, escancarando um pensamento que para eles sempre lhes pareceu natural: todo militar faz política e é preciso saber quem está do nosso lado. É isso que escreveu para a coluna um coronel da Aeronáutica, intendente como Pazuello. Ele ataca o general Santos Cruz por ter criticado Pazuello.

O coronel citou o histórico de seus colegas da Aeronáutica na participação em eventos políticos, como a proteção ao jornalista Carlos Lacerda, feita por oficiais da Força, o caso do grupo que esteve em frente da Escola Anne Frank, no Rio, para apoiar Lacerda no dia 31 de março de 1964 – os então coronéis Burnier, Dellamora, Paulo Victor e os capitães Mascarenhas e Leusinger. Falou ainda de Eduardo Gomes e sua participação na revolta do Forte de Copacabana, em 1922. Para ele, em termos de disciplina militar, nada disso é saudável, mas é inevitável. 

A condescendência com o comportamento de Pazuello mostra que muitos dos que o apoiam têm os mesmos defeitos que gostam de apontar nos políticos civis e no Supremo Tribunal Federal. Querem mesmo é ter um juiz amigo, que lhes dê sempre razão, ainda que não tenham do seu lado razão ou lei. Trata-se da república dos peixes, do compadrio, das igrejas, como aquela que une os forças especiais, permitindo a Pazuello e outros contar com uma rede de amigos que lhes arranja boas posições dentro e fora do Exército. Pazuello levou dois coronéis e um general FE para a Saúde: os coroneis Élcio Franco (secretário executivo) Geoge Diverio (representante no Rio) e o general Ridauto Lúcio Fernandes (diretoria de logística). Quais as credenciais deles para essa missão?

O capitão de mar e guerra Mário Sérgio Pacheco de Souza, o Doutor Pimenta, era uma lenda na área de informações. Fuzileiro naval, mantinha na sua mesa no Centro de Inteligência da Marinha (CIM) a foto de um homem careca com terno e gravata. Ele o chamava de “seu Chico”, o funcionário civil Francisco de Assis Lima, conhecido como Chico Pinote, homem do Cenimar. Um dia, disse à coluna: “Você sabe que é um força especial? Sabe aquele paraquedas com um círculo preto? Não duvide do que ele é capaz.” 

Anticomunista convicto, Mário Sérgio fizera nos anos 1970 o curso de operações especiais em companhia de policiais militares que mais tarde criariam o Bope, no Rio. Ele gostava de contar o exemplo de um colega fuzileiro que serviu de guia, a pé, para levar um Clanf (Carro Lagarta Anfíbio) pela orla até a praia de Copacabana, à noite. “O plano era, caso fosse necessário, retirar o papa Francisco, na Jornada Mundial da Juventude (em 2013), pelo mar.” Mário Sérgio morreu em 2020. Mas ele não é o único oficial das Forças Armadas que retrata os forças especiais dessa forma. 

O problema é quando a missão não é mais salvar a vida do papa, mas salvar a de todos os brasileiros durante a mais mortal pandemia do século. Essa não era uma missão qualquer. Nem devia ser executada de qualquer maneira, principalmente se isso significasse seguir ordens do presidente contra a compra de vacinas e o uso de máscaras. Nem o general da ativa pode comparecer a qualquer hora em evento político partidário ou obrigar um jovem soldado negro e evengélico a puxar uma carroça em razão de seu amor pelo equinos. A disposição para cumprir em um cargo de natureza civil qualquer missão, de qualquer maneira, é uma das chaves para compreender o desastre sanitário que assola o País. 

*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).

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