terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

COTAS, UM CASO DE SUCESSO

José Srney, OS DIVERGENTES

No final do século passado apresentei um projeto de lei que foi aprovado no Senado e atropelado na Câmara dos Deputados depois de muitos anos. Era muito simples, tinha apenas um artigo: estabelecia uma cota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo, nos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior.

Dois anos depois, em 2001, houve, na África do Sul, uma conferência internacional contra o racismo e a discriminação racial. O então Presidente da República, Fernando Henrique, determinou que a delegação brasileira levasse a proposta de cotas raciais para o ingresso na universidade. Lembrei meu projeto e a resistência que se levantara da inconstitucionalidade da ação afirmativa, tolice que acabou sendo desfeita pelo pronunciamento de vários Ministros do Supremo. Mas ainda sofri insultos na imprensa de pessoas convictas de que o projeto revogava o sistema de promoção do mérito.

Minha posição era clara e tinha antecedentes. Ao entrar na política aproximei-me muito de Afonso Arinos de Mello Franco, que, poucos anos antes, conseguira aprovar a lei que leva seu nome. Em 1961 — há mais de sessenta anos — fiz o primeiro discurso na Comissão de Políticas Especiais das Nações Unidas sobre o regime brutal do apartheid na África do Sul. Presidente da República, afirmei em meu primeiro discurso nas Nações Unidas que o Brasil era um país mestiço e nossa condenação total ao apartheid. Criei a Fundação Palmares, para a inserção e a promoção social da raça negra.

Meu projeto foi substituído, na Câmara dos Deputados, pelo Estatuto da Igualdade Racial. A pedido do Senador Paulo Paim, abri mão da preferência de meu projeto. Acontece que o Estatuto não estabeleceu as cotas. Só mais tarde a Presidente Dilma Rousseff apresentou propostas que se transformaram em lei, em 2012, estabelecendo cotas para as universidades federais e, em 2014, cotas para os concursos públicos federais. Foi um grande sucesso, que desmentiu completamente os argumentos da meritocracia, pois os alunos negros tiveram resultados superiores aos dos alunos brancos.

Essas leis precisam agora de continuidade, porque estabeleciam prazos para a duração da ação afirmativa que já estão próximos de vencer.

Ainda defendo meu projeto, que era mais amplo. Por ele, teriam cotas não só as instituições de ensino superior federais — mas todas, públicas ou privadas —, e não só os empregos públicos federais, mas estendia-se aos três níveis de governo.

José Bonifácio, há duzentos anos, falava na necessidade de dar educação e terra para os escravos, que pretendia libertar. Temos uma dívida impagável que nos obriga a dar a seus descendentes a mesma participação na sociedade que aos demais brasileiros.

Fui o primeiro a no Congresso a apresentar a solução das cotas. Elas são necessárias não por um problema étnico ou político, mas para promover a ascensão social, a saída da pobreza, o acesso ao trabalho qualificado.

Muitos tiram proveito político ao tratar do assunto. Por isso escondem meu pioneirismo. Eu nunca quis dividendos políticos. Quero resolver a questão.

José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras

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IGUALDADE SALARIAL

Sofia Aguiar e Amanda Pupo, O Estado de S.Paulo

Lula apresentará lei de igualdade salarial entre homens e mulheres após acordo de campanha com Tebet

Mudança na legislação foi uma das exigências da atual ministra para apoiar o petista no segundo turno da disputa pela Presidência em 2022

BRASÍLIA - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou nesta terça-feira, 28, que, em 8 de março, comemorado o Dia da Mulher, o governo irá apresentar uma lei de igualdade salarial de gênero para homens e mulheres que exercem a mesma função. A medida é uma promessa de campanha que favoreceu o apoio da então candidata e agora ministra do Planejamento, Simone Tebet, ao candidato petista à cadeira presidencial.

”Finalmente, Simone (Tebet), agora, no Dia das Mulheres, a gente vai apresentar a tal da lei que vai garantir que a mulher, definitivamente, receba o salário igual ao homem se ela exercer a mesma função”, declarou Lula, direcionando a fala à ministra. A declaração ocorreu em discurso de evento de reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) no Palácio do Planalto na manhã desta terça-feira, 28. Após o anúncio, Tebet, presente no evento, aplaudiu o presidente de pé.

No ano passado, durante o segundo turno da disputa pela Presidência, Simone Tebet exigiu como condição para apoiar a chapa de Lula e Geraldo Alckmin (PSB) o compromisso de ambos com a criação de uma lei igualando salários entre homens e mulheres.

”Toda hora que você vai procurar essa lei, parece que existe, mas tem tantas nuances que tudo é feito para a mulher não ter o direito. Ou seja, então é preciso fazer uma lei que diga que a mulher deve ganhar o mesmo salário do homem se exercer a mesma função. E pronto, não tem vírgula”, enfatizou Lula. “E é obrigado: se não pagar, vai ter que ter alguém para fiscalizar”, citando o Ministério do Trabalho e Emprego e o ministro da Pasta, Luiz Marinho.

Mês da mulher

Nesta quarta-feira, 1º, ministras, a primeira-dama Janja e as duas presidentes dos bancos públicos (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal) se reúnem em Brasília para dar início ao Mês Internacional das Mulheres. No evento, elas apresentarão a marca da campanha do governo federal para o 8 de Março.

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POR QUE ROBINHO DEVE SER PRESO? PORQUE ELE DEBOCHA DA JUSTIÇA AO POSTAR FOTOS APÓS SER CONDENADO

Robson Morelli, O Estado de S.Paulo

Robinho foi condenado a 9 anos de prisão por cometer estupro contra uma garota albanesa quando jogava na Itália, em 2013. Foi julgado e condenado em todas as instâncias. Mas ele está solto no Brasil, como se vê em posts nas redes sociais brincando na praia e vivendo como se nada tivesse acontecido.

Um dado para que o leitor entenda a gravidade da situação: os crimes por estupro cresceram 14,8% em janeiro deste ano no Estado de São Paulo comparado ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Secretária de Segurança Pública de São Paulo. Saltaram de 921 casos para 1.058. Apenas na Capital, esse aumento foi maior, de 31%, de 170 para 224 episódios.

O Brasil tem um jogador de futebol famoso condenado pelo mesmo crime na Itália, mas que leva a vida numa boa. Robinho ainda curte a vida adoidado. Ele debocha da Justiça a cada vez que vai para a praia jogar futevôlei. Ele humilha ainda mais a mulher vítima do seu crime, contra quem praticou o estupro. Ele cospe nas leis e nas pessoas que se debruçam sobre a matéria ou que ajudaram lá atrás a confeccionar as regras que regem a sociedade, no Brasil ou na Itália.

Qual é a imagem que Robinho passa para todos nós? Que o crime compensa. Essa é a primeira delas. Ele foi acusado, julgado e condenado, mas a pena não foi cumprida. Não foi porque ele voltou para o Brasil e o Brasil não extradita seus cidadãos. Simples assim. Então, o que um brasileiro faz de errado lá fora e não for preso, a Justiça brasileira perdoa. Essa é a concepção geral das pessoas.

A segunda imagem que o caso Robinho passa é a fragilidade da Justiça brasileira, incapaz de cumprir pena imposta fora do Brasil. Robinho foi condenado na Itália e, pela Justiça brasileira, deveria ser preso somente na Itália. Ou em suas andanças pelo mundo, uma vez que seu nome é o de um cidadão condenado. Se pisar fora do Brasil, Robinho será preso. Mas dentro do território nacional, ele é intocável. Mesmo tendo cometido estupro.

A liberdade de Robinho é uma afronta às pessoas de bem e às autoridades brasileiras. O futebol, desse ponto de vista, agiu por conta própria e o fez cumprir a pena longe dos gramados. Robinho tentou voltar, mas não conseguiu. Nem mesmo no clube que o lançou, o Santos. A torcida não deixou.

Robinho não ficou um dia sequer atrás das grades. Uma hora que tanto preso. Com o processo em andamento na Itália desde 2013, ele tentou a carreira em outros países até voltar para o Brasil. Nunca levou as acusações, o julgamento e a condenação com a devida importância. Nem ele nem as pessoas que o cercam. Portanto, Robinho pisa na cara da Justiça brasileira, dando de ombros para os que o condenaram na Itália e aos que tentam no Brasil fazer com que ele cumpra a pena de 9 anos, ignorando ainda toda a dor da vítima do seu estupro.

Há indícios de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a Procuradoria-geral da República (PGR) estejam incomodados com a desfaçatez do jogador. Por isso, vasculham novos entendimentos das leis vigentes para que a pena já definida e irrevogável possa ser executada no Brasil, mesmo com sua condenação vindo de um país na Europa.

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DISCURSO XENÓFOBO

Da ISTOÉ

Vereador gaúcho faz discurso xenófobo ao comentar trabalho escravo em vinícolas

O vereador Sandro Fantinel (Patriota), de Caxias do Sul (RS), usou a tribuna da Câmara para fazer comentários xenofóbicos e questionar a repercussão do caso de trabalhadores em situação de escravidão resgatados em vinícolas de Bento Gonçalves, também no Rio Grande do Sul.

No discurso, Fantinel pediu que os produtores da Serra Gaúcha “não contratem mais aquela gente lá de cima”, referindo-se a pessoas do Nordeste, especialmente da Bahia, estado que mais cedeu trabalhadores para a colheita de uva. Além disso, disse que baianos são sujos e “sabem apenas tocar tambor”. Por fim, o parlamentar afirma que empregados vindos da Argentina são melhores porque são “limpos e corretos”.

Na última semana, mais de 200 pessoas foram resgatadas de um alojamento onde eram submetidas a trabalho análogo à escravidão e eram contratados pela Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que oferecia mão de obra para as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 207 pessoas foram resgatados após serem extorquidos, agredidos, ameaçados e até mesmo torturados com choques elétricos e spray de pimenta. Desses, 194 voltaram para a Bahia, quatro ficaram no Rio Grande do Sul e outros 9 eram gaúchos.

Após o discurso de Fantinel, o deputado estadual Leonel Radde disse que registrou um Boletim de Ocorrência contra o vereador pontuando que “o Rio Grande do Sul e o Brasil não são lugares para racistas”. Procurado pela reportagem do site G1, o vereador de Caxias do Sul ainda não se manifestou.

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AFASTADO POR DESVIO DE CONDUTA

Márcio Falcão e Kevin Lima, TV Globo e g1 — Brasília

CNJ abre investigação e decide afastar o juiz Marcelo Bretas por desvio de conduta

Decisão foi tomada durante análise de três procedimentos que questionavam o trabalho de Bretas à frente de processos. Em nota, juiz disse que sempre atuou dentro da lei para garantir justiça.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu nesta terça-feira (28) afastar do cargo o juiz federal Marcelo Bretas, por suposto desvio de conduta na análise de processos. O CNJ também instaurou procedimento para investigar o juiz.

Bretas atuou na Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Em nota divulgada após a decisão do CNJ, ele afirmou que "sempre atuou na forma da lei para a  realização da Justiça. E que não pode comentar a decisão do CNJ pois a ela não teve acesso, uma vez que foi tomada em sessão sigilosa".

A decisão do CNJ, por 12 votos a 3, levou em conta a conduta de Bretas como juiz criminal, segundo integrantes do CNJ.

No conselho, havia três procedimentos abertos sobre o juiz.

O primeiro item era uma reclamação disciplinar ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questionou acordo de colaboração premiada celebrado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Segundo a OAB, o juiz e o Ministério Público negociaram penas, orientaram advogados e combinaram estratégias.

O segundo é uma reclamação feita pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes.

O prefeito alega que o juiz atuou para prejudicá-lo na disputa eleitoral para o governo do estado em 2018.

Quem é Marcelo Bretas, o 'Moro carioca' que mandou prender Temer e Cabral, agora afastado por desvio de conduta

À época, Bretas chamou para uma audiência Alexandre Pinto, ex-secretário municipal de Obras do Rio. Pinto acusou o prefeito do Rio de participar em um esquema de propinas no plano de infraestrutura das Olimpíadas de 2016.

O terceiro processo é uma reclamação disciplinar instaurada pelo corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão.

O CNJ encontrou dados em computadores corporativos do magistrados que dão indícios de supostas “deficiências graves dos serviços judiciais e auxiliares, das serventias e dos órgãos prestadores de serviços notariais e de registros”.

Próximos passos

Agora que o processo administrativo foi aberto para investigar a conduta de Bretas, o CNJ vai designar um conselheiro para ser o relator.

Ele vai ser responsável por ouvir o investigado e as testemunhas. Por fim, o relator apresenta um voto no plenário do CNJ.

Dependendo do voto do relator, e se ele foi acompanhado pelos demais conselheiros, Bretas pode até ser punido com a aposentadoria compulsória (quando ele sai do cargo, mas mantém o salário).

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TRABALHO ESCRAVO

Ivan Longo, Fórum

Trabalho escravo: Salton, Aurora e Garibaldi são suspensas da agência de exportações do governo

As três vinícolas participarão de audiência com o Ministério Público do Trabalho e podem ser responsabilizadas pelo caso dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na Serra Gaúcha

As vinícolas gaúchas Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi foram suspensas das atividades da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), órgão ligado ao governo federal que promove empresas brasileiras no exterior, por conta do escândalo envolvendo mão de obra análoga à escravidão em suas produções. 

Em nota divulgada nesta terça-feira (28), a Apex informou que "suspendeu a participação das três empresas em quaisquer iniciativas apoiadas pela agência, como feiras internacionais, missões comerciais e eventos promocionais, até que as investigações das autoridades competentes sejam concluídas". 

"A Agência repudia qualquer ato de violação aos direitos humanos e trabalhistas, conforme diretrizes e normas internas de integridade", diz ainda. 

As três vinícolas entraram no noticiário na última quarta-feira (22) após uma ação conjunta entre a Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que resgatou 207 trabalhadores em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.

A operação foi realizada a partir de denúncia feita por três trabalhadores, que conseguiram fugir do local em que eram mantidos presos. Eles contam que foram "contratados" pela empresa Oliveira & Santana sob a promessa de receber salários superiores a R$ 3 mil na colheita da uva, com direito a acomodação e alimentação. A realidade no dia a dia de trabalho, entretanto, era outra: alojamento totalmente insalubre, atrasos no pagamento de salários, jornadas exaustivas, violência física, alimentação inadequada e até mesmo cárcere privado. Em relato ao Ministério do Trabalho, parte desses homens relatou que castigos com choque elétrico e spray de pimenta eram constantes. 

Na ação da semana passada, a PF prendeu um empresário baiano responsável pela empresa. Ele foi encaminhado para o presídio de Bento Gonçalves, mas solto após pagar fiança. 

Segundo a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho e Emprego, a empresa Oliveira & Santana, que mantinha os trabalhadores em condição análoga à escravidão, possuía contratos com as vinícolas Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi, em que fornecia mão de obra para a colheita de uva. 

As três empresas alegam que não tinham conhecimento das irregularidades praticadas pela terceirizada com a qual tinham parceria. O Ministério do Trabalho e Emprego, entretanto, já avisou que elas podem ser responsabilizadas pelo pagamento dos direitos trabalhistas caso estes não sejam quitados pela terceirizada. 

Vinícolas serão ouvidas pelo MPT

Nesta quarta-feira (1), o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) realizará uma audiência com as vinícolas Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi para "relatar a situação do caso, apresentar o que foi apurado nas investigações, requisitar informações sobre os contratos". 

"O MPT vai discutir questões relativas à responsabilidade das empresas tomadoras como parte da cadeia de produção vinífera e ouvir os representantes da empresa", explica a procuradoria. 

Segundo o MPT, na segunda-feira (27), a empresa terceirizada que fornecia a mão de obra às vinícolas realizou a maior parte dos pagamentos aos trabalhadores resgatados. "Por acordo expresso no TAC emergencial firmado na sexta-feira, a empresa pagou a cada um dos trabalhadores R$ 500,00 em espécie, além do deslocamento de retorno de 194 dos resgatados para a Bahia, em quatro ônibus fretados. O restante das verbas, calculado em aproximadamente R$ 1 milhão, seria feito por meio de operações bancárias como PIX e ordens de pagamento", detalha o órgão. 

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CEM ANOS DEPOIS, NÃO APRENDEMOS NADA COM RUI BARBOSA

Julio Lopes, O Globo

Morto em 1º de março de 1923, ele foi constitucionalista de direitos fundamentais contra arbítrios governamentais

Falecido há cem anos, em 1º de março de 1923, o baiano Rui Barbosa lutou em vários ofícios — jornalista, político (deputado, ministro da Fazenda e senador), jurista (advogado e juiz eleito à Corte Internacional) e filólogo —, e todas as suas causas foram por uma cultura cívica brasileira. Conferindo à consciência coletiva de cidadania, nas respectivas populações, a boa sorte da monarquia parlamentar britânica e da República presidencial norte-americana, também a considerava fundamental à democracia no Brasil.

Tal pedagogia cívica o inspirou como abolicionista, propondo assistência aos libertos; pelo Estado laico com liberdade religiosa a quem não fosse religioso ou católico (como ele); como federalista, pela criação de municípios sem enfraquecimento nacional. Além disso, foi constitucionalista de direitos fundamentais contra arbítrios governamentais, especialmente incitando o nascente STF e ao presidir o Instituto dos Advogados; editorialista ou articulista de jornais e das letras nacionais, até fundando e presidindo a respectiva Academia. E também moralista eleitoral e administrativo, por denúncias comprovadas de corrupção do serviço público; desenvolvimentista que antecipou medidas necessárias à embrionária indústria nacional; pacifista pela arbitragem internacional e reformista que debateu direitos sociais, pioneiramente, em campanha presidencial (1919).

Cada iniciativa era justificada para viabilizar uma cultura participativa adequada ao funcionamento cotidiano das instituições democráticas. Na medida em que a população brasileira era majoritariamente dependente de oligarquias, que controlavam a imprensa e o Poder Legislativo, fomentava jornais e juízes independentes que garantissem manifestações individuais, na esperança de uma opinião pública autônoma.

Ao continental território brasileiro (que percorreu, ineditamente, em duas campanhas presidenciais), sabia corresponder uma diversidade regional a ser mantida, porém, com unidade nacional. Daí seu mandato público inicial, como deputado provincial baiano, não o ter iludido sobre a necessária unificação brasileira, mesmo eleitoral: dele foi a proposta de eleição direta de deputados gerais, durante a monarquia, quando eram eleitos indiretamente, e de controle judicial das eleições. Na valorização da política como composição entre interesses distintos, para a qual a vida militar não prepara, contestou supostas virtudes militares na administração civil em sua campanha presidencial civilista (1909).

Ainda pela integração nacional, fortaleceu o ensino público e introduziu a educação física, além de propor um Tribunal de Contas para disciplinar a gestão pública (especialmente regional e local) e defender Ministério Público autônomo, quando seus membros eram demissíveis pelos governos.

O Brasil ainda precisa ser ruiano. Cabe à população e aos poderes públicos intensificarem seus esforços para tornar conhecidos e mais efetivos os princípios democráticos da Constituição, cuja data ou semana de promulgação devia ser comemorada, amplamente, como são tais lembranças coletivas na Grã-Bretanha, EUA ou Portugal. A Rui Barbosa (cuja vida heroica merece filme biográfico) e a sua devoção pela cultura participativa, o Brasil tanto deve quanto precisa de uma pós-graduação interdisciplinar em cultura cívica, hoje estudada por várias ciências sociais.

*Julio Lopes é pesquisador titular da Casa de Rui Barbosa

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O BRASIL NÃO ESTÁ SOB DITADURA JUDICIAL

Editorial O Estado de S.Paulo

O bolsonarismo despreza os direitos humanos, é contrário à figura do juiz de garantias, propõe eliminar a audiência de custódia e defende a impunidade para crimes praticados por policiais no exercício da profissão. Ao longo dos últimos anos, tem sido o grande catalisador das principais ideias equivocadas sobre o sistema de Justiça. No entanto, quando seus aliados estão envolvidos em problemas com a Justiça, a equação se inverte. O devido processo legal e a imparcialidade do juiz tornam-se prioridades. Existentes desde os inquéritos das manifestações antidemocráticas, as críticas bolsonaristas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) subiram de patamar depois do 8 de Janeiro. Teria sido instaurada, nada menos, que uma “ditadura judicial” no País.

“No Brasil, temos presos políticos. Mais do que na Venezuela, na Bolívia e no tempo do regime militar”, discursou, sem corar, a deputada Bia Kicis (PL-DF). O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) chamou as prisões das pessoas envolvidas na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes de “lulags”, neologismo com o nome do presidente Lula da Silva e os “gulags”, campos de trabalho forçado da União Soviética. Já o deputado General Girão (PL-RN) qualificou a situação de “Guantánamo brasileira”, em referência à prisão mantida pelos Estados Unidos em Cuba.

O direito de discordar do Judiciário, seja em que esfera for, integra as liberdades fundamentais, além de contribuir para seu melhor funcionamento. Não existe exercício imaculado do poder, e é muito positivo que Executivo, Legislativo e Judiciário se sintam cobrados e admoestados – ainda mais em situações novas, que exigem respostas inéditas do poder estatal e o risco de errar é maior. O caso do 8 de Janeiro é absolutamente excepcional, ao envolver milhares de pessoas, tipos penais novos e agressões nunca antes vistas às instituições democráticas.

Se o Estado já tem sérias dificuldades de respeitar os direitos fundamentais de pessoas investigadas em casos corriqueiros, seria ingenuidade achar que, nessa situação particular, o poder estatal se comportaria de modo diferente, oferecendo uma atuação perfeita, sem nenhum excesso ou exagero. Seja como for, é preciso exigir do poder público plena aderência à lei, sem transigir com eventuais medidas ilegais ou mal fundamentadas. Por exemplo, este jornal já criticou em editorial o modo como foram realizadas as audiências de custódia relativas aos atos do 8 de Janeiro (ver A defesa da democracia dentro da lei, 19/2/2023). A decisão sobre a necessidade de manter a prisão preventiva não foi tomada pelo magistrado que fez a audiência e teve contato com o preso. Prisão sempre exige avaliar as circunstâncias concretas de cada pessoa.

É preciso discernimento. Diante do grande número de pessoas envolvidas, é provável que haja prisões preventivas em desacordo com os requisitos legais. Elas devem ser revogadas o quanto antes, seja pelo ministro Alexandre de Moraes, seja pelo colegiado da Corte – que não deve ter receio de suspender alguma decisão do relator, quando assim for necessário. Mas eventuais equívocos e exageros – que infelizmente são coisas habituais na Justiça brasileira, como se observa, por exemplo, pelos muitos habeas corpus que são concedidos pelo STF – não transformam as pessoas envolvidas nos atos do 8 de Janeiro em presos políticos.

Essas pessoas estão sendo investigadas por ações contrárias ao Código Penal, e não em razão de expressarem uma orientação política específica. A ilustrar que não se trata de perseguição política do Supremo, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) já denunciou por crimes concretos centenas delas, que terão oportunidade, dentro do processo penal, de exercer seu direito de defesa.

O sistema de Justiça penal é imperfeito – e o bolsonarismo lutou e luta arduamente para piorá-lo. Mas isso não autoriza dizer que inexiste, no País, respeito às liberdades política e de expressão. Há caminhos institucionais para correção de erros judiciais. O que não há é autorização para cometer crimes impunemente. A lei vale para todos.

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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

FOTO OFICIAL

Francisco Artur, Correio Braziliense

Foto oficial: confira os três registros dos mandatos de Lula

Nas três imagens, o presidente varia nos trajes e nos ambientes em que foi registrado. O que não muda, porém, é o fotógrafo. Todos os registros foram feitos pelo profissional Ricardo Stuckert

Após Luiz Inácio Lula da Silva (PT) divulgar, nesta segunda-feira (27/2), a nova foto oficial como presidente da República brasileira, internautas relembraram as outras duas fotos oficiais de lula. Nas três imagens, o presidente varia nos trajes e nos ambientes em que foi registrado. O que não muda, porém, é o fotógrafo. Todos os registros foram feitos pelo profissional Ricardo Stuckert.

Lula foi eleito presidente pela primeira vez em 2003 e ficou no cargo até o ano de 2006. Em tempo de vida, o petista entrou no Planalto com 57 anos e terminou o primeiro mandato com 61 anos. 

Na foto, ele aparece com uma gravata listrada em branco e verde. Lula aparece sem a faixa presidencial, destoando de presidentes anteriores. A fotografia foi tirada numa sala ao lado do gabinete da Presidência, no Palácio do Planalto.

Já em 2007, iniciando sua trajetória de mais quatro anos à frente do Planalto, Lula aparece em ambiente externo, com os arcos do Palácio da Alvorada ao fundo, como na foto atual. Na imagem, Lula porta a faixa presidencial e veste uma gravata vermelha, remetendo ao Partido dos Trabalhadores. À época, o então presidente ainda tinha 61 anos, já que ele faz aniversário no segundo semestre e a foto foi tirada no início do ano.

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BENS DE MANSÃO PENHORADOS

De Splash, UOL, em São Paulo

Rick, que fez Bolsonaro chorar em live, tem bens de mansão penhorados

Rick Sollo, da dupla sertaneja com Renner, teve os bens de sua mansão na cidade de Itu, interior de São Paulo, penhorados pela Justiça por uma dívida de empréstimo que atingiu o valor de R$ 639.194,78.

Segundo a decisão publicada em 11 de janeiro, o cantor sertanejo, que viralizou ontem ao fazer o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chorar, foi notificado por um empréstimo em 2017 após romper a parceria com Renner

Splash entrou em contato com o cantor Rick, porém, ainda não houve retorno. Em caso de manifestação, esse texto será atualizado

Por que Rick teve os bens penhorados? Ele formou dupla com Giovani, que fez sucesso como par de Gian, e pegou dinheiro emprestado para se lançar no mercado, e bancar uma turnê de dois anos pelo Brasil. 

Assim, os artistas realizaram um empréstimo de quase R$ 240 mil com produtores rurais para pagar as contas. Só que a dupla não deu certo e até hoje nenhum dos artistas quitou a pendência

A mansão de Rick foi construída em um terreno de 6 mil metros em um condomínio particular. A casa possui nove suítes, cinco salas, sala de jantar, lavabo, cozinha, sala de massagem, salão de beleza, quadra esportiva, academia, 14 vagas na garagem.

Em 2020, o artista chegou a colocar o imóvel à venda por R$ 12 milhões. A ideia do artista era levantar dinheiro para quitar suas pendências e viajar aos Estados Unidos para um novo projeto. 

Live com Bolsonaro 

No último domingo (26), o cantor Rick Sollo fez o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se emocionar e chorar durante uma live.

Direto dos Estados Unidos, onde está desde o final do ano passado, Bolsonaro aparece na live ao lado do cantor e do ex-presidente da Caixa Pedro Duarte Guimarães, que foi dispensado do cargo após ser acusado de assédio sexual por funcionárias da instituição financeira, e outras pessoas. 

Na gravação, o ex-presidente não fala, mas fica visivelmente emocionado enquanto Rick canta ao violão a música "Não Perca Tua Fé".

O cantor Rick faz parte do time de sertanejos que estiveram ao lado de Jair Bolsonaro e endossaram a campanha derrotada do ex-presidente em 2022.
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QUANDO O PASSADO CHEGA AO PRESENTE

Flávio Tavares*, O Estado de S. Paulo

Nunca é demais relembrar o golpe militar de 1964, apontando diferenças e semelhanças em relação ao 8 de janeiro de 2023

Passado mais de um mês dos atos de terror vandálico de 8 de janeiro em Brasília, é necessário voltar àqueles acontecimentos para que a memória histórica não se apague. Somos um país desmemoriado e, por isso, volto às profundezas dos atos que buscavam criar o caos para propiciar uma “intervenção militar”, como os baderneiros apelidaram o golpe de Estado.

Assim, nunca é demais relembrar o golpe militar de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos no Brasil, apontando diferenças e semelhanças.

Comecemos pelas diferenças. Em 1964, o golpe foi produto da “guerra fria”, instigado pelo governo dos Estados Unidos, como se comprova com a documentação que apresento em meu livro 1964 – O Golpe. Agora, o governo Biden foi o primeiro a pronunciar-se contra as intenções do vandalismo de 8 de janeiro.

Como um todo, o Brasil em 1964 era mais atrasado em pensamento e visão de mundo. As desigualdades sociais eram tidas como “invenção comunista”, ainda que milhões de nordestinos famintos rumassem a São Paulo e ao Sudeste em busca de emprego.

Hoje, a insistência de Jair Bolsonaro sobre o “perigo” de que o atual governo “implante o comunismo” soa como anedota de bêbado.

O espírito e as ações derivadas da “guerra fria” dominavam o mundo naquele 1964 e se sobrepunham, em cada país, aos problemas e às soluções locais. Hoje, as mudanças climáticas são a grande ameaça e nenhum governo se atreve a negá-las.

Por que, então, o vandalismo em Brasília nos preocupa e faz relembrar 1964?

Será porque os baderneiros tiveram cobertura militar ao acamparem em frente ao QG do Exército em Brasília? Ou porque entraram livremente no Palácio do Planalto, sem que o Batalhão da Guarda Presidencial sequer tentasse impedir o assalto? Ou porque concentrar milhares de pessoas numa passeata recorda o desfile da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que em 1964 pedia o golpe?

A diferença é que nas marchas de 1964 todos desfilavam em paz, exercendo o direito de protesto. Até gritavam, no direito de berrar, mas sem o vandalismo que, em 2023, marcou a insânia terrorista do dia 8 de janeiro.

Existe, no entanto, uma diferença fundamental com 1964. Agora, todos os meios de comunicação – dos jornais às revistas, do rádio à televisão – rejeitam o golpe e criticam o terror dos baderneiros. As cenas de vandalismo apresentadas por diferentes redes de TV são algo a não esquecer como ameaça não apenas às instituições democráticas, mas ao próprio estilo de vida de cada um de nós. Até o dia 8 de janeiro, jamais havíamos visto no Brasil o ódio transformar-se em atitude política individual.

As cenas de destruição nas sedes dos Três Poderes em Brasília mostraram uma turba enfurecida, recrutada País afora por meio das invencionices e mentiras das redes sociais para destruir o que encontrasse à frente.

Em 1964, parte dos meios de comunicação acompanhou a posição dos partidos políticos que, no Congresso, se opunham ao governo e admitiam até a sua destituição. Alguns foram além dos limites da liberdade de expressão, como o jornal carioca Correio da Manhã, que chegou a dar a senha do golpe num furioso editorial de primeira página.

Agora, chama a atenção o fanatismo implantado em parte da população e que os bolsonaristas cultivam alimentando o ódio e nos dividindo em dois grupos em guerra. É normal que a política desperte paixões, mas é anormal que leve ao ódio destrutivo e ameaçador de 8 de janeiro.

Além disso, as cenas brutais, mostradas na TV, de milhares de indígenas Yanomamis envenenados pelo mercúrio dos garimpeiros ilegais buscando ouro nos rios amazônicos transforma-se na nova versão de um genocídio. Não importa sequer se genocídio implica plano prévio de extermínio de um grupo (como na Alemanha de Hitler contra os judeus), mas sim os efeitos e resultados. Tal qual os judeus na Alemanha, os Yanomamis não cometeram crime algum, mas são desprezados – num desprezo que se transforma em perseguição, unicamente por serem indígenas.

Os rios amazônicos continuarão envenenados pelo mercúrio dos garimpeiros por mais de um século. Não bastará que a sociedade brasileira, como um todo, derrote nas urnas os adeptos do horror, porque isso não limpará os rios da Amazônia do mercúrio que polui as águas nem devolverá cabelo às crianças indígenas escalpeladas pela contaminação.

As cenas que a TV mostra agora superam em horror a própria maldade.

O terror vandálico de 8 de janeiro em Brasília, por outro lado, desatou uma perigosa aceitação tácita de tudo o que venha do governo de Lula da Silva. O vandalismo bolsonarista foi tão horripilante que poderá, até mesmo, nos fazer perder a visão crítica do que faça o atual governo lulista, se repetir as fraudes do tempo passado em que nos governou.

Que cada um, portanto, esteja vigilante para que o horror não volte ao presente, mesmo disfarçado de benigno.

*Jornalista, escritor, Prêmio Jabuti de Literatura 2000 e 2005, Prêmio APCA 2004, é professor aposentado da Universidade de Brasília

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É PROIBIDO PROIBIR

Miguel de Almeida, O Globo

Em destaque, logo na primeira gôndola da livraria nova-iorquina Strand brilham exemplares de “Victory City”, de Salman Rushdie. É o décimo sexto livro do autor indiano depois que sua morte foi ordenada por Khomeini. A fatwa veio em represália ao “Versos satânicos”, onde o aiatolá enxergou blasfêmias a Maomé. Em troca de seu assassinato, o líder iraniano oferecia alguns milhares de dólares. Literalmente, um escritor com cabeça a prêmio, refém da intolerância religiosa.

A fatwa foi emitida há mais de 30 anos. Em agosto passado, o ódio longo de Khomeini, morto há décadas, alcançou Rushdie quando se preparava para falar sobre cultura contemporânea numa cidadezinha próxima a Nova York. Um fanático subiu ao palco e o atacou, desferindo quase duas dezenas de facadas. Na recente New Yorker, uma foto de página inteira em branco e preto expõe as cicatrizes deixadas pelo atentado no rosto de Rushdie, assim como a perda do olho direito e do movimento do braço esquerdo. “Victory City”, delicada fábula, conta a história de uma garota e de uma cidade onde as mulheres buscam resistir ao patriarcalismo e à intolerância religiosa.

A fatwa de Khomeini — e o atentado a Rushdie, um dos grandes escritores contemporâneos — pode ser vista como o escárnio da irracionalidade e da tentativa de aprisionar a sociedade a um passado medieval. Não deixa de ser fundamentalismo religioso, como é ainda uma visão totalitária sobre a liberdade alheia. Lugar nublado onde se misturam ideologia, fanatismo e ignorância, a ânsia de exercer poder sobre o outro é um exercício constante na sociedade, sob diversos disfarces.

A poeira do carnaval de 2023 já baixou, mas difícil não gargalhar com o tuíte do governador da Bahia, o agora afamado Jerônimo Rodrigues. Ancorado na credencial de professor, listou uma série de fantasias proibidas aos baianos. Até então, tal tipo de atitude — criminalizar o imaginário alheio — era comportamento de radicais das redes sociais ou de grupos encobertos em palavras de ordem identitárias. Quase sempre com desprezo à tradição cultural.

O mandatário baiano listou como proibidas as fantasias de indígenas (“é um desrespeito se apropriar de suas vestimentas”), pessoas pretas (“perucas e demais acessórios reforçam o racismo”) e travesti (“se vestir de mulher ridiculariza figuras femininas”). Também acrescentou:

—Vestir-se de “nega maluca”? Nem pensar.

Mas não se furtou a aparecer com um chapéu de Jeca. Pena que os jecas não dão bandeira, daí não protestam.

Perguntei a amigos de Salvador e soube que suas ordens foram sumariamente desrespeitadas. O circuito Castro Alves-Barra surgia coalhado de foliões em evidente desobediência civil. O próximo passo talvez seja interferir nas vestimentas das vaquejadas, do bumba meu boi e da cavalhada. Além do desejo de renomear o burro, o charmoso animal.

O tuíte do mandatário baiano não é civilizatório, como quer vender a uns poucos. É, sim, incitação a uma cisão. Que, levada a cabo por seguidores mais fundamentalistas, resultará em violência — como já ocorre por aí. Afora o arrazoado do Jerônimo ser um amontoado de receitas e maledicências sem dendê.

Isso vale para todo o espectro ideológico.

Quantos não deixaram de tomar vacina por causa daquele ex-líder da extrema direita? Quantos não começaram a duvidar das urnas? De tais sandices vieram depois mortes, brigas e tiozinhos com pneumonia na porta dos quartéis. Significa que o gado escuta as autoridades sem filtro — e nem todas as suas falas resultam em felicidade e paz na Terra.

Clivagens ecoam a partir dos tuítes e dos posts, à esquerda e à direita. O filme “Babilônia”, maravilhoso, escande a grande incoerência das lutas identitárias. Um trompetista preto é obrigado a pintar seu rosto de mais escuro porque seus colegas de banda são mais pretos que ele, o que o faz parecer branco por comparação. E o público rejeitaria ver um grupo misturado de brancos e pretos. Daí que a extrema direita do movimento negro americano tenha colocado em palavra de ordem a ideia de que miscigenação é racismo. De vez em quando isso ecoa pelo Brasil, como se fosse bandeira da esquerda identitária.

É o caso inverso do que ocorria realmente no século passado, quando os jogadores pretos se viam obrigados a passar pó de arroz para poder integrar os times de futebol, formados basicamente por brancos. Até que as seguidas derrotas para Argentina e Uruguai mudaram a História brasileira.

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A ANATOMIA DE UMA DESFAÇATEZ

Editorial O Estado de S. Paulo

Fim do sigilo sobre o processo militar contra Pazuello expõe a delinquência hermenêutica que o gestou e o quão baixo alguns militares desceram por um desqualificado como Bolsonaro

Por requisição da Controladoria-Geral da União (CGU) a partir de pedido do Estadão com base na Lei de Acesso à Informação, o Exército tornou público o processo disciplinar que instaurou para apurar a participação do general intendente Eduardo Pazuello em um comício do então presidente Jair Bolsonaro no Rio, em 23 de maio de 2021.

A rigor, nada havia a apurar, só a punir. As imagens do comício, com Bolsonaro e Pazuello discursando em cima de um trio elétrico, falavam por si sós. À época, Pazuello, hoje deputado federal, era oficial da ativa, e tinha encerrado sua catastrófica passagem pelo Ministério da Saúde havia dois meses.

Militares da ativa, como sabe qualquer manga-lisa, são expressamente proibidos de participar de atos políticos. A razão para essa vedação é tão óbvia que seria um desrespeito ao leitor destacá-la. Entretanto, o Exército não apenas livrou Pazuello de qualquer punição, em afrontosa violação da Constituição e do Estatuto dos Militares, como ainda impôs sigilo de 100 anos sobre o processo.

Se esse sigilo, per se, já era uma aberração, a razão que o motivou é uma das maiores vergonhas para o Exército. Como agora sabemos, de fato, nada foi apurado. O que houve foi uma deliberada operação de acobertamento de evidente transgressão militar, tão evidente que basta para explicar a tentativa de mantê-la em segredo por nada menos que um século.

Como se lê no documento agora tornado público, Pazuello, ciente de que estava prestes a violar a Constituição e o Estatuto dos Militares, teve o “cuidado”, digamos assim, de avisar o então comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, com um dia de antecedência, de que compareceria ao ato político convocado por Bolsonaro. Em depoimento, Pazuello disse que aceitou o convite feito por Bolsonaro por ter com ele “laços de respeito e camaradagem”, malgrado o fato óbvio de que se tratava de comício – o que, por definição, deveria ter desestimulado sua participação.

No processo, consta que o general Paulo Sérgio confirmou ter sido avisado pelo subordinado, mas não o que respondeu a ele. Nem precisava. A participação de Pazuello no ato, com direito a discurso em cima de um carro de som, é a evidência de que o intendente decerto não foi dissuadido pelo então comandante do Exército.

Registre-se que a maioria dos membros do Alto Comando do Exército defendeu a punição exemplar de Pazuello. A presença de um oficial da ativa naquele comício, uma transgressão militar inquestionável, era um ultraje à história de respeito às leis e à Constituição construída pelas Forças Armadas desde a redemocratização, além de configurar quebra da hierarquia e da disciplina, balizas da vida castrense. Entretanto, prevaleceu a vontade do general Paulo Sérgio. Pudera. Como punir Pazuello se, na véspera, o transgressor avisara seu comandante de que iria transgredir as normas militares e nada foi feito para impedi-lo?

Tentando justificar o injustificável para absolver Pazuello, o general Paulo Sérgio, que mais tarde se tornaria ministro da Defesa de Bolsonaro, concluiu que o discurso do intendente no trio elétrico não teve, ora vejam, “viés político-partidário” – como se oferecer apoio explícito ao então presidente da República diante de possíveis eleitores, que era ao que se prestavam as tais e frequentes “motociatas” de Bolsonaro, não fosse um ato político por definição.

A CGU acertou ao levantar o sigilo sobre o processo porque, a um só tempo, explicitou a anatomia de uma delinquência hermenêutica, cometida com o claro propósito de acobertar infrações militares irrefutáveis, e restabeleceu o princípio constitucional da transparência. Numa República democrática, como o Brasil, a regra é a transparência; sigilo sobre informações de interesse público só vale para casos excepcionalíssimos, definidos por lei e pela Constituição. Não era o caso da indisciplina do intendente Pazuello nem do acobertamento de seu comando na época.

Esse lamentável episódio é revelador de quão fundo foi o buraco em que parcela das Forças Armadas se dispôs a descer em nome de um desqualificado como Jair Bolsonaro.

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A PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

Passou despercebido o 199º aniversário da Carta de Lei de 25 de Março de 1824, com a qual D. Pedro Primeiro, “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”, mandou que se observasse a Constituição Política do Império, a primeira da nossa história.

O Brasil, antiga colônia portuguesa, é notável exceção de unidade na fragmentada América Espanhola. Desde a descoberta, em 21 de abril de 1500, não só defendeu a integridade do território como, por negociações diplomáticas ou pela força das armas, ampliou o espaço delimitado pelo Tratado de Tordesilhas, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela, em 7 de junho de 1494.

A retirada da Família Real para o Brasil em novembro de 1807, ante invasão do exército francês, relatada por Ângelo Pereira no livro D. João VI Príncipe e Rei (Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1953), contribuiu para a conservação de terras cobiçadas por estrangeiros, numa época em que os recursos militares eram precários e se sustentavam no heroísmo de colonos brancos, de escravos negros e de tribos indígenas.

Em 25 de abril de 1821, com o retorno da família real à Portugal,

teve a sabedoria de fazer do filho, D. Pedro, o Príncipe Regente, a quem aconselhou: “Pedro, se o Brasil se separar, antes que seja para ti, que me hás de respeitar do que para algum desses aventureiros” (A Vida de Pedro I, Octávio Tarquínio de Sousa, Livraria José Olympio Editora, RJ, 1972, Tomo I).

Segundo Octávio Tarquínio de Souza, “Começou D. Pedro o seu governo com uma proclamação, redigida, ao que tudo indica, pelo Conde de Arcos, na qual resumia o programa de reformas que pretendia executar”.

Os antecedentes da Independência são conhecidos. Vale recordar, porém, o que escreveu Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello, sobre a primeira Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, convocada por D. Pedro, mediante decreto de 3 de junho de 1822: “No dia 3 de maio de 1823, já firmada a independência, foi a assembleia solenemente aberta pelo Imperador, e por esse ato apertou-se o laço de união entre o monarca e a nação. Na reunião desse congresso ilustre repousavam confiadamente as esperanças constitucionais do país” (A Constituinte perante a História, edição fac-similar do Senado Federal, Brasília, DF. 1996).

Em 1º de setembro o deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, na qualidade de relator, apresentou projeto de conteúdo liberal, composto por 227 artigos, com o sentido de reduzir o poder do Imperador.

A Assembleia se desenvolvia em ambiente de liberdade. Era notório, porém, o conflito estabelecido com Dom Pedro I que, zeloso das suas prerrogativas, estava decidido a conservá-las. Em 11 de novembro, Antônio Carlos propôs que a Assembleia se mantivesse em caráter permanente. Preocupava-o o clima de agitação popular no Rio de Janeiro, e a inusitada movimentação de tropas nas imediações do casarão em que se encontrava reunida.

O agravamento das divergências entre os irmãos Andrada e o Imperador tornou-se a cada momento mais evidente. Com a autoridade de que era revestido, D. Pedro I não titubeou. Dissolveu a Assembleia e assumiu com plenos poderes o governo do Império. No relato dos historiadores, não houve resistência. A dissolução da Constituinte ocorreu sem protestos. Alguns constituintes foram presos e exilados.

A primeira Constituição foi escrita e outorgada sem a participação de representação popular. O mesmo aconteceu com a Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937, editada por Getúlio Vargas, e a Emenda nº 1/1969 à Constituição de 1967, outorgada pela Junta Militar que ocupou o lugar vago pela doença do presidente Costa e Silva.

A Carta Constitucional de 1824 trouxe resultados positivos. A instituição do Poder Moderador, como chave de toda a organização política, garantiu a unidade do território nacional.  Conforme prescrevia o Art. 98, “O Poder Moderador é a chave de toda organização Política e é delegada privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”.

Prova inequívoca da elevada qualidade da primeira Constituição reside no fato de haver durado 65 anos, sendo emendada uma única vez, pelo Ato Adicional de 1834.

O Brasil Imperial entregou ao Brasil Republicano um país melhor e indiviso, graças à lucidez, coragem, equilíbrio, honradez e determinação de dois Pedros, o Primeiro e o Segundo.

Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de Mensagem ao Jovem Advogado

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MARIELLE, 5 ANOS DEPOIS

Editorial Folha de S. Paulo

Pode-se perguntar se cooperação federal não deveria ter objetivos mais amplos

Prestes a completar cinco anos, as investigações sobre os assassinatos da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, no centro do Rio, seguem sem conclusão. O caso se tornou bandeira política para a esquerda e o pior da direita bolsonarista.

Na semana passada, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou instauração de inquérito na Polícia Federal para colaborar com as investigações da Promotoria do Rio de Janeiro.

As autoridades fluminenses ainda não foram capazes de esclarecer se houve um mandante, nem a motivação. Um ano após as mortes, em 2019, foram presos o sargento reformado Ronnie Lessa, acusado de ser o autor dos disparos, e o ex-PM Élcio de Queiroz, acusado de dirigir o carro usado no crime.

O atraso não deve ser creditado apenas à complexidade do caso mas também às idas e vindas no comando do inquérito. Desde o início, as investigações foram objeto de tentativas de obstrução e pistas falsas. Em 2019, a Polícia Federal, que agora se soma às apurações, apontou que depoimentos falsos teriam sido dados para dificultar a solução do homicídio.

Falhas institucionais são abundantes. O delegado Alexandre Herdy foi o quinto a assumir o inquérito, em fevereiro de 2022. Recentes conflitos internos no Ministério Público também afetam o andamento do processo.

O setor mais desfalcado foi o Grupo de Atuação Especializada contra o Crime Organizado (Gaeco), responsável pelas principais apurações contra milícias e facções criminosas no estado —parte de seus integrantes está na força-tarefa sobre os assassinatos.

Em tese, a cooperação federal pode ajudar o andamento de casos, como os de Marielle e Anderson, nos quais há teias de interesses que podem minar investigações.

A ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge solicitou a federalização em 2019, que foi rejeitada pelo STJ, para o qual não houve "inércia ou inação" no caso.

De forma compreensível, a família de Marielle foi contra a federalização das apurações sob o governo Jair Bolsonaro (PL).

Deve-se perguntar, de um lado, por que as investigações estaduais não conseguem lidar com o enraizado envolvimento de milícias e facções em homicídios; de outro, se uma cooperação federal não deveria se dar com objetivos mais amplos do que dar andamento a uma apuração em particular.

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É PAU, É PEDRA, É O FIM DO CAMINHO

Artigo de Fernando Gabeira

Uma das constatações mais duras no avanço das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos.

Quando nasci, em fevereiro, choveu muito. As pessoas tinham de se mover em canoas, contavam meus pais. Eu me acostumei com a ideia dos temporais de verão; às vezes, brincava na enxurrada sob protestos maternos.

As chuvas costumam ir além de fevereiro, como mostra a canção de Tom Jobim “Águas de março”, uma das mais belas de nossa música popular.

Como adulto, as chuvas tornaram-se parte do meu trabalho de jornalista ou mesmo de deputado. Sempre estive próximo. Da catástrofe na Serra Fluminense às cheias de Trizidela do Vale, no interior do Maranhão.

Um pouco descrente de governos, pensei em fortalecer as próprias comunidades. A ideia era preparar um manual para as grandes chuvas, como os caribenhos e americanos fazem com os ciclones. Coisas simples, como ter a lista de todos com dificuldade de locomoção, para ser retirados com prioridade.

Nas enchentes em Santo Antônio de Pádua, aprendi um pouco mais: o hospital foi inundado. Era preciso buscar em casa os dependentes de hemodiálise, transportá-los de helicóptero. Mais um item no caderno, que já tinha indicação dos abrigos, lugares onde se guardam barcos e botes, rotas de fuga.

Cheguei a formular um projeto que ensinasse defesa civil nas escolas, pois contava com as crianças para alertar os pais. Vejo hoje que Marina Silva tem um plano mais ambicioso: mobilizar todo o Ministério da Educação para tratar das mudanças climáticas.

Não fazemos tantas simulações, como os japoneses. Mas conseguimos realizá-las no caso de Angra dos Reis, por causa das usinas nucleares. De qualquer forma, o quadro hoje é mais claro: 4,5 milhões de pessoas em áreas de alto risco, distribuídas por mais de 14 mil pontos críticos.

Isso demanda um projeto especial porque dificilmente terão casa segura antes das próximas chuvas. Um projeto que aumente a resiliência das cidades brasileiras, adaptando o país às mudanças climáticas, tem chance de financiamento por meio do Acordo de Paris.

Há muito trabalho pela frente. É uma ilusão supor que o obstáculo é apenas o negacionismo de Bolsonaro. Muitos políticos aceitam as mudanças climáticas, mas, na prática cotidiana, as negam.

O Litoral Norte de São Paulo sofreu o impacto de uma chuva recorde. Mas a prefeitura de São Sebastião já fora intimada 37 vezes por não realizar obras nas encostas. Um projeto da ONG Escola Verde tinha apoio do BID para construir casas populares na Barra do Sahy, centro do grande drama. Conseguiram até terreno, mas o projeto dormiu sete anos na gaveta do governo estadual.

Existe um negacionismo simpático, do “tudo bem, deixa conosco”, mas que vai empurrando soluções com a barriga até que a tragédia aconteça.

Na verdade, se olharmos de uma perspectiva histórica, a tragédia no litoral brasileiro acontece em câmera lenta. No norte de São Paulo, os caiçaras foram expulsos de suas aldeias de pescadores pela especulação imobiliária. Os ricos se instalaram nas praias, e os pobres foram morar na encosta da Serra do Mar, onde vivem de prestar serviços e da construção. A especulação imobiliária controla prefeitos e vereadores.

Dois repórteres do Estado de S. Paulo, Renata Cafardo e Tiago Queiroz, foram agredidos num condomínio de luxo, em Maresias, apenas porque estavam cobrindo o impacto do temporal:

— Comunistas — gritavam os moradores.

Uma das constatações mais duras no avanço das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos, não em todos os casos, mas na maioria das vezes. Isso cria em muita gente a sensação de que o problema existe, mas está muito longe, lá onde não sujamos nossos sapatos de lama.

O momento é de sentar e discutir uma saída para este mundo em transformação, que nos abala tanto. O negacionismo é suicida, não é possível que um país sucumba à própria ignorância.

Artigo publicado no jornal O Globo em 27/02/2023

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domingo, 26 de fevereiro de 2023

UNIÃO RESGATADA

Marcos Strecker, ISTOÉ 

Depois do escárnio de Bolsonaro, Lula resgata a normalidade

Lula se mobiliza contra a tragédia no Litoral Norte paulista e traz de volta a responsabilidade compartilhada entre os entes federativos, princípio elementar da democracia que há quatro anos o País não enxergava. É a terceira vez que ele viaja para acompanhar desastres, o que já vira uma marca conveniente para a sua gestão

Depois de um dos períodos políticos mais conturbados da história nacional, com uma campanha presidencial polarizada seguida de uma tentativa frustrada de golpe de Estado, o feriado de Carnaval parecia reservar uma trégua providencial. Mas a tragédia no Litoral Norte de São Paulo, que causou pelo menos 49 mortos, colocou à prova novamente a capacidade de reação oficial e o espírito público dos gestores. Felizmente, nessa seara, a demonstração de uma união que há muito tempo não se via amenizou todo o sofrimento que ainda perdura entre as vítimas e seus familiares.

Com pouco mais de um mês no cargo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o político bolsonarista mais proeminente a emergir das últimas eleições, foi rápido em sua resposta. Transferiu seu gabinete para São Sebastião (SP), o epicentro do desastre, coordenou pessoalmente todos os esforços e decretou luto oficial de três dias em memória das vítimas. Da mesma forma, o presidente Lula interrompeu seu descanso na Bahia, no domingo, 19, deslocou-se com nove ministros e acionou todo o governo federal para auxiliar nos trabalhos de resgate. O prefeito de São Sebastião, o tucano Felipe Augusto, uniu-se aos dois em meio aos esforços. Os mais diversos órgãos oficiais das três esferas de poder, começando pela Defesa Civil, se deslocaram para a região em um esforço coordenado que há muito não se via. Apenas das Forças Armadas, 400 homens foram mobilizados, incluindo a maior nave da frota da Marinha, o navio-hospital Atlântico, com UTI, 200 leitos e seis helicópteros.

Essa união de esforços é elementar e republicana, é importante relembrar. Mas caiu em desuso na última gestão federal. Há apenas um ano, na virada de 2021 para 2022, quando grandes áreas da Bahia passaram por tragédia semelhante, Jair Bolsonaro achou desnecessário visitar o estado governado por um adversário do PT. Não foi apenas isso. Ainda posou para fotos sorridente, passeando de jet ski durante seu descanso em São Francisco do Sul (SC). “Espero não ter que retornar antes”, declarou à época. Um escárnio com o sofrimento alheio. No temporal de maio passado em Pernambuco, quando 194 pessoas morreram, o ex-presidente fez apenas um sobrevoo e aproveitou para atacar o então governador Paulo Câmara, do PSB – que não recebeu nenhuma ligação de solidariedade. Não foi uma surpresa. Essa falta de decoro com o cargo ou de empatia com as vítimas já tinha sido vista de forma chocante na pandemia, quando quase 700 mil brasileiros perderam a vida. O capitão não visitou um único hospital na época, e ainda imitou em tom de galhofa os pacientes com falta de ar.

Bolsonaristas e petistas se incomodaram com a aproximação entre Lula e o governador de São Paulo

As cenas na tragédia em São Paulo foram em tudo diferentes. Lula acentuou o contraste entre ele o antecessor no tratamento dado às vítimas. Ao lado das outras autoridades, ele aproveitou para destacar que uma ação conjunta entre os gestores é possível, mesmo que sejam políticos de partidos e ideologias diferentes. “Queria mostrar para vocês uma cena que há muito tempo não viam no Brasil: um governador, um presidente e um prefeito sentados em uma mesa em função de uma coisa que atinge a todos nós. O bem comum do povo é muito mais importante do que qualquer divergência que a gente possa ter”, declarou. “Veja que coisa bonita e simples: estamos juntos, acabou a eleição.” A ocasião confirmou o apurado faro político do petista, que galvanizou a mobilização e a comoção popular. Também serviu para “virar a página” do início da sua gestão, que ainda está chamuscada pelos atentados de 8 de janeiro, pelos desnecessários atritos com o Banco Central e pela falta de bandeiras para marcar os cem primeiros dias.

Foi a terceira viagem de Lula para visitar locais atingidos por catástrofes. No dia 8 de janeiro, estava em Araraquara (SP) para avaliar danos causados pelas chuvas na região. Duas semanas depois, deslocou-se para Roraima, na área em que se desenrola o drama humanitário dos Yanomamis. Junto com as viagens internacionais, esse acompanhamento “in loco” de desastres está virando uma marca de sua administração. O mandatário pode ter ganhos de imagem com isso. A história ensina que os governantes são responsabilizados e punidos por catástrofes, mas também podem ser beneficiados se demonstrarem empatia ou resposta eficiente. É uma iniciativa providencial para Lula, principalmente porque ele já elegeu a área social como a grande bandeira de seu terceiro mandato.

Cooperação

Tarcísio de Freitas igualmente se beneficiou. Encontrou sua persona como gestor, afastando-se do bolsonarismo. Declarou que a presença de Lula dava “amparo e conforto” e que o momento exigia um “regime de cooperação”. Manifestou-se ainda muito grato pela parceria com o governo federal e exaltou o fato de Lula ter ido pessoalmente ao local. Na quarta-feira, o governador ainda vistoriou a região de helicóptero ao lado de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente que é demonizada pelos apoiadores radicais do ex-presidente. As manifestações do governador e do presidente, de certa forma, marcaram o enterro simbólico do extremismo que contaminou a política no último período, pelo menos de forma temporária. Por isso, é até positivo que os dois polos do espectro político tenham se enfurecido. Os bolsonaristas cosideraram a atitude republicana do governador de São Paulo uma traição — no mínimo, um erro diante de uma armadilha preparada pelo presidente. E os petistas exaltados se irritaram com a aproximação de Lula com Tarcísio, um candidato natural a herdar os votos dos conservadores na eleição presidencial de 2026, já que Bolsonaro provavelmente estará inelegível.

Para o cidadão, o importante é que seus governantes estejam coordenados em prol da sociedade. E isso de fato ocorreu numa calamidade pública de proporções inéditas. Na última quinta-feira, ainda havia 57 desaparecidos e mais de 3.500 desabrigados. O Litoral Norte paulista recebeu o maior índice de chuva já registrado no País. São Sebastião foi um dos municípios mais afetados, com deslizamentos de encostas, alagamentos e bairros isolados devido à interdição de vias de acesso. Entre 9h de sábado e 9h de domingo, a chuva somou níveis alarmantes em Bertioga (680 mm), São Sebastião (626 mm), Ilhabela (337 mm), Ubatuba (335 mm) e Caraguatatuba (234 mm). Na Baixada Santista, os níveis foram igualmente altos em Guarujá (388 mm), Santos (225 mm), Praia Grande (203 mm) e São Vicente (186 mm). A precipitação torrencial que começou na noite de sábado foi resultado de uma combinação de ar quente e úmido que vem do Atlântico Equatorial com um sistema de baixa pressão no Atlântico, onde a temperatura do mar está elevada. O fenômeno de dimensão ímpar empurrou a evaporação do mar para o continente.

Nas praias do Litoral Norte, em especial, a ocupação de veraneio tem crescido nas últimas décadas, apesar da limitação de construções. O avanço tem aumentado a população local que presta serviços. Ela passou a ocupar cada vez mais os morros ou locais de risco. É nessas áreas que está o maior número de vítimas. O caseiro Gildevan Dias da Silva, 48, está entre os que perderam sua casa. “Não tenho mais palavras. Moro no bairro de Camburi, ao lado das encostas. A cem metros existe um condomínio e lá foi o primeiro óbito. O barranco desceu, caiu em cima das casas e uma criança de nove meses ficou nos escombros.” Monica Antunes, 49, fotógrafa, mora na praia vizinha, Boiçucanga. Integrou-se a um mutirão promovido pelo chef Eudes Assis, empresário da região que está fazendo marmitas para a equipe de resgate e vítimas. “A situação é bem grave”, diz ela. “Tenho conversado com caiçaras, pessoas que moram na região há mais de 50 anos e nunca viram nada parecido. Da minha casa vejo um morro a 5 km. De lá foi retirada uma família com quatro pessoas. Conheci um menino num hospital de Caraguatatuba que está sozinho. Tem quatro anos e está sem nenhum responsável, pois não acharam parentes.” O empresário Leandro Bartulic, 34, conta que conseguiu voltar para São Paulo na terça-feira, mas toda a família ficou na praia de Juquehy, uma das mais afetadas. “Estão cobrando R$ 50 mil a viagem de helicóptero para ir retirar alguém”, diz.

“Quando vemos que a maior autoridade do País está agindo de maneira ágil, ficamos esperançosos” Aliel Machado (PV), deputado

Enquanto o governador permanecia liderando os esforços de resgate e os ministros multiplicavam as iniciativas de auxílio, a mobilização de Lula repercutiu no Congresso. O líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), disse que o governo está se aliando ao poder político local por questões humanitárias e suprapartidárias. “Os brasileiros, enfim, possuem um governo, com sensibilidade e capacidade de reagir aos desafios do País. Essa mudança é alentadora”. Na Câmara, o assunto também predominou entre parlamentares de diferentes partidos. O deputado Castro Neto (PSD-PI) avaliou a ação federal como “rápida e exemplar” e disse que salvar vidas é a prioridade e está acima de qualquer diferença partidária ou ideológica. “O grande diferencial em relação ao último governo é que o povo passou a ser prioridade e a palavra e ordem é reconstruir o País.” Para o deputado Aliel Machado (PV-PR), Bolsonaro não conseguia compreender a responsabilidade de ser presidente da República, terceirizava a culpa e apostava em intrigas. “O Brasil também sofre e se solidariza. E quando vemos que a maior autoridade do País está agindo de maneira ágil, nos sentimos mais confortáveis e esperançosos.”

O líder do PSB na Câmara, Felipe Carreras (PE), ressalvou que as ações do governo precisam refletir em projetos futuros que garantam a segurança de moradores de áreas de risco. “Foi uma mudança brusca de gestão. É muito importante para o País um presidente que mostra essa sensibilidade. Acho que tem que ter um acompanhamento maior e investimento em prevenção”, frisou. Mas esse otimismo precisa ser visto com reserva, já que o caos no litoral paulista também lembrou mais uma vez que a ocupação irregular e a construção de moradias em áreas de risco são chagas antigas.

Apenas na área atingida, no município de São Sebastião, em 2019 havia 52 pontos sujeitos a deslizamentos de terra em 21 núcleos de moradias ou bairros, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A jornalista Márcia Pereira, 49, que teve sua casa de veraneio na praia de Camburi alagada, lembra que as principais vítimas estavam nos bairros mais periféricos. “São as pessoas que moram perto das encostas e morros onde a vida é mais barata. Eles compram imóveis ou constroem. E nem é ilegal, pois compraram.”

O ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, que está à frente da reação federal à tragédia, disse à ISTOÉ que o governo mapeou 14 mil áreas com alto risco de deslizamento de encostas no País. Essas regiões abrigam quase 4 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade. Em 1,3 mil municípios, foi reconhecido estado de emergência. Esse número tende a aumentar, avaliou o ministro. “Estamos ajudando todos, o apoio vai desde carro-pipa no Nordeste, alimentação, produtos de higiene pessoal, depende muito da situação de cada região. O trabalho de prevenção, de ações de estruturação de encostas, de habitação, de demanda dirigida, deve ser muito forte no governo Lula.”

Descaso

O ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, denunciou o descaso da gestão Bolsonaro. “Infelizmente o governo anterior desmontou toda a estrutura de prevenção e cuidados com desastres, que estava com orçamento quase zero “, declarou. Góes diz que o valor deixado pelo governo Bolsonaro para ações emergenciais relacionadas a desastres naturais no Brasil foi de R$ 25 mil. Com a aprovação da PEC da Transição e um reforço em mais de R$ 130 milhões no projeto inicial da Lei Orçamentária Anual de 2023, a soma para ações de prevenção e defesa civil ultrapassou R$ 766 milhões.

“O valor deixado por Bolsonaro para ações emergenciais foi de R$ 25 mil” Waldez Góes, ministro do Desenvolvimento Regional

Entre as medidas anunciadas por Lula está a retomada do programa Minha Casa Minha Vida, que foi praticamente paralisado no governo Bolsonaro. O presidente inclusive se propôs, no calor da hora, a levar o programa para a região atingida. É uma notícia auspiciosa, mas insuficiente diante do desafio. O governo tem a meta ambiciosa de contratar 2 milhões de moradias até o fim da gestão, mas isso representa apenas cerca de um terço do déficit calculado de residências. E o programa, desde o seu lançamento em 2009, não amenizou o problema de falta de moradias — ao contrário, o déficit habitacional aumentou desde então. Também é necessário rever as construções distantes dos locais de trabalho dos moradores. Além disso, a remoção de locais de risco e o sistema de alerta precisam ser aperfeiçoados. Afinal, a mudança climática está ampliando a gravidade e a frequência desses eventos. O novo governo acertou em priorizar o meio ambiente, mas há um longo caminho a percorrer. O País está redescobrindo as noções de justiça e solidariedade, mas precisa enfrentar seus desafios históricos, que continuam a perdurar ao longo de diferentes governos.

Colaboraram Dyepeson Martins e Elba Kriss

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sábado, 25 de fevereiro de 2023

AH, SE A SELIC FOSSE, DE FATO, A TAXA DE JUROS REAL...

Ivanir José Bortot, OS DIVERGENTES

As operações com títulos do Tesouro Nacional tendo como referência a Taxa Selic do Banco Central (BC) são lucrativas, mas o spread bancário é que dá imensos ganhos aos bancos nos empréstimos às pessoas físicas e empresas. É importante o esforço do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, alertando o Banco Central sobre a necessidade de reduzir a taxa básica de juros atual, em 13,75%, mas sem uma queda nos spreads bancários nas intermediações financeiras o custo final do tomador de crédito continuará sendo um fator que impede a retomada do crescimento da economia.

Mas o que é, afinal, o spread? 

O spread bancário é a diferença entre o custo de captação dos recursos feita pelo banco junto aos seus rentistas, sempre inferior à Taxa Selic, e o que a instituição vai receber no empréstimo. Os impostos cobrados pelo governo, os custos operacionais do banco e a inadimplência são alguns componentes do spread bancário.

Cada instituição financeira tem seus cálculos. A realidade é que não existe no mercado hoje, entre bancos públicos ou privados, nenhuma linha de crédito que não seja o dobro da Taxa Selic, hoje em 13,75%. Há casos em que o custo do financiamento é mais de 500% da Taxa Selic. O custo elevado do dinheiro é atribuído à inadimplência. Os que pagam em dia acabam tendo que arcar com os custos dos prejuízos dos bancos com os inadimplentes, justificam os banqueiros.

O  comprometimento da renda dos brasileiros com dívidas é de 31%. Se incluídos nesta conta aqueles com financiamento imobiliário, este percentual sobe para 49%.

A retomada do crescimento como Lula deseja depende da redução da Taxa Selic, mas, acima de tudo, do spread bancário para que o cidadão possa pagar suas dívidas e tenha recursos para ampliar o consumo, condição fundamental para o aumento da produção e geração de emprego, renda e impostos.

Bradesco ou BB? Quem cobra mais? 

Os últimos dados divulgados pelo Banco Central, a partir de pesquisa feita entre 27/01/2023 a 02/02/2023, apontam que, em grande parte das operações, os custos de bancos privados são inferiores aos dos bancos públicos, como o Banco do Brasil. Na aquisição de empréstimos para pessoa física, a taxa de juros é de 28,05%, no Bradesco, e 29,50%, no Banco do Brasil. O financiamento de veículos no Bradesco é de 24,92%; no Banco do Brasil, 25,77%. O dívida do cartão de crédito parcelada do Bradesco é de 92,58%; no Banco do Brasil, 211,56% , e na Caixa Econômica Federal, 156%. O crédito consignado do INSS no Banco do Brasil é de 26,16%; no Bradesco, 27,70%.

Nas operações feitas com as empresas, o Banco do Brasil só tem uma com taxas menores do que o Bradesco. O crédito à pessoa jurídica de antecipação de faturas do cartão de crédito do Banco do Brasil é de 15,97% ao ano, e do Bradesco de 26,55%. A linha de capital de giro de 365 dias para as empresas tem custo de 32,84% no Bradesco, e de 41,05% no Banco do Brasil. O desconto de duplicatas no Bradesco tem juros de 20,69%, e no Banco do Brasil de 21,50%. A conta garantia tem custo de 45,94% no Bradesco, e 49,73% no Banco do Brasil.

Veja mais informação aqui.

As duas instituições financeiras foram escolhidas por praticarem taxas de juros médios nesta escala de pesquisas e pela dimensão de suas operações em todo o território nacional. De acordo com o estudo do Banco Central, há bancos que praticam juros mais baixos e outros muito mais altos.

+ spread = + inflação – crescimento 

Os elevados spreads acabam tendo um forte impacto no custo de produção, nos preços de bens e na inflação. A redução nos custos de intermediação financeira é tão importante, ou até mais, do que a queda das taxas básica de juros, a Selic.

O presidente do BC autônomo, Roberto Campos Neto, disse no programa Roda Viva, da TV Cultura, desta semana, que 76% do volume de crédito no mercado são concedidos com recursos dos bancos privados. Os restantes 24% têm como referência a Taxa Selic em operações de longo prazo feitas pelos bancos de fomento, como o BNDES, ou captações de grandes conglomerados empresariais. Eles conseguem emitir debêntures pagando a variação da inflação mais juros reais em torno de 6%.

O importante é entender que o papel de calibragem da Taxa Selic, embora ajude a reduzir o custo de dinheiro ao tomador final, tem o papel de preservar o valor da moeda. Se a autoridade monetária erra de mão causa grandes prejuízos no combate à inflação e ao crescimento da economia. Já a redução do spread bancário contribui para diminuir os custos de financiamento de toda a atividade econômica e para melhorar a produtividade e  a competitividade do País.

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O CARNAVAL DERROTA O PRECONCEITO

Elba Kriss, Thales De Menezes, ISTOÉ

Vitória da Imperatriz Leopoldinense faz do Carnaval uma resposta à xenofobia incentivada por Bolsonaro

A vitória da Imperatriz Leopoldinense no desfile do Rio, levando à avenida Lampião e a cultura nordestina, é resposta às humilhações xenofóbicas de Bolsonaro contra o povo da região, que ajudou a eleger Lula

“O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarda.” Esse título longo e muito peculiar dá nome ao samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, campeã do Carnaval 2023 no Rio de Janeiro. Por trás dele, duas histórias de redenção: da escola de samba, agremiação muito forte que não vencia um desfile há 22 anos, e do povo nordestino, que viu sua cultura e sua tradição levadas ao mundo inteiro numa exibição primorosa na Sapucaí. Uma vitória do Nordeste, que foi vilipendiado sucessivamente por Jair Bolsonaro durante os quatro anos de seu governo. O autor de seguidos deboches humilhantes a essa região do País agora vive entrincheirado nos Estados Unidos, querendo escapar da prisão. E os nordestinos, que colaboraram em peso para a eleição de Lula, cantam e comemoram.

A proposta da escola foi contar a história do pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, inspirada na vasta literatura de cordel sobre o bandido muito violento que ganhou aura de herói. Os moradores das cidades por quais ele passava com seu bando fortemente armado temiam por suas vidas, mas uma parte da população enaltecia seu nome pela postura de bravura e de honra. O enredo brinca ao dizer que, depois de morto, nem o Céu nem o Inferno queriam recebê-lo.

A rejeição a Bolsonaro cresceu diante das constantes humilhações proferidas pelo ex-presidente, algumas até anteriores à eleição vencida em 2018. Ainda deputado federal, ele declarou: “O voto do idiota é comprado com Bolsa Família. Se você for no Nordeste, você não consegue uma pessoa para trabalhar na tua casa. Você vê meninas no Nordeste que batem a mão na barriga, grávidas, e falam o seguinte: esse aqui vai ser uma geladeira, esse aqui vai ser uma máquina de lavar, e não querem trabalhar. Aqui, ó!”.

No primeiro ano de mandato, em julho de 2019, sentado à mesa com jornalistas para um almoço, Jair Bolsonaro se referiu ao Nordeste como “terra de paraíba”, termo usado neste caso em tom jocoso, para depreciar os nordestinos. Na ocasião, ele aliou o preconceito a um ataque direto ao então governador maranhense, Flávio Dino, hoje ministro da Justiça do governo Lula. “Desses governadores de estados de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão”, afirmou Bolsonaro.

Em uma live promovida pelo então presidente, neste mesmo ano, foi ofensivo a seu convidado, que se transformaria em um de seus mais ferrenhos apoiadores. “Você tem algum parente pau-de-arara?”, perguntou a Tarcísio de Freitas, então ministro da Infraestrutura e hoje governador de São Paulo, que respondeu ter familiares no Piauí e no Rio Grande do Norte. Então Bolsonaro emendou: “Com esta cabeça aí, tu não nega, não”.

Durante visitas ao Nordeste na campanha para reeleição, ele voltou a usar expressões como “cabeça-chata”, “pau-de-arara” e “paraíba” sem constrangimento. A xenofobia de internautas dos estados do Sul e Sudeste, que já era acolhida no mundo digital pela falta de regulamentação nas redes, recebeu esse “incentivo oficial” para ganhar espaço.

“O Nordeste merece toda a nossa gratidão porque, se não fosse ele, talvez a gente estivesse amargando mais um tempo de neofascismo miliciano evangelizador.”

Matheus Nachtergaele, que foi Lampião no desfile da Imperatriz Leopoldinense

O ator Matheus Nachtergaele, que foi o Lampião na Sapucaí, ao lado de Regina Casé como Maria Bonita, falou a ISTOÉ sobre a valorização do Nordeste e a grande maioria de votos alcançados por Lula na região. “O Nordeste merece toda a nossa gratidão porque, se não fosse ele, talvez a gente estivesse amargando mais um tempo de neofascismo miliciano evangelizador. Sai de lá curado pela beleza do espetáculo e do Carnaval da Imperatriz, e pela emoção de estar de novo em grupo nesse que é o maior espetáculo a céu aberto do mundo. Estou bem feliz.”

A representatividade de Lampião como ícone popular é incontestável. Além do desfile campeão no Rio, o “Rei do Cangaço” foi tema no Sambódromo paulistano. A Mancha Verde conquistou o vice-campeonato também com o cangaceiro como tema. No principal carro alegórico da Imperatriz, que trouxe um rosto gigante do homenageado, apareceu à frente com destaque Expedita Ferreira, de 90 anos, a única filha de Lampião e Maria Bonita. Ela também figurou no desfile da Mancha Verde.

A proposta de falar de Lampião abriu espaço para a representação de outros ícones da cultura nordestina. A Imperatriz trouxe à avenida passistas com roupas e maquiagem que remetiam às cerâmicas de Mestre Vitalino, criador de pequenas peças de barro com figuras inspiradas nos personagens do sertão nordestino, como cangaceiros, beatos, retirantes e seus burricos. Morto em 1963, o artesão atravessou as fronteiras de sua terra, Pernambuco, e se tornou uma grande referência mundial na arte em barro, imitado por milhares de artistas. Na Mancha Verde, outros notáveis tiveram suas figuras celebradas em carros alegóricos, como o sanfoneiro Luiz Gonzaga, também pernambucano, e o Padre Cícero, cearense.

Para Rodrigo Rainha, professor de História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, essa revitalização da cultura nordestina tem mensagem clara. “É olhar para as três últimas eleições nacionais e perceber esse posicionamento político e entender: não é um acidente. É um elemento de posição histórica do que representa o peso do Nordeste na cultura brasileira.”

O fato de a Imperatriz ter baseado seu enredo em literatura de cordel é destacado pela socióloga Leandra Brito de Jesus, da Fundação Santo André. “O cordel precisa ser tratado como literatura, não pode mais ser qualificado como algo exótico. Desenvolver um tema com Lampião, Céu e Inferno foi arriscado, se pensarmos que no Rio de Janeiro o conservadorismo evangélico predomina nas periferias.” Para a socióloga, “o Nordeste não é só praia para turista. Essa vitória me parece também um recado, o mesmo que tivemos no primeiro turno da eleição passada, quando foram ridicularizados ou ofendidos por uma parcela conservadora da sociedade: nós temos cultura, não aceitamos imposições. Vocês vão ter que nos escutar.”

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RÚSSIA, UMA CHARADA EMBRULHADA NUM MISTÉRIO

Milton Blay, OS DIVERGENTES

Ao comemorar um ano, a guerra da Rússia contra a Ucrânia não avançou um milímetro rumo à paz. Não se vislumbra neste momento, apesar da resolução da ONU (votada pelo Brasil) exigindo a retirada das tropas invasoras e a favor de uma paz justa, nenhuma possibilidade de negociação, nem sequer de diálogo. Ao contrário, depois de mais de 300 mil mortos, nos próximos meses o risco é a multiplicação do número de vítimas. Moscou prepara a grande ofensiva da primavera, que, segundo Zelenski, já teria começado. O ocidente acelera o fornecimento de armas à Kiev e se prepara para um conflito duradouro.

Putin, escrevia o Financial Times, “só ouve Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande. Para ele e para os seus émulos, a captura da Ucrânia é um desígnio da Santa Rússia reclamado pela História grandiosa dos seus heróis. No discurso sobre o estado da nação, esta semana, o déspota do Kremlin referiu-se à guerra como uma ameaça do Ocidente à existência da Rússia, repetindo o que vários Romanov, Lenine ou Staline disseram”.

“Muito claramente, a hora não é de diálogo”, anunciou o presidente francês, Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, onde aproveitou para fazer o seu mea culpa por ter acreditado na palavra de Vladimir Putin.

“Há um ano falei com Putin e ele assegurou-me que o grupo de mercenários Wagner não tinha nada a ver com ele – que era apenas um projeto empresarial. Acreditei nisso. Hoje vemos que o grupo Wagner está envolvido na guerra russa contra a Ucrânia. Tornou-se numa nova ferramenta mafiosa para criar crimes e injustiça”.

Para quem não sabe, Wagner é uma organização paramilitar de origem russa, que se apresenta como uma espécie de empresa militar privada, uma rede semioficial de mercenários ligado ao governo russo, que atua em várias regiões pelo mundo, sobretudo no Donbass, leste da Ucrânia, Síria e África. Muitos descrevem o Grupo Wagner como sendo um grupo de fachada do Departamento Central de Inteligência (GRU) das Forças Armadas Russas, utilizado como braço de apoio em conflitos onde a Rússia está engajada. O grupo recebe equipamento e usa instalações das Forças Armadas Russas.

Em Munique, os dois países motores da construção europeia falaram de uma só voz. “Penso que é sensato que nos preparemos para uma guerra longa”, disse o chanceler alemão Olaf Sholz, que salientou a necessidade de armar a Ucrânia. “Não são as armas que fornecemos que prolongam a guerra, é exatamente o oposto. Quanto mais cedo o presidente russo perceber que não conseguirá atingir o seu objetivo imperialista, maiores são as probabilidades desta guerra acabar em breve e da tropa conquistadora russa bater em retirada.”

Os tambores de guerra soam e o ocidente parece acreditar que a Ucrânia pode ganhar a guerra. Ou sonha com isso. Temem que após uma eventual vitória russa na Ucrânia eles serão os próximos alvos.

O fato do conflito ter a Europa como palco não é um mero detalhe.

Além de partilharem a  cultura europeia, os ucranianos surpreendem ao resistir à agressão de um inimigo que, além dos horrores que já praticou na Ucrânia, pretende ir mais longe e, se o deixarem, atingirá a UE e os seus regimes democráticos. Isto é particularmente claro nos países da zona tampão dos tempos da URSS (criada a partir do pacto germano-soviético assinado por Molotov-Ribentrop), que têm mostrado solidariedade ativa com a Ucrânia. Esses países conhecem o sentimento hegemônico do gigante russo desde os tempos do império czarista, tanto assim que aderiram todos à OTAN, para obter proteção. Temem que após uma eventual vitória russa na Ucrânia eles serão os próximos alvos.

O poderoso Exército russo foi humilhado, para surpresa de muitos observadores ocidentais que sobrestimavam a sua força (e, sobretudo, a sua qualidade), enquanto se enganavam nos efeitos das sanções econômicas, até hoje pouco eficazes.

Putin, segundo o jornal Público, de Lisboa, errou os cálculos e os ucranianos ridicularizaram os seus sonhos imperiais. Mas jamais se confessará vencido e será tentado por uma grande escalada. Esta aliás já começou com os ataques às infraestruturas e a objetivos civis, procurando vergar a Ucrânia pela exaustão. Mas é altamente improvável que Moscou consiga obter vitórias militares decisivas.

A parte mais forte, a Rússia, não consegue vergar a mais fraca. Enquanto a a parte mais fraca, a Ucrânia, não pode vergar a mais forte. Sem soluções militares, restam as opções diplomáticas, mas também aí não há soluções à vista. A Ucrânia, prometem Biden e os aliados europeus, não pode perder um centímetro do seu território. Mas a Rússia jamais admitirá negociar a paz sem recuperar a Crimeia, que lhe pertenceu, de fato,  do século XVIII até 1954.

Winston Churchill escreveu um dia que “a Rússia é uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma”.

A leitura da extrema-direita europeia (com exceção da Itália de Giorgia Meloni) e de uma parte da extrema-esquerda, relativiza a gravidade da invasão, já que, em última instância, seriam os EUA e as forças militares submetidas a Washington os verdadeiros responsáveis, por terem montado “um cerco à Rússia”. Ou seja, sugerem que o conflito não é uma questão de invasão ilegal de um país – a Ucrânia – por outro – a Rússia -, mas sim uma proxy war da Rússia com a OTAN e o Ocidente, que no fundo exprime uma atitude nostálgica e “ocidentalofóbica”.

Os que pensam assim são nostálgicos dos tempos da Guerra Fria e da URSS, da divisão do mundo em zonas de influência, em que cada país teria uma soberania limitada em termos de política externa e de alianças geopolíticas face à potência dominante. Assim, as Repúblicas Socialistas Soviéticas (como os Bálticos, a Ucrânia, a Moldávia, os países do antigo Pacto de Varsóvia), seriam “o quintal dos russos”. Enquanto a América Latina e a Europa ocidental seriam “o quintal dos Estados Unidos”.

Para a esquerda stalinista, a leitura é simples: o inimigo do meu inimigo é meu amigo; logo, apoia-se a Russia contra o Ocidente liderado pelos Estados Unidos.

A guerra levou a Europa a olhar para o passado, para os conflitos que a destruíram na primeira metade do século XX, e que acreditava enterrados para sempre. Foram precisos 11 meses de resistência ucraniana para que os líderes europeus percebessem que esta é uma guerra europeia. E que o fim do caminho levará à integração de Kiev à União Europeia. Os líderes europeus, na sua maioria, perceberam que é essa a sua missão neste momento preciso da história da Europa. Como escreveu o jornal Le Monde, em editorial, “se a guerra russa começou como uma ameaça existencial para a Ucrânia, transformou-se, um ano depois, numa ameaça existencial para a Europa”.

Putin, escreve a analista Teresa de Sousa, cometeu um erro colossal: “quanto mais intensificar os combates, quanto mais destruição causar, quanto mais crimes de guerra cometer, maior será o apoio e a solidariedade europeus.

Não se trata apenas de uma questão de dever de solidariedade para com um povo que sofre a brutalidade do agressor. É uma questão de avaliação geopolítica. No Palácio do Eliseu, ao receber Zelensky em 9 de fevereiro, na companhia de Scholz, Macron foi explícito: “A Rússia não pode vencer, não deve vencer.” Macron abandonou seu discurso sobre “garantias de segurança” para Moscou e a necessidade de “não humilhar” Putin. Em dezembro passado, já tinha prometido apoiar a Ucrânia “sem falhas, até à vitória”. Falta à França aumentar o seu apoio militar à Kiev, a exemplo de Londres e Berlim. Os sinais são inequívocos, a Europa vive o pior conflito desde a 2° Guerra Mundial.

O fato de Suécia e Finlândia abandonarem a neutralidade para bater à porta da Aliança Atlântica é significativo. Por outro lado, os países bálticos olham para a Ucrânia e vêem o legado de opressão  durante a era soviética: execuções e prisões em massa, expropriações, deportações em massa para o gulag etc. E as minorias russófilas nestes países não são mais do que os descendentes dos colonos que Stalin lá plantou para dominar esses países, onde a língua oficial era – por imposição do Kremlin – o russo.

Para Susi Dennison, investigadora de assuntos políticos no European Council on Foreign Relations, “a guerra em curso na Ucrânia fomentou a união do Ocidente e da Europa em particular, além de expor um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países.”

“Um ano após a invasão russa,  está em curso uma remodelação determinante da ordem internacional. O Ocidente, unido pela primeira vez em anos, redescobriu o seu propósito. Entretanto, noutras latitudes, há uma competição crescente pela liderança geopolítica entre as potências emergentes.

Na Europa, o conflito suscitou preocupações quanto à capacidade do continente de se defender e à escala do seu apoio ao esforço de guerra ucraniano, com as ofensivas de primavera a se aproximarem. Ao mesmo tempo, também pôs a nu a complexidade da UE se retirar, a longo prazo, da dependência que há muito tem da energia russa.”

A opinião pública europeia está convencida da necessidade de apoiar a Ucrânia na sua luta. Uma nova pesquisa, levada a cabo em dez países europeus, bem como na Índia, na Turquia, na China e na Rússia – divulgada pelo European Council on Foreign Relations constatou que os europeus continuam unidos no seu apoio à Ucrânia e no seu desejo de ver a Rússia derrotada no conflito.

Apesar das dificuldades no abastecimento energético do bloco e dos danos  causados nas economias nacionais, a Europa mantém o  embargo ao combustível russo. Quanto à percepção que os europeus têm da Rússia, mais de dois terços dos cidadãos da UE (66%) e da Grã-Bretanha (77%) vêem a Rússia como um “adversário” ou“rival”, contra 71% dos americanos.

Há um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países. Embora exista alguma semelhança em quererem o fim do conflito, as condições em que isto pode ser conseguido diferem. Na Europa e nos EUA, por exemplo, a opinião predominante é a de que a Ucrânia precisa de recuperar todo o seu território, mesmo que isso signifique uma guerra mais prolongada. Já na China, Turquia e Índia, a maioria prefere um fim rápido da guerra, mesmo que isso signifique que a Ucrânia ceda uma parte de seu território à Rússia.

O resultado mais relevante revelado pelo estudo mostra como os cidadãos vêem o estado do mundo e a futura ordem global. No Ocidente, o legado da Guerra Fria continua a moldar a opinião pública. Há uma forte convicção de que estamos entrando novamente num mundo bipolar, liderado, respectivamente, pelos EUA e pela China. Mas, noutros países, em particular entre potências emergentes, como a Índia e a Turquia, a visão é outra. Seus habitantes vêem  seus países como atores em crescimento no panorama internacional e prevêem o desenvolvimento de uma ordem mundial multipolar, dividida entre diversos centros de poder. O Ocidente seria apenas um polo dentre muitos, e não seria nem o definidor da ordem internacional nem o líder da democracia global.

Os próximos meses serão determinantes para a construção deste mundo pós-Ocidental cada vez mais dividido. A guerra deixou visível a ponta do iceberg. Num futuro, provavelmente próximo, estaremos mergulhados num mundo novo, extremamente instável e conturbado, em que a crise geopolítica virá se somar a tantas outras.

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