quarta-feira, 31 de março de 2021

CONFRONTADO, BOLSONARO COSTUMA FALAR FINO

Do Blog do Noblat - VEJA

Ato truculento abre feridas difíceis de cicatrizar

Bolsonaro quis mostrar-se forte aos olhos dos seus devotos com o ato de demitir a cúpula das Forças Armadas. Foi também para esconder que, alugado pelo Centrão, liberou bilhões de reais para obras em redutos eleitorais de deputados e senadores, cedendo-lhes outro ministério com direito a assento no Palácio do Planalto.

Para isso valeu-se de um ardil – a demissão fake dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Uma vez que o general Fernando de Azevedo e Silva fora demitido de forma humilhante durante uma conversa de cinco minutos, os três comandantes haviam combinado sair solidários com ele.

O general Edson Leal Pujol, do Exército, sabia que o próximo alvo seria ele. O almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudez não ficariam nos postos se Pujol fosse removido. Como a informação vazou na noite da segunda-feira, Bolsonaro orientou Braga Neto, ministro da Defesa, a anunciar a saída dos três.

O presidente não contava com a reação de tantas vozes, civis e militares, de repúdio à sua atitude. A reprovação foi generalizada. Uma única voz de peso não se fez ouvir em sua defesa. Que ninguém se espante se, hoje ou amanhã na sua live semanal no Facebook, ele fale fino como costuma fazer quando confrontado.

Bolsonaro está em guerra – mas não contra o vírus. Contra seus próprios demônios.

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A ATITUDE PROFISSIONAL DAS FORÇAS ARMADAS

Otávio Santana do Rêgo Barros, Blog do Noblat - VEJA

Estamos diante de uma crise política que se avoluma diariamente, com efeitos não totalmente mensurados, embora eu não acredite que venha a se tornar institucional. Os sistemas de freios e contrapesos ajustarão a temperatura.

As mudanças constantes e atabalhoadas da gestão, às vezes deslocadas dos princípios mais salutares das democracias maduras, vêm promovendo preocupações em todos os estamentos da sociedade.

O chefe do poder executivo, por vezes, intenta estabelecer uma ligação emocional entre as suas deliberações e a instituição de Estado: Forças Armadas. 

O processo deliberativo é arcaico. Está longe de tangenciar aquilo que é defendido no âmbito do estamento militar. Modernas ferramentas de profissionalização foram introduzidas nos atuais integrantes das Forças Armadas.

 Na Academia Militar das Agulhas Negras, uma frase lapidar nos impacta diariamente ao avançarmos para o rancho, marchando no Pátio Marechal Mascarenhas de Moraes: “Cadete ides comandar aprendei a obedecer”. 

Mas a roupagem é contemporânea, não é antolhada, e lembra as lideranças que privilegiam a flexibilidade, o trabalho em equipe e o êxito individual como estímulo. É o co(+)mandar. Mandar com.

O mandatário não é mais um militar. Ele detém, tão somente, uma carta patente que indica ter obtido, em um determinado momento da vida, os requisitos para exercer as funções intermediárias na hierarquia da oficialidade das Forças Armadas. 

O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes - não esteve presente em sua trajetória.

Permaneceu como aluno, cadete e oficial cerca de quinze anos. Como político, mais de trinta anos. Naturalmente os atributos que lhe foram ensinados, enquanto militar, ficaram pelo caminho, substituídos por conceitos não aplicados dentro de uma instituição como é o Exército Brasileiro.

Seu aparente desejo de transformar essa centenária instituição, detentora dos mais altos índices de confiabilidade, em uma estrutura de apoio político, afronta tudo o que defendem as Forças Armadas em sua atitude profissional.

Buscar adentrar as cantinas dos quartéis com a política partidária é caminho impensado para as Forças Armadas. Elas já estão vacinadas contra esse vírus.

Não se pode também aceitar uma transformação no core da instituição Forças Armadas, cambiando as cláusulas pétreas que as sustentam secularmente: hierarquia e disciplina, pilares para o exercício da função de constitucional, conforme sobejamente referendado pelos nossos comandantes.

É preciso deixar claro, entretanto, que não há nenhum sinal de alerta pulsando. A profissionalização castrense ultrapassa amadorismos atemporais que possam prejudicá-la. As lideranças estão atentas: as de ontem, as de hoje e as de sempre. As ideias de legalidade, legitimidade e estabilidade permanecem indicando o caminho.  E as Forças Armadas diariamente reforçam a sua imunidade.

Paz e Bem!

Otávio Santana do Rêgo Barros,  é general do Exército e ex-porta-voz da presidência da República. Escreve aqui às quartas-feiras

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O BRASIL NÃO MERECE A COVID E BOLSONARO AO MESMO TEMPO

Edna Lima, OS DIVERGENTES

Não bastasse conviver diariamente com o aumento exponencial do número de mortes provocadas pela pandemia de covid-19 – mais de 100 mil só no primeiro trimestre deste ano -, nós, brasileiros, ainda temos que enfrentar os surtos autoritários do presidente Bolsonaro de tempos em tempos. Desde que assumiu em 2019, ele acena para as Forças Armadas vislumbrando um autogolpe para se perpetuar no poder.

Graças a Deus até agora não obteve sucesso,- nem todos os generais são submissos como Pazuello -, mas ainda restam 21 meses pela frente para continuar tentando. Enquanto isso, as instituições e a sociedade, que deveriam focar no que realmente importa, que é o combate à pandemia, passam o tempo todo se preocupando em resolver as crises geradas pelo próprio presidente.

Embora tenha chegado à presidência da República pelas vias democráticas, Bolsonaro sempre teve um ímpeto autoritário e desde o início do mandato vem provocando as instituições. Estimulou manifestações pedindo intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo, de algumas delas até participou pessoalmente.

Mesmo com a pandemia, os malucos saiam às ruas para ameaçar os integrantes do Legislativo e do Judiciário. Essa situação só parou depois que o Supremo adotou uma postura mais enérgica e mandou prender alguns militantes bolsonaristas como Sara Winter e o blogueiro Oswaldo Eustáquio, ambos abandonados a própria sorte pelo “mito”.

Além dos arroubos autoritários, Bolsonaro costuma usar os órgãos de estado, criados para servir aos interesses do País e não do governante da hora. Foi assim quando tentou interferir na Polícia Federal para proteger os filhos e aliados, enrolados em investigações incomodas. E foi assim quando usou a Abin para ajudar a defesa do 01, o senador Flávio Bolsonaro, no caso das rachadinhas.

Bolsonaro parece não entender bem a diferença entre público e privado e chama “meu Exército”, como se fosse uma instituição dele. E coloca esses órgãos públicos a serviço dos interesses pessoais seus e dos seus filhos, mesmo que não sejam os interesses do Brasil.

E de surto em susto, o Brasil segue sacolejando entre uma tentativa de golpe aqui, um abuso de autoridade acolá, sem conseguir combater os problemas que afligem de fato a população como o desemprego, a crise econômica e a crise sanitária que já ceifou quase 320 mil vidas.

A pergunta que se faz é: o que é preciso acontecer mais para que as autoridades tomem uma providência efetiva em relação aos desatinos de Bolsonaro e deixem de lado o faz de conta das notas de repúdio em redes sociais? Com a palavra o Congresso Nacional.

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O PARADOXO DO COVEIRO

Cesar Zucco e Daniela Campello, PIAUÍ

Era uma tarde ensolarada em março de 2020 quando saímos da redação da revista piauí animados com a ideia de escrever um artigo analisando a situação política do país  com base no nosso recém-terminado (e naquela época ainda não publicado) livro, The Volatility Curse. O texto giraria em torno do conceito de responsabilização – do quanto os eleitores conseguem distinguir “sorte” (choques externos) de “competência” (qualidade das políticas implementadas) quando avaliam seus governantes. Poucos dias depois, entretanto, antes mesmo de que começássemos a alinhavar as ideias, o mundo mudaria radicalmente, tornando impossível falar de política sem contemplar o novo cenário imposto pela pandemia da Covid-19. 

O texto publicado na edição de junho de 2020 ainda tratava de responsabilização, porém agora com o pano de fundo do “choque externo do século”. Nosso foco voltou-se para as ações adotadas pelo governo Bolsonaro em resposta a esse choque e suas potenciais consequências para a sobrevivência do governo. 

Nosso argumento, que inclusive deu nome ao texto, era de que Bolsonaro cometia dois erros fundamentais em sua resposta à pandemia. O primeiro consistia em apresentar o combate ao vírus e a recuperação da atividade econômica como preocupações antagônicas. Essa falsa dicotomia apoiava-se inicialmente na minimização (“uma gripezinha, um resfriadinho”) e posteriormente na “naturalização” (“todo mundo vai morrer um dia”) das mortes por Covid-19. Envolvia também fazer crer que a retomada econômica deveria ser a principal preocupação (“morrerão mais pessoas de fome”) e que ela só aconteceria à medida em que as pessoas abandonassem o isolamento social e retomassem sua rotina normal de trabalho e lazer. Essas ideias, visivelmente equivocadas já naquele tempo, contribuíram (e seguem contribuindo) não apenas para multiplicar o número de vidas perdidas para o vírus, mas também para atrasar a recuperação da atividade econômica.  

O impacto disso nos parecia claro. O fracasso relativo do Brasil na pandemia deixaria patente o fato de que o país estaria perdendo mais vidas do que seria inevitável em decorrência das políticas e do discurso adotados pelo governo federal. Ao fim e ao cabo, a bolha de desinformação bolsonarista dificilmente resistiria à realidade das pilhas de brasileiros mortos na porta dos hospitais.

O segundo erro de Bolsonaro seria crer que, ao  se posicionar “ao lado dos que precisavam trabalhar” e contrário a medidas de isolamento definidas no âmbito local, conseguiria responsabilizar outros atores políticos – em particular os governadores – pela crise econômica “já contratada”. Não haveria como evitar uma crise econômica, e o negacionismo em nada contribuiria para abreviá-la. Argumentamos, então, com base em farta evidência apresentada no livro, que eleitores latino-americanos, entre eles os brasileiros, sempre responsabilizam o presidente pela economia. Isso acontece independentemente da responsabilidade ser ou não majoritariamente dele.

Um ano e centenas de milhares de mortes depois, é curioso observar que esses dois erros continuam a nortear as ações e palavras de Bolsonaro. Em algum momento de 2020 chegou a parecer que Bolsonaro poderia escapar a essas previsões.  Afinal, na contramão do resto do planeta e apesar da resposta desastrosa à pandemia, depois de uma queda inicial a popularidade do presidente aumentou significativamente à medida em que tanto a pandemia quanto a crise econômica avançavam. Seriam os brasileiros indiferentes às milhares de mortes que vinham observando diariamente? Seria possível que o presidente pudesse convencer a população de que não tinha responsabilidade sobre a crise econômica?

Não nos parece que nenhuma dessas afirmações seja verdadeira. Cidadãos sofrem concretamente com as mortes da pandemia, sobretudo com aquelas que envolvem pessoas próximas. Entretanto, a literatura que estuda o fenômeno do “entorpecimento psíquico” (psychic numbing) nos ensina que, por razões evolutivas e não morais, grandes números reverberam pouco na mente humana. Por outro lado, sabemos que condições materiais importam a cada minuto em que não se tem o que dar de comer aos filhos ou como pagar o aluguel do mês. Por conta de tudo isso, mesmo diante do sofrimento infligido pelas mortes por Covid-19, os brasileiros melhoraram sua avaliação do governo Bolsonaro entre maio e dezembro de 2020, quando o governo passou a conceder um auxílio emergencial num total de  293 bilhões de reais em benefício de 68 milhões de brasileiros. Cerca da metade das famílias do país foram beneficiadas direta ou indiretamente por esse auxílio, um número incomparável ao total de famílias traumatizadas por perdas para a Covid-19.

Graças a esse auxílio, que custou mensalmente quase o dobro do valor anual do Programa Bolsa Família, o número de brasileiros abaixo da linha de extrema pobreza desceu aos níveis mais baixos em quarenta anos. Não é pouca coisa e, dado o que se sabe sobre o impacto político de transferência de renda, não deveria surpreender que uma iniciativa desse tipo tenha dado o fôlego que deu à popularidade do presidente. 

A figura abaixo agrega resultados de 195 pesquisas nacionais de avaliação do desempenho do presidente, realizadas por doze institutos de pesquisa diferentes e cujos resultados estão disponíveis publicamente. A nossa capacidade de inferir causa e efeito entre o benefício e a popularidade é, no contexto atual, limitada, mas observa-se um salto de cerca de oito pontos percentuais na popularidade de Bolsonaro a partir de maio – mês em que atingiu seu patamar mais baixo e quando as primeiras parcelas do auxílio começaram a chegar a todos os beneficiários – e agosto. Esse salto é registrado nas duas formas distintas de agregar as pesquisas que são reportadas na figura (média mensal simples e “popularidade latente”). A popularidade do presidente, então, permaneceu mais ou menos estável nesse patamar mais elevado até o final da vigência do auxílio emergencial em dezembro, quando cedeu cerca de cinco pontos num único mês. Desde então, continua caindo e já igualou as mínimas registradas em maio de 2020, abaixo do mítico “chão dos 30%“.  

Uma inspeção visual dessa figura sugere que as variações na popularidade acompanharam, pelo menos até o final de 2020, as variações na renda das famílias de maneira muito mais nítida do que o número de mortos pela pandemia, reportados em vermelho na figura (dados são do projeto Our World in Data). A  popularidade de Bolsonaro caiu fortemente entre fevereiro e maio de 2020, antes de um aumento expressivo das mortes, mas num período em que os efeitos econômicos da pandemia já eram sentidos. No período de forte aumento de mortes da “primeira onda” da pandemia, entre maio e julho, a popularidade se manteve estável, talvez porque o auxílio já estivesse sendo distribuído. A popularidade de Bolsonaro então experimenta o “salto do auxílio” que ocorre quando as mortes diárias ainda estão no “platô” da primeira onda. De julho a setembro, quando o número de mortes caiu durante a vigência do auxílio, a popularidade não aumentou. Durante todo o ano de 2020, portanto, o comportamento da popularidade do presidente está em linha com a ideia de que ela é primariamente determinada pela economia. 

Na virada do ano assistimos à forte queda na popularidade que coincidiu com o  fim do auxílio. Essa queda coincide também com a aceleração da taxa de mortes que temos vivido desde então. Fica, portanto, mais difícil separar efeitos dos dois processos. Se até o final de 2020  a economia, tal qual experimentada pela maioria das famílias brasileiras, parece ter sido a principal determinante da popularidade, já entramos agora em terreno desconhecido.  É possível que a queda de popularidade se deva sobretudo ao fim do auxílio, numa continuidade do que vimos em 2020. Mas à medida em que cresce a quantidade de famílias expostas a perdas pela Covid e a percepção de que o governo não tem capacidade de atuar na pandemia (hoje 54% dos brasileiros creem que não o tem), não é certo que o passado sirva de guia para o futuro e é possível que o desastre da Covid, independentemente da economia, passe a pesar contra o governo. Podemos haver chegado ao momento em que a realidade se impõe às informações falsas espalhadas pelo governo nas redes sociais. 

Essa nossa ignorância sobre o peso relativo exato das mortes e da economia não nos impede de renovar as nossas projeções iniciais. Como toda projeção, combinamos algumas lições do passado (sobre as quais temos um nível variado de certeza) com cenários para o futuro que são, por natureza, incertos. Sabemos, por exemplo,  que é  altamente improvável que um presidente com a popularidade em níveis similares aos que Bolsonaro tem hoje seja reeleito (como analisamos aqui). Com base no passado, pode-se esperar que a nova rodada do auxílio emergencial tenha algum efeito positivo para a popularidade de Bolsonaro, porém é improvável que esse efeito seja da magnitude observada em 2020. O auxílio de 2021 corresponde nominalmente a pouco mais do que ¼ do auxílio original, será diluído pelo ambiente de alta inflação de alimentos e desemprego persistente e, ainda que quisesse (e devesse), o governo não dispõe nem de recursos nem da tolerância dos “agentes econômicos” para aumentar os seus valores ou estender os pagamentos indefinidamente. 

O passado nos sugere que, para que Bolsonaro se tornasse competitivo para as eleições de 2022, seria necessário que o país experimentasse  uma substancial melhora econômica. Essa melhora poderia, a despeito da inépcia do governo, ser puxada por um cenário externo favorável, como de tempos em tempos ocorre com as economias latino-americanas. Nesse sentido, circulam, já há algum tempo, notícias sobre as perspectivas de um ciclo de aumento do preço internacional das commodities, puxada pela retomada da economia chinesa e gargalos logísticos. 

Entretanto, pela primeira vez em tempos recentes, observamos um aumento de quase 40% no preço internacional de commodities sem que se tenha observado  quaisquer efeitos positivos no Brasil. Episódios similares no passado levaram à valorização da moeda nacional, limitando os efeitos inflacionários dos aumentos de preços e aumentando o poder de compra das famílias. A consequência, quase sempre, foi maior popularidade de presidentes e maiores chances de reeleição (ver também  The Volatility Curse). Hoje, no entanto, temos um aumento das commodities sem valorização cambial. As causas para esse descolamento entre o Brasil e o mundo são complexas e pertencem ao debate econômico, mas a absoluta incompetência do governo tanto na gestão da pandemia e suas previsíveis consequências para a retomada econômica certamente são parte dessa história. 

Sem uma ajuda significativa do cenário externo, e mesmo com ela, a retomada econômica depende do controle da pandemia via políticas de mitigação e aceleração da vacinação. Embora continue sabotando quaisquer medidas não farmacológicas, até Bolsonaro parece ter percebido esse último ponto, ainda que apenas recentemente. Aqui e agora, no entanto, não basta apenas vontade. É preciso uma capacidade de agir que esse governo demonstradamente não tem. Decisões ruins tomadas ao longo dos últimos meses nos deixaram sem perspectivas de vacinas no curto prazo e indicam que a névoa da pandemia somente venha a se dissipar a partir do final do segundo semestre, em um cenário otimista. 

Seguiremos morrendo aos milhares por semanas, talvez meses, enquanto a economia patina com o vaivém das medidas de restrição de atividades tomadas localmente e sabotadas pelo governo central. 

A pandemia teria sido um processo muito difícil mesmo com o melhor dos governos, mas os  erros persistentes de Bolsonaro propiciaram a carnificina que estamos vivendo. Surgem, então, uma série de incógnitas. A entrada de Lula no cenário político, ainda incerta, poderá trazer comparações inevitáveis entre a lembrança da felicidade que foi viver no Brasil entre 2002-2010 e a tragédia atual. O elevadíssimo número de mortes que experimentaremos até o (ainda hipotético) final da pandemia poderá, ao contrário do que ocorreu até agora, vir cobrar seu preço, inclusive em termos de apoio legislativo. O desastre brasileiro ficará ainda mais patente na medida em que outros países emergirem da pandemia enquanto no Brasil a vida, e consequentemente a economia, continuarem em compasso de espera. 

Um dos poucos cenários favoráveis ao presidente seria o de uma retomada econômica imediata após a vacinação em massa. Ainda que a economia seja o maior determinante de popularidade e reeleição, uma retomada pós-vacina  teria que ser muito rápida e muito forte. A popularidade de Bolsonaro poderá estar num nível muito baixo no final de 2021 e mesmo uma recuperação robusta pode não ser suficiente para viabilizar sua reeleição. 

É também possível que Bolsonaro já chegue ferido e tóxico demais a 2022. Sem a confiança dos agentes econômicos e com a popularidade em queda, o presidente perderia também o apoio do Centrão que, afinal, não é dado a abraçar afogados. E nesse cenário, há que se considerar que as mesmas vacinas que poderiam permitir a retomada da economia possibilitaria, também, uma volta dos protestos de rua, o elemento que falta para impulsionar a remoção do presidente. Mesmo que tudo isso venha a ocorrer em um  momento em que um impeachment não seja mais viável, a sua mera possibilidade projeta uma grande sombra sobre o presidente e pode transformá-lo em um  morto-vivo político antes que qualquer recuperação ocorra, ou mesmo a despeito dela.

Bolsonaro terá que se esforçar bastante para sobreviver politicamente ao massacre de brasileiros que ocorre sob a sua gestão e ainda torcer para uma retomada econômica forte em 2022. Há muitas razões para duvidar que seja capaz de capitanear essas exigências. Uma melhoria econômica salvadora teria que ocorrer a despeito do presidente e, nesse momento, parece improvável. A situação não lhe é favorável, mas o presidente não pode culpar ninguém além de si mesmo. Para quem em abril de 2020 afirmou que não era coveiro, Bolsonaro vem fazendo um excelente trabalho cavando a sua própria cova política.

CESAR ZUCCO

Cientista político e professor da FGV/Ebape, é autor de The Volatility Curse, a ser lançado pela Cambridge University Press

DANIELA CAMPELLO (siga @DaniCamp0 no Twitter)

Cientista política e professora da FGV/Ebape, autora de The Volatility Curse, a ser lançado pela Cambridge University Press

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SE A CANOA NÃO FURAR

Artigo de Fernando Gabeira

Como sair dessa? Quando sair dessa? As perguntas não cessam de martelar nossa cabeça, e cada um tenta respondê-las com a mistura de análise e desejo que se entrelaçam em nossas conversas.

De uma forma muito simples, sem censura, tento desenhar para mim um quadro ideal de superação desta crise que, além de matar muita gente, pode nos roubar uma década de desenvolvimento, segundo a própria ONU.

Nesse quadro ideal, unifico três condições: um líder como a da Nova Zelândia, uma vacinação tão intensa como a de Israel e um comportamento social como o japonês.

Diante desse quadro, sinto-me como aqueles andarilhos de uma peça de Harold Pinter que entraram, subitamente, na cozinha de um restaurante. De repente, começaram a surgir pedidos complexos, e eles tinham apenas alguns alimentos nas suas pobres sacolas.

É preciso fazer algo com poucos recursos, porque a luta contra o vírus é real, assim como é verdadeira a tragédia que se abate sobre nosso povo.

O primeiro ponto, liderança nacional: esquece.

Bolsonaro é um estorvo, e temos de seguir sem ele nesta luta, derrubando-o assim que for possível, pelos caminhos viáveis no momento dado.

É necessário um comitê nacional de crise, e não farsa encenada pelo Planalto. Um comitê que expresse a crítica à maneira como se conduziu até agora a luta contra a pandemia.

De nada adiantará, entretanto, apenas um comitê nacional. Ele teria de se apoiar em centenas, talvez milhares, de microcomitês, que tentem impulsionar uma política virtuosa. Esse movimento molecular ainda não surgiu na plenitude, embora tenha se esboçado no princípio da pandemia.

Nos milhares de grupos de amigos, dentro ou fora da internet, teria de ser colocada a pergunta: o que podemos fazer dentro de nossas possibilidades? Sempre haverá uma resposta, por mais modesta.

Essa liderança multiplicada seria importante não só para a necessária solidariedade. Mas também para a busca de uma nova tática que busque um comportamento mais responsável diante da doença.

Mais do que lições de moral, o discurso de cooperação só terá efeito se as pessoas sentirem os benefícios de pertencer a um coletivo humano.

Isso não implica a ausência de lockdowns, mas uma tentativa de superar, com o comportamento, a sucessiva necessidade de lockdowns, o constante fecha e abre que o vírus nos impõe.

O êxito da vacinação não resolve o problema a curto prazo. O Chile planejou e vacinou intensamente, mas está às voltas com um novo pico da doença.

A vacinação em massa é a grande estratégia, e isso até o obtuso presidente parece compreender, agora.

Não creio que o governo conseguirá vacinar 70 milhões de brasileiros até o fim do ano. Basta analisar o complexo mercado planetário de vacinas.

Quebrar patentes é uma solução que a Índia e a África do Sul defendem. Ambas acreditam que existem fábricas ociosas no Sul, e só não produzem porque não detêm o conhecimento.

Esse é um clamor justo. Como dizia Jonas Salk: vamos patentear o Sol?

Mas não há tempo hábil. A própria Índia está restringindo exportações. A Europa neste fim de semana fez uma reunião para endurecer as regras da exportação.

Além de obter a tecnologia para produzir vacinas na Fiocruz e no Butantan, é necessário ficar atento ao mercado internacional. Uma janela pode se abrir nos EUA, que vacinam ao ritmo de três milhões por dia. Pfizer, Moderna e Johnson podem ter uma folga no segundo semestre.

No fim de semana, o Instituto Butantan anunciou uma vacina 100% nacional para ser aplicada em julho. Terá de passar pela Anvisa, mas é uma esperança para o segundo semestre.

Será na combinação desses fatores, nem todos favoráveis, que podemos achar um caminho. Uma liderança nacional colegiada tem apenas uma desvantagem: não dispõe dos recursos materiais que estão sob o controle de Bolsonaro. Mas pode funcionar.

Artigo publicado no jornal O Globo em 28/03/2021

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UM GOVERNO QUE JÁ ERA RUIM FICARÁ PIOR

Do Blog do Noblat, VEJA

Mais uma proeza de Bolsonaro

Comemora-se no Itamaraty a saída do embaixador Ernesto Araújo e a nomeação para seu lugar do embaixador Carlos Alberto França, chefe do cerimonial do Palácio do Planalto. Araújo e França têm em comum a falta de maior experiência como diplomata. Nunca comandaram uma embaixada, só têm o título.

Mas França, pelo menos, se dá bem com seus colegas, é considerado por eles um homem educado e bastante reservado. É remota a possibilidade de que sua promoção indique mudanças sensíveis na política externa do país. Quem a define é o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo, o Zero Três, deputado federal.

O novo ministro da Justiça, o delegado da Polícia Federal Anderson Torres, é amigo do senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, e próximo do pai dele desde que foi assessor parlamentar de um deputado na Câmara. Pai e filho poderão contar com Torres para ajudá-los a enfrentar dificuldades com a polícia e a justiça.

A deputada Flávia Arruda, ministra da Secretaria do Governo, é ligada a Arthur Lira, presidente da Câmara, mas não foi escolha dele para o cargo. Muito menos do Centrão que preferia outros nomes. Flávia pesará nada ou quase nada dentro do governo. Não tem estatura para isso. Seu papel será de leva e traz.

É tal a mediocridade da equipe de Bolsonaro que o mais destacado dos seus quadros políticos continuará sendo o deputado Onyx Lorenzoni, ministro da Secretaria-Geral da presidência da República, que já foi chefe da Casa Civil e ministro da Cidadania. Lorenzoni é candidato ao governo do Rio Grande do Sul.

O comentário zombeteiro que correu ontem em Brasília à medida em que um ministro caía e outro trocava de cadeira foi feito em tom de pergunta: não seria o caso de Paulo Guedes finalmente assumir o Ministério da Economia?

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A CRISE INVADE OS QUARTÉIS

Hubert Alquéres, Blog do Noblat - VEJA

A última vez que um presidente da República deflagrou uma crise ao demitir sumariamente um general em posto de comando foi no episódio Sílvio Frota, quando Ernesto Geisel degolou seu ministro da Guerra. Agora, depois de 44 anos, Jair Bolsonaro volta a demitir sumariamente um ministro da Defesa, o general de Exército Fernando Azevedo e Silva. 

Provocou uma reação em cadeia. Ato contínuo veio o pedido de demissão conjunto dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em um claro desagravo ao agora ex-ministro Azevedo. Mais do que isso: evidenciou que a cúpula militar não está disposta a participar de qualquer aventura golpista. Isso só seria possível se Jair Bolsonaro conseguisse fazer uma “depuração” na tropa, colocando em postos de comando generais dóceis à ideia de um alto golpe. Algo improvável tendo em vista que a cadeia de comando das três forças tem se mostrado altamente preocupada em evitar identificação direta entre governo, uma instituição transitória, e as Forças Armadas, uma instituição permanente de Estado.

É da natureza dos militares evitar demissões coletivas para não serem interpretados como indisciplinados ou quebradores da hierarquia. Quando se demitem de uma função, o fazem sem alarde. O rompimento dessa tradição por parte da cadeia de comando das Forças Armadas é uma demonstração eloquente de que a crise se espraiou pela tropa. Explodiu agora, mas seu rastro vem de longe.

A alça de mira do presidente estava apontada há um ano para a cabeça do comandante do Exército, Edson Pujol. O general é um militar de comportamento exemplar quanto à observância do papel constitucional das Forças Armadas. Sempre se manteve firme contra planos do presidente de politização das tropas e de instrumentalizá-las para seu projeto de poder. 

Bolsonaro agora apostou alto, trazendo a instabilidade política para o núcleo militar, uma área vital do tripé que dá sustentação ao seu governo, que se completa com a ala ideológica e a equipe econômica. 

A caserna vinha passando ao largo da crise tripla (econômica, sanitária e política), não obstante a pregação diuturna de Bolsonaro nos quartéis. Havia uma linha riscada no chão pelos três comandantes, da qual Fernando Azevedo era avalista, delimitando a fronteira das Forças Armadas como instituições de Estado. A linha foi borrada agora.

A nota do ex-ministro da Defesa é autoexplicativa. Caiu porque o presidente quer transformá-las em propriedade do bolsonarismo, tal qual o chavismo apoderou-se do exército comi sua guarda pretoriana.

Entender por que Bolsonaro avançou tanto nos leva a indagar se não há mais pólvora no ar do que pode imaginar a nossa vã filosofia. Em palestra recente, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alertou quanto ao grave erro de se subestimar o presidente, tratando-o como limitado ou tosco. Bolsonaro tem método e estratégia, age de forma calculada perseguindo seus objetivos. A caixa de pandora a ser decifrada é saber por que Fernando Azevedo foi guilhotinado.

Não é crível que Bolsonaro tenha comprado uma briga tão gigantesca apenas por causa da entrevista do general Paulo Sérgio, chefe do Departamento-Geral de Pessoal do Exército, ao Correio Brasiliense, na qual defendeu o isolamento social. Queria demiti-lo, é fato. Mas isso não explica o principal. 

A jornalista Thaís Oyama nos deu uma pista: o presidente queria que o general Edson Pujol se manifestasse contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que anulou as condenações do ex-presidente Lula, tornando-o elegível. 

Se o comandante do Exército concordasse, estaria mandando um recado cifrado de que os militares não aceitariam a volta do ex-presidente ao poder, caso fosse vitorioso na eleição de 2022. Como o ministro da Defesa se opôs a demitir Pujol, a primeira cabeça a rolar foi a sua. A conferir quem passou a informação para a jornalista, que tem fontes privilegiadas. Certamente foi alguém muito próximo do ex-ministro da Defesa ou ao próprio Pujol.

No paiol de Bolsonaro há muita ogiva. Não se sabe se, e quando, elas explodirão. 

O míssil antidemocrático pode ser a decretação do estado de defesa ou de sítio, sob o pretexto de “restaurar a autoridade presidencial’ posta em xeque, no seu entendimento, por governadores e decisões da Suprema Corte. No horizonte de médio prazo o artefato bélico seria virar a mesa em 2022, na hipótese de sua derrota.

Para tais planos é condição básica ter as Forças Armadas inteiramente alinhadas aos seus objetivos políticos. Daí a necessidade de mudar a cadeia de comando. Exige contrapartida porque deu muito aos militares – privilégios na aposentadoria, orçamento militar, postos estrelados nas estatais e no núcleo central do poder. E quem dá, quer receber, como já ensinava Santo Agostinho.

Mas a postura de Edson Pujol tem respaldo na cadeia de comando do Exército. Será muito difícil para o presidente encontrar um general de quatro estrelas sem violar o almanaque do Exército, no qual o comandante da arma é o general mais antigo. O favorito de Bolsonaro para o cargo, general Marcos Freire Gomes, teria de “caronear” quatro generais mais antigos do que ele para assumir o comando.

Difícil, mas não impossível. A mosca azul também dá suas picadas em militares. Basta relembrar o exemplo da sucessão de Sílvio Frota. Seu substituto, general Fernando Belfort Bethlem, era da linha dura e alinhado a Frota. Convidado por Geisel para ministro da Guerra, virou “aberturista” desde criancinha.

Há ainda um enorme ponto de interrogação sobre o comportamento do novo ministro da Defesa Walter Souza Braga Netto, um cumpridor de ordens. Pau para toda obra, o general teria de passar por cima de um dos mais sagrados valores dos militares, a camaradagem, para enquadrá-los no projeto unipessoal do presidente. A altercação entre o ex-comandante da Marinha e o novo ministro da Defesa na reunião na qual foi selado o pedido coletivo de demissão, diz bem o quanto a situação é explosiva. 

Em favor do novo ministro da Defesa registre-se o tom da ordem do dia sobre o 31 de março, com evidências de que, apesar da troca de guarda no Ministério, as Forças  Armadas não pretendem sair da rota que vem seguindo desde a redemocratização de 1985. 

É célebre a frase de que quando a política adentra nos quartéis instala-se o germe da divisão, da anarquia e da indisciplina. Esse é o mal maior que Jair Bolsonaro está fazendo às Forças Armadas e ao país.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação e escreve às 4as feiras no blog do Noblat.

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O ENSAIO RADICAL

João Bosco Rabello, Blog do Noblat - VEJA

Intervenção militar com aparência constitucional 

O presidente Bolsonaro ainda resiste ao que parece inevitável: a redução gradual do estilo centralizador e a divisão de um poder que exerce de forma absoluta à frente do governo.

As mudanças ministeriais desta segunda-feira (29) representam uma cartada radical na mesa de jogo. O presidente dobrou a aposta na radicalização depois de ceder espaços entregues sob pressão da piora nos índices de morte por Covid.

A primeira concessão veio após a reabilitação de Lula, que voltou à cena explorando o fracasso do discurso antivacina do governo, e a reivindicação pelo centrão de mudança imediata no ministério da Saúde.

Bolsonaro demitiu Eduardo Pazuello a contragosto, engoliu a formação de um comitê de gestão da pandemia (que tentou vender como iniciativa sua) e, na sequência, precisou se livrar do chanceler Ernesto Araújo. Não fizera concessões em tempo, começou a perder dedos.

No dia 10/3, o Capital Político alertava para a crise que se formava no comando militar a partir da fala em que Bolsonaro chamava o Exército de seu. “Meu Exército não vai para a rua obrigar as pessoas a ficar em casa”, disse então.

Não à toa, na sua lacônica carta de demissão, o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, sublinhou seu empenho em preservar as Forças Armadas como instituições de Estado. Um compromisso firmado na entrada e reafirmado na saída.  

No curso de sua gestão à frente da pasta, Azevedo foi constrangido pelo presidente a demitir militares que sustentam esse fundamento e resistiram nos cargos à pressão por alinhamento das Forças ao governo da hora.

Bolsonaro não desistirá desse alinhamento como uma garantia para uma saída pessoal em uma crise mais ampla que se avizinha – na saúde, na economia e na política.  A demissão de Azevedo, uma aparente demonstração de força, na verdade o enfraqueceu mais.

O ministério “novo” não fortalece o presidente e seu governo. Continua com titulares aquém da dimensão dos cargos, em alguns casos de forma constrangedoramente nítida. E em tensão com a caserna, onde estica mais a corda.

É comum aos governos a cessão de espaço para consolidar alianças políticas, o que preferencialmente, como ensina a história, é melhor fazer antes de começar o mandato. Governos que seguiram esse manual tiveram vida mais longa com menor instabilidade.

Quando a divisão de poder com aliados se dá sob a pressão do desgaste natural do tempo ela é construída com um governo sem poder de barganha suficiente para ser o acionista majoritário da sociedade. Perde efetivamente poder.

No caso de Bolsonaro não só esse processo de concessões a fórceps começa agora, como se dá em cenário dramático de pandemia, mortes, desastre econômico, social e empresarial.

O governo que sonhou governar na extensão de uma campanha de extermínio da política, estimula a insurreição social para justificar uma intervenção militar de aparência constitucional, que o permita governar sem oposição e à revelia dos demais poderes constituídos.

Por ora, foi contido pelo não de um segmento do Estado essencial a esse objetivo, que são as Forças Armadas.

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ENTRE GOLPISTAS E VELHACOS

Editorial O Estado de S.Paulo

A anunciada substituição dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foi o desdobramento natural da resistência da cúpula das Forças Armadas à pretensão do presidente Jair Bolsonaro de aliciá-la para propósitos autoritários.

O comando militar vem agindo patrioticamente e em respeito à Constituição, que confere às Forças Armadas o papel de instituição de Estado, e não de governo, a despeito das inúmeras tentativas de Bolsonaro de transformá-las em guarda pretoriana.

Seria inaceitável humilhação, para a corporação militar, submeter-se aos caprichos desvairados de um ocupante temporário da Presidência. Já basta o papel vergonhoso desempenhado no Ministério da Saúde pelo general da ativa Eduardo Pazuello, que, como se fosse um recruta, se empenhou obedientemente em cumprir as ordens estapafúrdias de Bolsonaro.

A grave crise foi a culminação de uma reforma ministerial atabalhoada, que mostra um governo submetido ao mandonismo de um presidente que, inseguro sobre sua capacidade, se imagina cercado de inimigos por todos os lados. Ele só confia nos filhos e naqueles desqualificados que lhe prestam obsequiosa vassalagem.

Fernando Azevedo, por exemplo, foi demitido sumariamente do Ministério da Defesa porque, em suas palavras, preservou “as Forças Armadas como instituições de Estado” – algo inadmissível para Bolsonaro, que sempre se referiu ao Exército como “meu Exército”. Para seu lugar, Bolsonaro escolheu Walter Braga Netto, outro general da reserva, que estava na Casa Civil e é conhecido no meio militar como um disciplinado cumpridor de missões.

Assim como a mudança na Defesa, nenhuma das trocas ministeriais anunciadas nos últimos dias visa a melhorar a administração federal. Prestaram-se somente a aplacar as neuroses do presidente e a saciar os apetites da família Bolsonaro, além da voracidade do Centrão. Os novos ministros das Relações Exteriores, Carlos França – que nunca chefiou uma Embaixada –, e da Justiça, Anderson Torres – delegado da Polícia Federal –, têm como principal credencial a proximidade com os filhos do presidente. Já a nova ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), deputada de primeiro mandato, só foi colocada ali para ser despachante dos interesses do Centrão, dispensando-se intermediários.

Com exceção do extravagante diplomata que chefiava o Itamaraty e foi substituído por pressão de quase todo o Congresso, perderam o emprego no governo Bolsonaro justamente aqueles que, como o ex-ministro da Defesa, se recusaram a avalizar a truculência do presidente.

Foi o caso de José Levi, demitido da Advocacia-Geral da União porque se negou a assinar a ação que Bolsonaro encaminhou ao Supremo Tribunal Federal para questionar as medidas de distanciamento social adotadas por governadores de Estado contra a pandemia de covid-19. A atitude de Levi levou Bolsonaro a assinar ele mesmo a petição, o que foi considerado como “erro grosseiro” pelo ministro Marco Aurélio Mello ao rejeitar a ação no Supremo.

Levi foi substituído por André Mendonça, que estava no Ministério da Justiça e ali foi fidelíssimo cumpridor de ordens de Bolsonaro, a quem já chamou de “profeta”. Para o lugar de Mendonça, Bolsonaro escolheu um amigão de Flávio Bolsonaro. Fica tudo em família.

Muito se dirá sobre quem ganha mais com as mudanças, mas certamente só há um perdedor: o cidadão brasileiro, em nome de quem todos em Brasília dizem trabalhar. Enquanto Bolsonaro brinca de césar, o Centrão, senhor de fato do governo, patrocina um Orçamento criminoso, que ignora despesas obrigatórias como se não existissem e distribui dinheiro à farta para emendas parlamentares. Não por acaso, a presidente da Comissão Mista de Orçamento era justamente a deputada Flávia Arruda, apadrinhada do presidente da Câmara e prócer do Centrão, Arthur Lira, e que agora é a ministra encarregada da articulação política do governo – ou do Centrão, o que dá no mesmo.

Tudo isso em meio a uma pandemia que já matou mais de 300 mil pessoas e a uma gravíssima crise econômica. Parte de Brasília está entregue a golpistas delirantes e a velhacos. Está claro que os brasileiros só podem contar consigo mesmos.

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terça-feira, 30 de março de 2021

COMANDANTES DAS FORÇAS ARMADAS PEDEM DEMISSÃO EM PROTESTO CONTRA BOLSONARO

Igor Gielow, Vinicius Sassine, Gustavo Uribe, Folha de S.Paulo

Atrito com Bolsonaro derruba comandantes das Forças Armadas, na maior crise militar desde 1977

SÃO PAULO e BRASÍLIA Pela primeira vez na história, os três comandantes das Forças Armadas pediram renúncia conjunta por discordar do presidente da República.

Todos reafirmaram que os militares não participarão de nenhuma aventura golpista, mas buscam uma saída de acomodação para a crise, a maior na área desde a demissão do então ministro do Exército, Sylvio Frota, em 1977 pelo presidente Ernesto Geisel.

Na manhã desta terça, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) colocaram seus cargos à disposição do general da reserva Walter Braga Netto, novo ministro da Defesa.

Braga Netto tentou dissuadi-los de seguir o seu antecessor, o também general da reserva Fernando Azevedo, demitido por Jair Bolsonaro na segunda-feira (29), que também estava na reunião.

Houve momentos de tensão na reunião, segundo relatos. Com efeito, na nota emitida pelo Ministério da Defesa, é dito que os comandantes serão substituídos —e não que haviam pedido para sair.

É uma forma de Bolsonaro asseverar autoridade em um momento conturbado, evocando princípio de hierarquia. Ao mesmo tempo, evitar amplificar a crise.

Na reunião, segundo relatos feitos à Folha, o comandante da Marinha teve um momento de exaltação com o novo ministro da Defesa, Braga Netto. Insatisfeito com a demissão de Azevedo, o almirante apontou que a mudança pode gerar apreensão no país e que afeta a imagem das Forças Armadas.

A tendência hoje é a de que seja indicado o atual secretário-geral do Ministério da Defesa, almirante Garnier Santos, para o comando da Marinha, e o comandante militar do Nordeste, general Marco Freire Gomes, para o comando do Exército. Para a Aeronáutica, ainda não há um nome definido.

O fato de Freire Gomes não estar entre os três mais antigos generais de quatro estrelas causou ruídos no Exército, levados a Bolsonaro pela ala militar do Planalto, mas o tema não é visto como incortonável.

Há reverberações. Generais do Alto-Comando do Exército afirmaram que a pressão pela saída de Pujol vai alienar ainda mais Bolsonaro da Força, o contrário do movimento proposto.

O mal-estar pelo anúncio inesperado da saída de Azevedo, que funcionava como pivô entre as alas militares no governo, o serviço ativo e o Judiciário, foi grande demais.

O motivo da demissão sumária do ministro foi o que aliados dele chamaram de ultrapassagem da linha vermelha: Bolsonaro vinha cobrando manifestações políticas favoráveis a interesses do governo e apoio à ideia de decretar estado de defesa para impedir lockdowns pelo país.

O presidente falou publicamente que "meu Exército" não permitiria tais ações. Enquanto isso, foi derrotado no Supremo Tribunal Federal em sua intenção de derrubar restrições em três unidades da Federação, numa ação que não foi coassinada pelo advogado-geral da União, José Levi —ajudando a levar à sua queda, também na segunda.

Enfrentar medidas de governadores para tentar restringir a circulação do novo coronavírus, que já matou 310 mil pessoas, é a obsessão do presidente desde que ele capitulou ante o governador João Doria (PSDB-SP) e abraçou a causa da vacinação.

As restrições têm menos apoio popular do que a imunização, e o presidente acredita que lockdowns e afins dificultarão ainda mais seus planos de reeleição pelo natural efeito negativo na economia. Sua popularidade vem em queda.

Ele chegou a comparar as medidas a um estado de sítio, uma impropriedade, mas só a referência a um instrumento de exceção levou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, a questionar suas intenções.

Em reuniões na segunda, segundo interlocutores, os três comandantes concordaram que seria importante fazer uma transição pacífica e controlada, com consenso sobre os nomes dos substitutos.

Há o temor de agitação nos quartéis, até porque nesta quarta (31) serão completados 57 anos do golpe que deixou os militares mais de duas décadas no poder, até 1985. A palavra de ordem é acalmar os ânimos.

A lembrança do episódio de Frota em 1977 é viva na cabeça dos oficiais-generais, todos formados em turmas em anos próximos.

Mas há diferenças: vivia-se uma ditadura em abertura por Geisel, e Frota se opunha a isso. Além do mais, ele era ministro —a pasta da Defesa só viria a ser criada em 1999, e ficou com civis à sua frente até 2018. O ministério, aliás, se acostumou com crises: 5 de seus 12 titulares até aqui saíram de forma conturbada.

Os comandantes se encontraram com Azevedo nesta manhã, na Defesa. Braga Netto conversou com eles na sequência.

Todos eles são mais antigos do que o ministro, jargão militar para dizer que se formaram em turmas anteriores à dele. Isso tem um peso grande no esquema hierárquico das Forças.

O mais agastado era Pujol, desafeto de Bolsonaro desde o ano passado, por divergências na condução do combate à pandemia: enquanto o presidente adotava uma agenda negacionista, o general lhe ofereceu o cotovelo em vez de um aperto de mão.

O presidente tentou removê-lo do comando, sem sucesso por falta de apoio de Azevedo. Recentemente, cobrou uma posição crítica ao Supremo Tribunal Federal devido à restauração dos direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva.

Azevedo e Pujol não repetiram o ex-comandante Eduardo Villas Bôas, que gerou celeuma ao pressionar a corte em 2018 a não conceder um habeas corpus ao ex-presidente, o que abriu caminho para seus 580 dias de prisão.

Pujol também foi duro ao dizer claramente que os militares tinham de ficar fora da política, no fim de 2020. A insatisfação do serviço ativo com a gestão do general Eduardo Pazuello, que não foi à reserva, à frente da Saúde foi outra fonte de estresse.

O trabalho de Braga Netto agora será acertar uma acomodação de nomes. Para Marinha e Aeronáutica, Forças de menor peso relativo, a sucessão deverá ser menos nevrálgica do que no Exército.

Ambas as Forças estão reunidas nesta tarde de terça para discutir os nomes a serem indicados para Braga Netto.

Em reunião na noite de segunda, o Alto-Comando da Força elencou os nomes à mesa, todos os mais longevos com quatro estrelas sobre os ombros.

A partir desta quarta (31), o mais longevo será José Luiz Freitas (Operações Terrestres), que irá à reserva em agosto. O mais antigo, Decio Schons (Departamento de Ciência e Tecnologia), deixa a ativa neste dia.

O segundo mais antigo é o chefe do Estado-Maior, o número 2 da hierarquia, Marco Antônio Amaro dos Santos. Ele trabalhou com Dilma Rousseff (PT), o que dificulta suas chances.

Mais obstáculos se colocam para o terceiro, Paulo Sérgio (Diretoria de Pessoal, que cuida da saúde dos fardados). Ele concedeu uma entrevista elencando as medidas restritivas que fizeram o Exército ter um índice de contaminação muito menor do que o da população, irritando o presidente.

Laerte Souza Santos (Comando Logístico) é o próximo da lista, mas era chefe do general Eugênio Pacelli, que perdeu o cargo após ter portarias de controle de armas derrubadas por ordem de Bolsonaro.

O próximo na fila é o comandante do Nordeste, Marco Antônio Freire Gomes.

Todos são próximos de Pujol, mas Freire Gomes tem simpatia no Palácio do Planalto por ter seguido uma carreira muito próxima à de Luiz Eduardo Ramos (Brigada Paraquedista, Forças Especiais), o general que agora foi para a Casa Civil e é um dos mais antigos amigos de Bolsonaro.

Ele sai como favorito para o lugar de Pujol, portanto. O fato de não ser o mais antigo não é impeditivo: já houve outros comandantes que foram escolhidos na mesma condição.

MINISTROS MILITARES DE BOLSONARO

Casa Civil

Luiz Eduardo Ramos, general da reserva do Exército

Defesa

Walter Souza Braga Netto, general da reserva do Exército

Gabinete de Segurança Institucional

Augusto Heleno, general da reserva do Exército

​Ciência e Tecnologia

Marcos Pontes, tenente-coronel da reserva da Aeronáutica

Minas e Energia

Bento Albuquerque, almirante da reserva da Marinha

Infraestrutura

Tarcísio de Freitas, capitão da reserva do Exército

Controladoria-Geral da União

Wagner Rosário, capitão da reserva do Exército

MILITARES QUE JÁ FORAM MINISTROS OU OCUPARAM POSIÇÕES DO ALTO ESCALÃO DO GOVERNO

Secretaria de Governo

Carlos Alberto dos Santos Cruz, general da reserva do Exército

Porta-voz da Presidência da República

Otávio do Rêgo Barros, general da reserva do Exército

Ministério da Defesa

Fernando Azevedo e Silva, general da reserva do Exército

Ministério da Saúde

Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército

Secretaria-Geral da Presidência

Floriano Peixoto, general da reserva do Exército

Secretário especial do Esporte do Ministério da Cidadania

Décio Brasil, general da reserva do Exército

Presidente do Incra

João Carlos Corrêa, general da reserva do Exército

Presidente dos Correios

Juarez Cunha, general da reserva do Exército

Presidente da Funai

​Franklimberg Freitas, general da reserva do Exército

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PARLAMENTARES TEMEM QUE 'FESTA' POR GOLPE AGREVE CRISE

Vera Mgalhães, O GLOBO

Diante da escalada da crise militar aberta com a saída do general Fernando Azevedo e Silva do cargo de ministro da Defesa, seguida pela demissão coletiva dos três comandantes das Forças Armadas, o temor no Congresso é o de que Jair Bolsonaro resolva jogar querosene no incêndio promovendo algum tipo de celebração ao golpe de 1964, que completa 57 anos nesta quarta-feira.

O temor não é infundado. No último dia 17, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região derrubou uma liminar concedida quase um ano atrás que impedia a divulgação de quaisquer peças em tom de celebração do golpe.

A liminar havia sido concedida pela juíza Moniky Mayara Fonseca, da 5ª Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, que acatou pedido da deputada petista Natália Bonavides.

A Advocacia Geral da União, no recurso que apresentou contra a decisão, argumentou que “o que a presente demanda procura fazer é negar a discussão sobre qualquer perspectiva da história do Brasil, o que seria um contrassenso em ambientes democráticos, visto que o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos. Querer que não haja a efeméride para o dia 31 de março de 1964, representa impor somente um tipo de projeto para a sociedade brasileira, sem possibilitar a discussão das visões dos fatos do passado - ainda que para a sua refutação”.

Já em 2019, Bolsonaro orientou as Forças Armadas para que fizessem as "comemorações devidas" ao 31 de março. No ano passado, o que motivou a ação da deputada foi uma nota, assinada pelo então ministro Azevedo e Silva, dizendo que o golpe foi um ato para salvar a democracia.

Não é inédito que as Forças Armadas defendam o que chamam de "Revolução Redentora" nesta data. Eram comuns boletins das associações de oficiais da reserva nessa linha, mas o tom antes de Bolsonaro sempre foi contido, e sem celebrações.

No ano passado foi lida pela primeira vez nos quartéis uma Ordem Unida Unificada elaborada pelo general Azevedo e lida nos quartéis, o texto em que celebrava o golpe em tons mais edulcorados.

O medo dos políticos é que o presidente use a data para acirrar ainda mais os ânimos, já bastante exacerbados depois das saídas em série de generais de postos de comando na hierarquia e da desconfiança que isso gerou nos meios civis.

Em suas redes sociais, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) fez alusão à data dizendo que a História não pode ser negada, reescrita ou esquecida. "A democracia brasileira já adquiriu imunidade a possíveis novas variantes autoritárias, mas querer constante atenção a tentativas de volta ao passado".

Parlamentares da oposição se mobilizam para usar as tribunas da Câmara e do Senado para fazer o oposto: repudiar o golpe de 64 e manifestar que não vão ficar calados caso haja qualquer tentativa por parte do governo de cerceamento das liberdades e de adoção de medidas de exceção, sob qualquer desculpa.

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GUEDES INEXEQUÍVEL

Carlos Andreazza, O GLOBO

O inexequível Orçamento de 2021 parece arte de um Congresso que não dialoga com o governo. (Mas como, se já não há o sabotador Maia?) Paulo Guedes não gostou do produto, uma peça de ficção. A equação, porém, não fecha. Tem alguém sobrando – no caso, o ministro da Economia – ou mentindo.

Veja-se o lugar do relator do Orçamento, senador Marcio Bittar, na trama, ora já jogado ao mar – responsabilizado por aquela obra-prima das pedaladas. Temos memória, contudo. O mesmo Bittar, até ontem apregoado como parceiro, um dos símbolos, segundo Guedes, do Parlamento – o pior da história, repito eu – reformista. Tão parceiro que investido também da relatoria da PEC Emergencial, quase um secretário do Ministério da Economia – para assuntos fiscais – no Congresso. Hum...

Já aquela PEC indicava – sem margem para dúvida – os limites da parceria, afinal aprovado um texto que ratificava o fiscalismo do amanhã de Guedes. Ainda assim, o ministro ficou feliz. A PEC Emergencial era uma mensagem que – avaliava – precisaria dar. (Coisa de palestrante.) Pouco importando os seus impactos fiscais de 2025. Pouco importando – talvez de olhos tapados – o quanto de espaço no Orçamento (terrenos na lua) precisou vender para ter a aprovação de seu recado ao mercado.

Aí, por aí, a equação começa a se encaixar – o mentiroso ficando para a decifração do leitor. (Sou educado.)

E então o Orçamento. Feito pelo governo – não tenhamos dúvida – e com o aval do Ministério da Economia, permanentemente informado da forma que tomava o monstrengo. O mesmo Ministério da Economia, comandado pelo mesmo ministro, que está a serviço – aí, sim, para impacto fiscal imediato – da reeleição de Bolsonaro; projeto de reeleição que se confunde com a sociedade do governo com o Centrão. Pronto. Monstrengo.

O Orçamento para 2021 – que já nasce contingenciado e com setores (que não o da Saúde) privilegiados – é o símbolo desta sociedade. Quem acompanha este escriba sempre soube que a parceria entre Bolsonaro e Centrão tendia, por natureza, à defesa de interesses corporativistas e à progressiva mitigação de marcos fiscalistas, até a morte, por irrelevância, do teto de gastos; e sem que a sanha por dinheiros para investir derivasse de preocupações com a pandemia. Aí está.

O Orçamento não é peça traidora de uma sociedade; mas a sua própria afirmação. A sociedade Bolsonaro/Centrão, afirmada, nunca teve qualquer preocupação com austeridade – e nem Guedes é verdadeiramente uma barreira à irresponsabilidade fiscal. A parceria Bolsonaro/Centrão, com Guedes, com tudo, é Brasil Grande – e nasce da ascensão da influência política de Rogerio Marinho e seus tarcisios no governo.

Ninguém sobrou. Mas quem fica sabe o que faz – e fez.

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TUMULTO EM BRASÍLIA

Editorial Folha de S.Paulo

Jair Bolsonaro foi mais uma vez fiel ao seu estilo ao deflagrar nesta segunda-feira (29) uma tentativa atabalhoada de reorganização do seu governo, remanejando de surpresa várias peças importantes.

Algumas mudanças emitem sinais inquietantes, como a demissão do general Fernando Azevedo. Ele estava à frente do Ministério da Defesa desde a posse de Bolsonaro e exercia papel moderador, como anteparo contra os avanços autoritários do presidente.

Ao se despedir, Azevedo fez questão de destacar a importância de preservar as Forças Armadas como instituições de Estado, num momento em que a crescente ocupação de cargos por militares prejudica sua imagem ao confundi-las com os desacertos de Bolsonaro.

Azevedo será substituído pelo general Braga Neto, hoje ministro da Casa Civil, para onde será transferido outro general da reserva, Luiz Eduardo Ramos, que chefia a Secretaria de Governo.

A dança de cadeiras abre espaço para que o centrão, que assumiu neste ano o comando da Câmara e do Senado, tenha a deputada Flávia Arruda (PL-DF) na Secretaria de Governo, chave para a interlocução com o Congresso.

O ministro da Justiça, André Mendonça, voltará para a Advocacia-Geral da União e será substituído pelo secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, seguidor de Bolsonaro que cobiçava a pasta desde a época em que o ex-juiz Sergio Moro ainda tinha emprego em Brasília.

Acuado por pressões do centrão e do empresariado, Bolsonaro também decidiu substituir Ernesto Araújo, o diplomata de ideias tresloucadas que chefiou a política externa nos últimos dois anos, por Carlos Alberto Franco França.

Nunca faltaram bons motivos para o presidente demitir Araújo. Nas últimas semanas ele se tornou alvo preferencial do Congresso, que passou a culpá-lo pelas dificuldades enfrentadas pelo Brasil na busca de vacinas para enfrentar a pandemia de Covid-19.

A gestão desastrosa do chanceler no Itamaraty afastou o Brasil de seus maiores parceiros comerciais, obstruiu canais de diálogo essenciais para a defesa dos interesses brasileiros e impôs à imagem do país vexames sucessivos.

Mas os retrocessos são resultado de uma parceria desenvolvida pelo presidente com Araújo, não apenas das ações do auxiliar inepto, e levará tempo para reconstruir as pontes que os dois dinamitaram.

Se as mudanças iniciadas nesta segunda abrem caminho para uma necessária correção de rumos, apostar numa reviravolta seria superestimar a capacidade de Bolsonaro de acertar na escolha dos seus ministros e subestimar os desafios à sua frente.

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A DEMISSÃO DO 'ORGULHOSO PÁRIA'

Editorial O Estado de S.Paulo

Ernesto Araújo finalmente deixará de ser ministro das Relações Exteriores. Depois de passar mais de dois anos contribuindo decisivamente para arruinar a imagem do Brasil no exterior, Araújo entregou o cargo em meio a uma enorme pressão de parlamentares governistas, especialmente no Senado.

O motivo imediato da hostilidade a Araújo foi sua atuação danosa aos interesses do País em relação aos esforços para a obtenção de vacinas contra a covid-19, sobretudo suas agressões à China, país que fornece os insumos para a fabricação dos imunizantes produzidos no Brasil.

Seu afastamento foi considerado indispensável pelos senadores envolvidos na reformulação completa da política de combate à pandemia. Afinal, não havia a menor possibilidade de suavizar as relações com a China enquanto o Itamaraty fosse chefiado por um ministro que insinuou reiteradas vezes que aquele país fabricou o coronavírus, chamado por ele de “comunavírus”, para prejudicar as democracias e disseminar o comunismo.

Vendo-se encurralado, Ernesto Araújo fez o que os extremistas fazem melhor: partiu para o ataque com ilações maldosas. Foi às redes sociais para sugerir que os senadores – citando especialmente Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado – o estavam pressionando não para obter vacinas, mas por interesse em favorecer a China no leilão da tecnologia 5G. Ao agir assim, Araújo selou sua sorte – a senadora Kátia Abreu o chamou de “marginal” –, mas, ao mesmo tempo, deu à militância bolsonarista um discurso sob medida para atribuir sua queda ao comunismo chinês e à suposta pusilanimidade de políticos interesseiros.

Mas que ninguém se engane: tudo o que Ernesto Araújo fez ao longo de sua passagem pelo Ministério das Relações Exteriores, até o último minuto, seguiu rigorosamente as diretrizes do presidente Jair Bolsonaro.

“O presidente Bolsonaro tem confiança no meu trabalho. Meu trabalho não é meu, é a implementação de uma agenda de política externa que o presidente traz desde a campanha”, disse o então chanceler em entrevista recente ao Estado. E ele completou, para não deixar dúvidas: “Tenho respaldo (de Bolsonaro) porque desde o começo sempre propus ao presidente maneiras de implementar as ideias dele. (...) O presidente me nomeou por causa do meu compromisso de fazer a política que ele queria, implementar as coisas que ele quer, a visão de mundo”.

Desse modo, pode-se supor que Bolsonaro aceitou se desfazer de seu lealíssimo chanceler muito a contragosto, e somente quando ficou claro que era sua própria sobrevivência política que estava em jogo.

Tem sido assim desde que o Centrão se assenhoreou do governo, tutelando o presidente para fazê-lo parar de sabotar o combate à pandemia. A troca no Ministério da Saúde, que obrigou Bolsonaro a se livrar de outro serviçal fiel, o intendente Eduardo Pazuello, foi apenas o começo.

Diante disso, é possível – embora, em se tratando de Bolsonaro, não exatamente provável – que o próximo chanceler seja escolhido para restabelecer um mínimo de racionalidade na chefia do Itamaraty. Não será uma tarefa fácil: o bolsonarismo planeja desde sempre transformar a Chancelaria em uma cidadela de lunáticos reacionários, sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que mora nos Estados Unidos.

Nessa toada, Araújo entrou para a história como o chanceler que disse ter orgulho da condição de “pária internacional” que o País assumiu sob o comando de Jair Bolsonaro; que chamou de “cidadãos de bem” os golpistas que invadiram o Capitólio para tentar reverter na marra a derrota de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos; e que ajudou a azedar as relações não só com a China, mas com diversos vizinhos sul-americanos e com países europeus. Uma folha de serviços e tanto, para quem foi nomeado chanceler sem nem sequer ter sido embaixador.

Felizmente, ao que parece, Ernesto Araújo será devolvido a seu merecido anonimato, lugar onde seus delírios não prejudicam o País. Sem ele, o governo de Bolsonaro tende a ficar um pouco menos bolsonarista – o que, a esta altura, é um alento.

P.S.: Este editorial já estava na página quando chegou a notícia de que o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, pedira demissão do cargo.

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segunda-feira, 29 de março de 2021

FANTASMAS INVADEM A BARRA DA TIJUCA COM UNIFORMES MILITARES

José Fonseca Filho, OS DIVERGENTES

Por algumas horas acabou a tranquilidade e o lazer da Barra da Tijuca, uma das regiões mais bonitas e agradáveis do Rio.  Os prédios são de bela arquitetura e com a infraestrutura permitida pelo alto nível de renda dos moradores. Varandas, piscinas, alas de esportes. Ônibus refrigerados gratuitos para quem trabalha no Centro, ou para fazer compras nos hipermercados.

Por isso Adolfo, nascido e sobrevivido no Piauí, veio morar naquela região. Conseguiu comprar um apartamento pequeno, porque todos são grandes. Era estudioso e passava os fins de semana passeando na orla. Pegava praia e trânsito tranquilo. Domingo passado, contudo, mal subiu a rampa para a calçada levou um bruto susto.

Deu de cara com centenas de homenzarrões marchando em fila indiana, com uniforme militar, botas, chapéu. Alguns carregavam armas, liberadas pelo presidente daqui. Hoje não é Sete de Setembro nem o desfile é aqui, lembrou Adolfo. Não precisou indagar a ninguém. Logo ouviu berros: abaixo o STF; fecha o Congresso; volta do AI 5; beba hidroxiloroquina; todos na praia e nas festas; lock down é bobagem. Um de quase 2 metros, pinta de alemão, gritou “Heil Bolso”, e todos responderam: “Sieg heil, Sieg heil.”  Eram fantasmas da Alemanha nazista em missão especial.

A efeméride comemorada aos gritos era o aniversário do presidente Bolsonaro, o neofacista, e a soldadesca em desfile vigoroso, botas brilhantes, eram fantasmas ativos da Wermacht. Foi uma surpresa para o paizão 00 e os filhotes  01,02 e 03. Não chegou a haver ataque dos fantasmas, mas os habitantes da Barra ficaram assustados. Um octogenário ficou atrás de um coqueiro com o neto: “Parece a tropa de ódio do Hitler.”

A exibição deixou o Heil Bolsonaro surpreso e entusiasmado. No gramado do Palácio da Alvorada, outras homenagens ao aniversariante. Tanto que ele se emocionou, falou em “meu povo” e foi além. “Só Deus me tira daqui” – afirmou. Algo presunçoso, porque o bom Deus jamais se meteu em política ou em derrubada de presidentes, ditadores, tiranos de todo tipo. Para Ele essa é  uma responsabilidade que compete aos humanos.

Novos ventos começaram a soprar mais forte, contrastando com a calma da Barra da Tijuca. A ventania também chegou a assustar no gramado do Palácio da Alvorada, com outra comemoração, onde parte do bolo de aniversário foi engolido pelas emas. Poucos brasileiros estão se apercebendo de um movimento subterrâneo, de ultra-direita, já com algum suporte e de inspiração hitlerista.

Ninguém ousa falar no chefe nazista, tem que ser disfarçado, mas os propósitos dos grupos são semelhantes. Acabar com a democracia, acabar com a liberdade, e liquidar os opositores. Um nazismo tropical, estimulado pelo insano presidente que pretende começar pelo Estado de Sítio.

Adolfo sentado na praia passou a meditar e notou semelhanças entre o Brasil que se acaba na pandemia e a Alemanha destruída pelo fascismo. Caminhou até o mar e mergulhou na água fria, decidido:  Adolfo pode ser, mas Hitler jamais.

— José Fonseca Filho é jornalista

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O HOLOCAUSTO SOCIAL DO NEGACIONISMO

José Romero, Folha de S.Paulo

Viver em sociedade implica, geralmente, compreender sua realidade em seus mais diversos matizes. Uns enxergam a realidade da vida de uma maneira, e outros a compreendem totalmente diferente, bem seja na sua forma relativa, sensata, obscura, positivista, negacionista etc.

A realidade em si nunca se mostra aos olhos como realmente é —já que se disforma nos conceitos e ideias que possamos elaborar sobre ela, podendo chegar a conclusões erradas.

De fato, as ideias que podemos ter sobre a realidade não a representam, não se moldam a nossos conceitos... É o que sempre tem sido e o que sempre será. Para que cheguem a nós essas realidades, ocultas a nossos olhos, se transformam em percepções sensoriais, permitindo-nos conviver em sociedade de acordo com a cultura, a idiossincrasia e a época em que se vive.

Essas realidades podem ser recusadas ou aceitas e, quando empiricamente suas verificações são cabíveis, não tendo como refutá-las, os conceitos se rendem perante os fatos. Se ainda são negadas, não cabe a menor dúvida de se tratar da máxima expressão de um negacionismo cético e materialista, que não permite enxergar o mais elemental das realidades incontestáveis: como o fato de a Terra ser redonda, como as mudanças climáticas, a chegada do homem à Lua, o Holocausto, os incêndios na selva amazônica, a negação das vacinas e das medidas restritivas contra a pandemia como meio de conter sua propagação etc.

Essa escolha da negação da realidade como forma de escapar de verdades que lhes causam desconforto a distorce, provocando uma desinformação na sociedade, justificando o injustificável.

Essa rejeição de conceitos básicos evidentes e incontestáveis tem provocado através da história sérias catástrofes sociais.

Lembremos a catástrofe provocada pelo Khmer Vermelho no Camboja nos anos 1970. Religiosos, intelectuais, professores, qualquer pessoa que dominasse uma arte ou conhecimento era sumariamente executada. O lema desse regime era: “Não existe benefício em mantê-lo vivo. Não existe prejuízo em destruí-lo”. Era a negação ao conhecimento.

Lembremo-nos do Holocausto provocado por Hitler na Segunda Guerra Mundial, onde milhões de judeus foram sacrificados das mais distintas e perversas maneiras nos campos de concentração. Hitler chegou a dizer: “Não vejo porque o homem não deveria ser tão cruel como a natureza” e “O Holocausto é a solução final para os judeus”. Eis como negar a existência de um povo provocou uma catástrofe mundial jamais imaginada por qualquer ser humano.

Hoje em dia estamos a caminho de um holocausto social, com consequências imprevisíveis não somente desde o ponto de vista da saúde pública como também econômicas e políticas. Refiro-me enfaticamente à pandemia de Covid-19. São incontestáveis os diversos procedimentos negacionistas da pandemia em alguns países, de norte a sul. Nos Estados Unidos, o governo anterior não tomou as devidas providências, e mais de meio milhão de pessoas morreram até agora. A atual administração se debruça para conter essa tragédia.

Aqui no Brasil não podemos dizer o mesmo. As tardias providências das vacinas e a inexistência de uma coordenação governamental em nível nacional —assim como sua falta de cooperação nos procedimentos do distanciamento social, a utilização de um "kit covid", com medicamentos não comprovados cientificamente, e a disseminação das mais diversas fake news— têm atrapalhado e sabotado um combate efetivo desta catástrofe, que se intensifica a cada momento e a cada instante.

O holocausto social dessa pandemia se encontra no colapso dos hospitais, onde em muitas cidades os leitos nas UTIs estão 100% ocupados. O holocausto social dessa pandemia se encontra no dilema dos médicos, que terão de escolher entre quem será internado nos hospitais e quem ficará na fila de espera, enquanto seus familiares terão de suportar a agonia da liberação de um leito.

O holocausto social dessa pandemia é morrer no seco por falta do insumo do oxigênio nos hospitais. O holocausto social dessa pandemia estriba na implosão da educação nas escolas e universidades. O holocausto social dessa pandemia é que, quanto mais demorar a recuperação econômica, por consequência a peste também demorará mais para acabar. O holocausto social dessa pandemia se encontra na continuidade de sua negação!

José Romero

Escritor humanista e professor de língua estrangeira

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MINISTRO DEMITIDO

Igor Gielow, Folha de S.Paulo

Bolsonaro demitiu ministro da Defesa porque também quer mais apoio militar

Além de promover uma dança de cadeiras para agradar o centrão, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu demitir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, porque está insatisfeito com o afastamento crescente do serviço ativo das Forças Armadas do governo.

Segundo interlocutores do agora ex-ministro, esse é o motivo de Azevedo ter enfatizado, em sua nota de saída, que considera ter preservado as Forças Armadas como instituições de Estado até aqui. A Folha não conseguiu ouvi-lo.

Ao longo do ensaio de crise institucional do primeiro semestre de 2020, quando Bolsonaro foi a atos que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e o Congresso, Azevedo teve de equilibrar pressões de todos os lados.

Foi levado a sobrevoar uma dessas manifestações por Bolsonaro, recebendo críticas de militares —o desconforto com decisões no Supremo entre fardados é notório, há certamente entre eles bolsonaristas que apoiariam rupturas, mas no geral há aversão à pecha de golpista.

A tensão chegou ao paroxismo em junho, quando ele apoiou em uma nota a ameaça feita pelo general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que falara em "consequências imprevisíveis" quando a apuração sobre a interferência de Bolsonaro na PF esbarrou na hipótese de confiscar o celular do presidente.

Com o arrefecimento da crise, a ativa buscou riscar no chão uma linha, tentando sem sucesso total se separar da ala militar que fornecia então 10 dos 23 ministros do governo. O comandante do Exército, Edson Leal Pujol, falou publicamente que militares não deveriam estar na política.

O alvo era o general Eduardo Pazuello, que nunca deixou o serviço ativo durante sua contestada gestão no Ministério da Saúde. Agora fora do cargo, ele foi motivo de grande estremecimento entre Bolsonaro e os militares, que pediam dia sim, dia sim que o fardado fosse à reserva.

Bolsonaro já havia especulado tirar Pujol do cargo e entregá-lo ao general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), como a Folha revelou no ano passado, mas foi dissuadido pelo próprio Azevedo. Todos negam essa versão, de tão mal que a sugestão caiu nas Forças.

As falas recentes do presidente sugerindo que o "meu Exército" iria agir contra lockdowns propostos por governadores de estados também causou queixas entre militares da ativa. Essa reação, diz um aliado de Bolsonaro, incomodou o presidente, que esperava uma manifestação de Azevedo.

Por fim, segundo uma pessoa próxima de Azevedo, houve uma irritação final de Bolsonaro com uma entrevista concedida pelo general Paulo Sérgio, que comanda a área de saúde do Exército.

Ao jornal Correio Braziliense ele relatou no domingo (28) como foram aplicadas normas rígidas de distanciamento e isolamento de vulneráveis e doentes na Força, garantindo um grau de contaminação pelo novo coronavírus menor do que na população em geral.

Bolsonaro, segundo o relato, queixou-se a Azevedo e pediu a demissão do militar por considerar que a fala era ruim para a imagem do governo, conhecido por combater medidas básicas na pandemia. Azevedo se negou.

A semana carrega uma delicada particularidade: na quarta (31), haverá o aniversário do golpe militar de 1964. Nos dois anos anteriores, Azevedo assinou notas colocando o evento no passado, mas celebrando o que considera caráter democrático —até hoje os militares chamam o acontecido de "revolução".

Há rumores de que Bolsonaro também gostaria de ver uma nota de 2021 mais aguda, o que se for verdade iria contra o estilo de Azevedo.

Surpreendeu a forma com que o titular da Defesa, um dos mais poderosos ministros do governo, foi demitido. Bolsonaro quer agora um militar mais alinhado a ele no cargo, o ex-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto.

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A QUEDA DE ERNESTO ARAÚJO

Ricardo Della Coletta, Gustavo Uribe, Daniel Carvalho, Folha de S.Paulo

Pressão do Congresso derruba Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro

Mais de dois anos depois de ter proferido seu discurso inaugural como chanceler, quando prometeu alinhar o Ministério das Relações Exteriores aos anseios dos eleitores de Jair Bolsonaro, Ernesto Henrique Fraga Araújo pediu demissão nesta segunda-feira (29) —sob pressão do Congresso.

Ernesto, que à época de sua posse era um desconhecido diplomata recém-promovido a embaixador, deixa o posto após ter amealhado a aversão de diferentes setores da sociedade e do governo. Das cúpulas do Congresso Nacional aos generais que aconselham Bolsonaro, de grandes empresários a lideranças do agronegócio, todos se uniram nos últimos dias para tirá-lo da Esplanada.

Ernesto se reuniu com Bolsonaro no final da manhã desta segunda, quando disse ao presidente que deixaria a chefia do Itamaraty. A informação foi confirmada por interlocutores no Ministério das Relações Exteriores e no Palácio do Planalto, mas ainda não foi anunciada oficialmente.

Segundo assessores presidenciais, apesar do pedido de demissão, a ideia é que o ministro permaneça no posto até o presidente definir um nome para substituí-lo, assim como ocorreu com o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde. A proposta é para que ele também ajude na transição de seu sucessor.

Com a saída de Ernesto, três nomes são citados como favoritos para assumir o Itamaraty: o embaixador do Brasil na França, Luís Fernando Serra, a cônsul-geral do Brasil em Nova York, Maria Farani Azevêdo, e o secretário de Assuntos Estratégicos, almirante Flavio Rocha.

O primeiro tem o apoio da família do presidente, e a expectativa no Planalto é a de que ele tenha, nos próximos dias, uma conversa com Bolsonaro. Já Rocha, um militar, apesar de não ser servidor de carreira do Itamaraty, fala cinco línguas e é conhecido pelo perfil moderado. Farani, por sua vez, tem o apoio de deputados e senadores alinhados com Bolsonaro, mas enfrenta resistência no núcleo ideológico do governo por ter sido chefe de gabinete do ex-ministro Celso Amorim, durante o governo petista.

Nas últimas horas, assessores palacianos têm enviado mensagens com imagens de Farani ao lado de políticos de esquerda e lembrado que, antes de assumir o cargo de presidente, Bolsonaro chegou a dizer em uma entrevista que não pretendia nomeá-la. Com a forte resistência a Ernesto no Senado, o que dificulta uma eventual nomeação para uma representação diplomática no exterior, o presidente avalia duas alternativas para o chanceler. Nenhuma das duas necessita da chancela do Congresso.

A primeira é uma função na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que fica subordinada à embaixada do Brasil em Paris. Já a segunda é o posto de representante permanente alterno na ONU (Organização das Nações Unidas).

A demissão de Ernesto, um admirador declarado do escritor Olavo de Carvalho, é também um duro golpe na ala ideológica do bolsonarismo, que nos últimos anos conviveu com portas abertas no Itamaraty.

Embora sempre tenha enfrentado resistências por ter promovido uma guinada ultraconservadora no ministério, Ernesto teve seu destino selado após os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), terem se unido à coalizão para afastá-lo do governo.

Em 22 de março, Lira e Pacheco tiveram um encontro em São Paulo com grandes empresários, que não pouparam Ernesto. O chanceler foi chamado de omisso e acusado de executar na política externa o negacionismo de Bolsonaro na pandemia, o que teria feito o Brasil perder um tempo precioso nas negociações por vacinas e insumos para o combate à Covid-19.

Na reunião, a suposta omissão de Ernesto foi apontada como um dos fatores para a situação de calamidade pela qual o Brasil passa, com recordes diários de mortes pelo vírus, risco de escassez de medicamentos e ritmo de vacinação insuficiente para fazer frente aos meses mais duros da doença.

O principal flanco de desgaste de Ernesto em seus meses finais no cargo foi a relação com a China, maior parceiro comercial do Brasil e país exportador da matéria-prima utilizada tanto pelo Instituto Butantan quanto pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) na produção de imunizantes contra o coronavírus.

No domingo (28), Ernesto postou em uma rede social que não teria cedido a um pedido de Katia Abreu, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, para acenar ao lobby chinês em relação ao tema do 5G no país. A acusação gerou forte reação de deputados e senadores, e Katia Abreu chegou a chamar o agora ex-chanceler de marginal. Nesta segunda, houve movimentações para formular um pedido de impeachment e a ameaça de que indicações para postos diplomáticos seriam bloqueadas.

Pessoas que acompanham o caso no governo dizem que, com a mensagem, Ernesto precipitou sua saída, algo que já era tratado como inevitável por conselheiros palacianos. O post foi lido como um ataque a todo o Senado, que decidiu travar qualquer tema de interesse do Itamaraty até que a crise se resolvesse.

Na manhã desta segunda, o chanceler tinha reunião marcada com seus principais assessores, mas ela foi cancelada, e ele foi convocado ao Palácio por Bolsonaro. Outra agenda que caiu foi uma videoconferência com a nova diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala. De acordo com interlocutores, após a conversa com o presidente, Ernesto avisou sua equipe que está de saída da chancelaria.

Desde o início de sua gestão, Ernesto promoveu uma política de antagonismo com a China. Ainda em março de 2019, numa palestra para jovens diplomatas, afirmou que não queria reduzir a política externa brasileira a uma mera questão comercial.

“Queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma”, disse na ocasião, numa referência às vendas brasileiras à China. Em linhas gerais, Ernesto abraçou a tese de que era preciso proteger o Brasil da crescente influência dos chineses, um país governado por uma ditadura comunista.

Os objetivos do ex-ministro logo se chocaram com os interesses do agronegócio —grandes vendedores para os asiáticos— e da carência do Brasil por investimentos externos em infraestrutura. A relação com Pequim oscilou em 2019, mas atingiu seu ponto mais baixo com a eclosão da crise do coronavírus.

Com a chegada da pandemia em 2020, Bolsonaro decidiu se alinhar ao discurso do ex-presidente dos EUA Donald Trump, segundo o qual o governo chinês teria disseminado o vírus propositalmente. Num bate-boca nas redes sociais entre o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, Ernesto saiu em defesa do filho do presidente.

O então chanceler chegou a enviar a Pequim um pedido para que o diplomata chinês fosse retirado do Brasil —foi ignorado. Desde então, o ministro interrompeu qualquer interlocução com a missão chinesa em Brasília. O rompimento cobrou seu preço meses depois, quando o fornecimento de insumos para as vacinas Coronavac e AstraZeneca foi ameaçado por atrasos na exportação de lotes vindos da China.

Embora interlocutores tenham ressaltado que não é possível afirmar se houve retaliação dos chineses, a falta de canais de comunicação do Itamaraty com a embaixada num momento de crise ficou evidente. Não por acaso, numa sessão no Senado em 24 de março, diversos senadores pediram publicamente a demissão do chanceler, e as rixas com a China estavam entre as principais queixas ouvidas pelo ministro.

A revolução conservadora promovida por Ernesto no Itamaraty, no entanto, foi muito além da pauta anti-China. Ele costurou uma aliança com o governo Trump e deu o aval a uma série de concessões aos americanos que, segundo críticos, não vieram acompanhadas de contrapartidas ao Brasil.

Na ONU, rompeu com votos históricos do Brasil em relação ao conflito no Oriente Médio e passou a apoiar Israel em manifestações sobre disputa com palestinos. Apesar dos apelos de diplomatas, ordenou que o Brasil votasse a favor do embargo americano a Cuba, rompendo outro posicionamento tradicional do país.

Em fóruns multilaterais, posicionou o Brasil contra a defesa de direitos sexuais e reprodutivos, numa agenda abertamente antiaborto e alinhada a governos de viés nacionalista e autoritário, como Hungria e Polônia, e passou a trabalhar em negociações para que menções ao Foro de São Paulo, grupo de partidos de esquerda na América Latina, fossem incluídas em declarações.

Assim, não foi só a pandemia que fez os ventos virarem contra Ernesto.

A eleição no ano passado de Joe Biden como novo presidente dos EUA levantou dúvidas sobre a capacidade de o ministro estabelecer um bom diálogo com a principal economia do mundo. Ernesto ficou marcado entre diplomatas americanos como um entusiasta de Trump, retratado por ele como um defensor de valores ocidentais. Além do mais, publicou uma sequência de mensagens mostrando simpatia pelos invasores do Capitólio nos EUA, o que provocou reações de altos representantes do Partido Democrata.

Na mais contundente resposta, o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, o democrata Robert Menendez, enviou uma carta a Bolsonaro cobrando que ele e Ernesto condenassem de forma veemente os ataques ao Capitólio.

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A POLÍCIA DO CAPITÃO

Marcos Strecker, Ricardo Chapola e Eudes Lima, ISTOÉ

Desde a redemocratização, nunca as instituições foram tão desafiadas quanto na era Bolsonaro. O presidente já tentou intimidar o STF incitando a sedição. Questionou a lisura das eleições, preparando-se para um futuro resultado desfavorável em 2022. Agora,à medida que sua popularidade despenca e perde sustentação política, radicaliza sua estratégia. Quer calar os críticos e a oposição recorrendo a um instrumento da ditadura, a Lei de Segurança Nacional (LSN).

Estabelecida em 1983, a Lei de Segurança Nacional (LSN) foi criada para proteger o regime militar que agonizava. Ela prevê crimes contra a “ordem política e social”, como caluniar ou difamar os presidentes do Poderes, imputando-lhes fato definido como “crime ou ofensivo à reputação”. Desde então, nenhum presidente a havia usado para criminalizar a crítica. Bolsonaro faz isso, e com método. Usa o governo federal e as polícias estaduais para atingir professores, jornalistas, adversários e críticos em geral. Para se ter uma ideia, o número de inquéritos com base nessa lei já cresceu 285% em relação às gestões Dilma e Temer. A Polícia Federal tem “caçado” os críticos de Bolsonaro pelo Brasil. Nesse mês, o sociólogo Tiago Costa Rodrigues, de Palmas (TO) , foi intimado a prestar depoimento por produzir um outdoor comparando Bolsonaro a um “pequi roído”, expressão típica da região do cerrado. Rodrigues conta que a ideia surgiu a partir de um grupo de WhatsApp. De lá saiu a decisão de criar uma vaquinha para custear dois painéis. A polícia começou a investigá-lo porque um empresário da região, bolsonarista, fez uma denúncia. “A PF queria saber se eu tinha intuito de ofender o presidente”.

Imprensa e políticos na mira

Rodrigues resolveu denunciar a ação ao notar o aumento de número de casos semelhantes ao seu. Em Brasília, um grupo de manifestantes foi preso por estender uma faixa de protesto na Praça dos Três Poderes, na quinta-feira, 18. Ela continha uma charge do presidente próximo a uma suástica e a mensagem: “Bolsonaro genocida”. Cinco foram detidos pela PM e encaminhados para a PF, onde prestaram depoimento. Um era o microempresário Guilherme Martins Peres, de 24 anos, que não é filiado a nenhum partido. “Eles tentaram encaixar isso na LSN, porque estão tentando abafar uma coisa que não tem como abafar. Bolsonaro é genocida, sim. Já está na boca do povo”, afirma. Para ele, “é nítida a vontade da PF de tentar estar sempre do lado do presidente”. Disse que o grupo já tinha usado o mesmo cartaz em outra manifestação e que só acrescentaram a frase “Bolsonaro Genocida” depois do caso do youtuber Felipe Neto. O influencer, famoso pelos vídeos para adolescentes, é outra vítima da polícia política bolsonarista. A pedido de Carlos Bolsonaro, foi alvo de investigação na Polícia Civil do Rio de Janeiro, com base na LSN, após fazer um post chamando o mandatário de “genocida”. Não foi a primeira investida. O mesmo delegado dessa ação já havia indiciado o youtuber por “corrupção de menores”.

O clã Bolsonaro está agindo coordenadamente. O deputado Eduardo Bolsonaro processou a blogueira Tininha Mattos por ela ter publicado no Instagram uma sequência de vídeos em que lamentava ironicamente ter perdido a oportunidade de encontrar o presidente e seus filhos, que cumpriam agenda no mesmo endereço dela no Rio. Em Uberlândia (MG), um jovem de 24 anos foi preso depois de ter feito uma publicação no Twitter em que citava a ida de Bolsonaro à cidade. Um dia antes, João Reginaldo da Silva Júnior escreveu nas redes: “Gente, Bolsonaro em Udia amanhã… Alguém fecha virar herói nacional?”. Isso foi interpretado como uma incitação ao crime. José Carlos Muniz, um dos advogados que representa Júnior, disse que outras sete pessoas foram citadas no inquérito por terem interagido com o post original. “São jovens. Pessoas simples. Estão sendo criminalizados como se estivessem propagando uma insurreição”, disse Muniz, que classifica a ação como intimidação. “Cria-se essa imagem de cerceamento para evitar críticas ao governo. As pessoas vão desistindo de postar, de se opor às políticas. E por medo”. A imprensa também entrou na mira da PF, que abriu um inquérito contra o chargista Renato Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat pela produção e divulgação, respectivamente, de uma charge em que Bolsonaro é associado a uma suástica. Políticos também viraram alvo. O Ministério da Justiça pediu à PF para abrir inquérito contra Ciro Gomes (PDT), em função de uma entrevista de novembro passado, em que critica os filhos do presidente e se refere a ele como “ladrão”.

A incursão para calar o dissenso despertou a reação de advogados e de entidades da sociedade civil. O próprio youtuber Felipe Neto recebeu o apoio de um grupo de advogados (Cala Boca Já Morreu) , que disse ter reunido evidências de mais de 200 casos de pessoas intimadas, perseguidas ou processadas. A Defensoria Pública e vários advogados acionaram o STF para pedir o encerramento dos inquéritos e ações abertas com base na LSN, impetrando um habeas corpus coletivo. Um dos autores, o advogado Leonardo David Quintiliano, justifica: “Ao vermos que muitas pessoas, inclusive nós mesmos, poderíamos sofrer representações e responder a inquéritos policiais com base em uma aplicação nefasta da LSN e do Código Penal, decidimos nos prevenir”, disse. O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, afirmou que estudará uma forma de reagir à escalada do uso da LSN. Sete juristas entraram com uma ação no STF pedindo a alteração de dois dispositivos da LSN, seguindo uma outra peça protocolada pelo PSB, que é mais abrangente. Para eles, os artigos (22 e 26) representam uma “intervenção ilegítima no direito à liberdade de expressão”. Um dos autores é o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. “Não é compatível que seja lesada a segurança do País porque se faz uma crítica ao presidente. Só mesmo atos de gravidade que coloquem em risco as instituições é que devem ser considerados”, afirma. Associações já pediram para entrar como parte interessada nesse processo (ADPF 799), que pode se tornar o caminho mais rápido para uma mudança na LSN.

LSN para uso político

O entendimento de que a LSN precisa ser atualizada é antiga, e agora, ganha urgência. Ela precisa ser adequada à Constituição de 1988. Há 23 propostas de alteração no Congresso. É praticamente consenso de que ela, ou uma norma que a substitua, é importante para a defesa do Estado de Direito. Basta lembrar que a própria LSN foi utilizada pelo STF em dois inquéritos fundamentais para limitar a ameaça golpista de grupos bolsonaristas, no ano passado: os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. “O presidente não entendeu a LSN e a levou para a pessoa física. Ela deve proteger o Estado, e não a pessoa. Está sendo usada de forma equivocada”, diz Márcio Coimbra, cientista político da Universidade Mackenzie.

O uso excessivo e indevido dessa lei durante o governo Bolsonaro “só ajuda a expor os seus traços autoritários”, diz a cientista política Ariane Roder, da Coppead/UFRJ. Desde a posse, o presidente tem seguidamente apoiado manifestações antidemocráticas. Continua agindo assim. No dia 21, visou os governadores. Sugeriu que são “tiranos tolhendo a liberdade “ e disse que “estão esticando a corda”. Dois dias antes, havia insinuado que poderia decretar um estado de sítio para impedi-los de adotar medidas de restrição contra a pandemia. Afirmou que “vai chegar o momento” em que o governo vai ter de tomar “uma ação dura”. Em Brasília, a declaração foi interpretada como uma a ameaça real. O ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, alertou o presidente do STF, Luiz Fux, que entendeu a gravidade da insinuação. Ligou para Bolsonaro e o questionou. O presidente negou, e disse que havia entrado com uma ação na Corte contra decretos dos governadores do Distrito Federal, Rio Grande do Sul e da Bahia. Bolsonaro tinha entrado com uma ação nesse mesmo dia para derrubar essas medidas emergenciais. Seu pedido, que agride o bom senso e prejudica a luta desesperada para salvar vidas, foi refutado pelo ministro Marco Aurélio Melo. Ele ressaltou que estados e municípios têm competência para adotar medidas de enfrentamento da pandemia e deu um recado duro ao presidente: “Em meio à democracia, é imprópria uma visão totalitária”.

Bolsonaro incumbiu o ministro da Justiça, André Mendonça, de ser o operador da intimidação. Sob sua batuta, a atuação da PF ganhou um perfil novo de repressão a manifestações, o que já incomoda a Associação de Delegados da PF (ADPF), pela visão de que ela está atuando politicamente. A estratégia é intimidar os críticos e estimular as polícias dos estados a seguir a mesma orientação. Não é apenas a PF que está atuando, como se viu em Uberlândia e no caso de Felipe Neto. Mas é ela que está centralizando, por seu papel estabelecido na LSN. Não é de hoje que o presidente dá sinais de que pretende criar uma polícia própria, focada principalmente em proteger a si mesmo, sua família e seus amigos. Na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, já tinha exposto claramente que queria essa seria sua intenção. Ministros de Cortes Superiores avaliam que a atuação de Mendonça seria uma forma de ”mostrar serviço a Bolsonaro”, porque é o predileto do presidente para assumir a vaga no STF que se abrirá em julho. “Hoje é o nome mais forte pelo que escuto aqui no tribunal”, diz um ministro do STJ. Uma versão veiculada na pasta da Justiça dá conta de que são poucos os inquéritos e fazem alusão a algum tipo de “atentado físico” a Bolsonaro.

Essa explicação não se sustenta. Além disso, o próprio histórico do presidente a desmente. Bolsonaro, afinal, foi expulso do Exército em um episódio nebuloso em que ele mesmo teria tramado um atentado terrorista. Em 1999, defendeu o fechamento do Congresso e a morte de “uns 30 mil”. Já avalizou a tortura várias vezes. Pregou o “fuzilamento” do ex-presidente FHC. Sua PF e o “seu Exército”, como às vezes chama as Forças Armadas — como se fossem sua guarda pretoriana — não têm, para ele, o objetivo de defender a democracia, certamente.

A nova repressão não alarmou apenas os políticos. Desagradou os militares, que já estão desgastados com o episódio Pazuello, um militar da ativa que ameaça colocar o Exército na prática como vilão da crise sanitária. “É sem dúvida uma busca de tolher espaço às críticas. Não me parece adequada e até vai no sentido de prejudicar adversários do presidente claramente”, diz um alto general que já integrou o governo. Para Reale Jr., “Bolsonaro já falou em estado de defesa. Agora, falou em estado de sítio. Visivelmente, é alguém que quer o confronto e a redução das liberdades políticas”. O mandatário se inspira no AI-5, editado em 1968. Na época, militares consideravam que a oposição e a imprensa veiculavam “ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis”. Era a época em que se exigiam atestados ideológicos, como já havia acontecido na era Getulio Vargas. Nos anos 1930, a comunicação era controlada, aí sim, por um tiranete, Lourival Fontes, o ministro da Propaganda, em quem o atual titular da Justiça parece se inspirar. O Brasil atual precisa superar esse ranço autoritário e garantir o amadurecimento institucional e democrático. Os EUA, que têm na liberdade de expressão uma das bases da sua democracia, são um exemplo. Lá, a livre circulação de ideias é considerada vital para a busca da verdade e para o escrutínio do governante. A censura e a perseguição não são toleradas e o homem público deve se submeter às críticas mais ácidas, ainda que de mau gosto ou injustas. Aqui, o próprio STF já indicou o caminho, na ação que proibiu a repressão a sátiras durante as eleições (ADI 4451). Que siga esse caminho para afastar a nova ameaça autocrática.

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