terça-feira, 31 de março de 2020

BOLSONARO SENTIU O BAQUE

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo
Jair Bolsonaro sentiu o baque. Por semanas, o presidente desprezou os alertas de autoridades internacionais sobre a gravidade do coronavírus. Agora, ele busca uma correção de rumo forçada, com direito a falsificação das avaliações técnicas desses mesmos personagens.
O presidente abandonou os diminutivos "resfriadinho" e "gripezinha" em seu pronunciamento desta terça (31). Depois de conduzir a crise com uma estratégia cruel e insensata, Bolsonaro percebeu que a catástrofe na saúde pública poderia esfarelar a popularidade de seu governo.
O homem que dizia apenas lamentar a morte de milhares de brasileiros resolveu fingir alguma preocupação com a saúde da população. Ensaiou um lance de empatia com os espectadores, afirmou já ter perdido entes queridos e emendou: "Sei o quanto isso é doloroso".
Bolsonaro agora tenta recuar a um ponto de equilíbrio entre sua obsessão pela preservação da economia e a intenção de salvar vidas --embora não dê a menor pista de qual é esse ponto. O jogo de manipulação presente em seu discurso, aliás, mostra que ele ainda prioriza o primeiro elemento desse binômio.
Em seu malabarismo, o presidente deturpou na TV as declarações do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus. Depois que o dirigente afirmou que os países deveriam levar em conta as necessidades dos trabalhadores impactados pela crise, Bolsonaro inventou a versão de que a entidade defende a retomada imediata da atividade econômica.
O presidente, porém, sonegou o trecho em que Tedros reforça a importância do isolamento social e diz que os governos precisam proteger a população mais vulnerável. Apesar do ajuste no tom, ele continua evitando um encontro com a realidade.
Bolsonaro nunca respeitou a organização, já que seus especialistas contradizem a estratégia inconsequente de lançar milhões de pessoas às ruas no meio de uma pandemia. Contrariado, o presidente quer asfixiar a verdade e torturar os fatos para que eles fiquem a seu favor.
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
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CUIDADO COM O BOLSOVÍRUS

Helena Chagas, Blog do Noblat, VEJA
Além de enfrentar a Covid-19, o país tem agora que combater outra perigosa ameaça, a infecção pelo bolsovírus. Em solo brasileiro, esse vírus cresceu no Planalto e arredores, mas, diferente do corona, foi fabricado artificialmente na cabeça do primeiro mandatário do país, seu principal transmissor. Focado na hipótese muito provável de ver seus sonhos de reeleição irem para o espaço depois da pandemia e da recessão econômica que se seguirá, Jair Bolsonaro, numa manobra política desesperada, resolveu inocular o vírus do medo e da dúvida em relação às medidas de proteção e isolamento social decretadas pelos governadores.
Sem qualquer lógica, contrariou recomendações internacionais e o que seu próprio ministro da Saúde pregou insistentemente nas últimas semanas, comprou briga com os executivos estaduais e chocou boa parte do país. Desempenhou seu papel preferido, o desagregador, e, como ex-atleta, praticou o esporte de jogar a bola no colo dos outros. Com isso, quer claramente jogar a responsabilidade pela recessão e pelo desemprego — quem sabe até depressão — para os governadores. Dois deles, aliás, desafetos que vê como adversários na eleição de 2022: João Dória (SP) e Wilson Witzel (RJ).
Só que Bolsonaro está transmitindo um vírus perigoso para sociedade brasileira. Ao questionar providências como o isolamento social, inclusive de crianças nas escolas, coloca vidas em risco. Instaura um ambiente de insegurança e dúvidas em relação às medidas recomendadas para combater o coronavírus. Não por acaso, em diversas cidades, moradores apontaram mais gente nas ruas do que na véspera na manhã seguinte ao pronunciamento presidencial em que ele chamou a Covid-19 de “gripezinha” e “resfriadinho”.
Esse é o efeito imediato do bolsovírus — a confusão que cria num esquema complexo de medidas de isolamento e cuidados especiais que, por si só, já é de difícil implantação. Imagine-se a cabeça do cidadão, apavorado e inseguro, quando vê o presidente falar uma coisa, o ministro outra, o governador outra…
Também nefasto é o respaldo que Bolsonaro tem em empresários e representantes de setores da economia que, lá com suas razões, temem os efeitos da paralisação dos negócios durante a quarentena. Serão mesmo devastadores para os empregos e para a economia. Por isso, esses setores fazem pressão para que comércio e outros estabelecimentos voltem logo a abrir as portas. Tiveram, junto com o “Gabinete do ódio” do Planalto, participação direta na construção da narrativa de fabricação do bolsovírus.
Mas setores econômicos frustrados com a perspectiva da recessão — e até investidores da bolsa, como disse Rodrigo Maia — podem pressionar contra quarentenas e isolamento. Faz parte do jogo. O que não faz é ver o presidente da República, que deveria liderar e cuidar do hospital Brasil tendo como prioridade o bem-estar da população, sair contaminando a população com o vírus da insensatez.
Helena Chagas é jornalista
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CRIVELLA NÃO MERGULHA NO ESGOTO

Alvaro Costa e Silva, Folha de S.Paulo
Com o fracasso da Aliança pelo Brasil (partido de extrema direita que não deu liga), a família Bolsonaro pediu abrigo ao Republicanos, feudo do bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal e da Record. Na semana passada, o senador Flávio e o irmão dele, o vereador Carlos, filiaram-se à legenda. De lambugem, Rogéria, ex-mulher do presidente Jair, entrou no esquema, que une mais ainda o bolsonarismo aos mercadores da fé evangélica.
O acordo praticamente sela o apoio de Bolsonaro à reeleição de Marcelo Crivella. Mesmo assim, o prefeito do Rio não mostra coragem de mergulhar no esgoto. Crivella sabe que, se menosprezar a pandemia de coronavírus e se tornar uma ameaça à saúde da população, indo contra todas as recomendações científicas, vai pegar para ele. "Gostaria de reafirmar: por favor, fiquem em casa", tuitou, mantendo as restrições ao comércio.
Surpreendentemente ele elogiou a imprensa: "Se nós temos nossas ruas vazias, condomínios sem gente lotando as piscinas e praias vazias, mesmo com os dias mais lindos do outono, é porque a imprensa tem dado informações idôneas". Resta saber o que o presidente e seus filhos —que continuam a espalhar mentiras sobre a Covid-19 nas redes sociais-- acharam da postagem de Crivella.
Falta, contudo, fazer mais. Deixar de lado as picuinhas com o governador Wilson Witzel e engendrar uma solução emergencial conjunta para as pessoas que vivem aglomeradas nas favelas e estão impedidas de trabalhar (ou de se virar como podem para conseguir algum dinheiro). Em muitas comunidades, não tem água. Como lavar as mãos, prevenção básica?
As leituras na quarentena têm me levado além da Taprobana, armas e barões assinalados, mares nunca dantes navegados. Está no canto oitavo de "Os Lusíadas", de Camões: "Crer tudo, enfim; que nunca louvarei/ O capitão que diga: 'Não cuidei'".
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".
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ISOLADO, BOLSONARO CHORA

Igor Gielow, Folha de S.Paulo
Isolado, Bolsonaro chora e busca apoio entre militares contra crise
Isolado politicamente, o presidente Jair Bolsonaro tem dado demonstrações de fragilidade emocional na condução da crise do coronavírus e buscado refúgio no setor militar para tentar retomar o controle do governo.
Em pelo menos uma ocasião recente, ele chorou ante interlocutores no Palácio do Planalto que não faziam parte de seu círculo mais íntimo.
Reclamou que sofre críticas incessantes e aponta adversários externos, com especial predileção pelos governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ).
Bolsonaro e os chefes estaduais têm medido forças, com o presidente defendendo medidas de isolamento parcial para grupos vulneráveis à Covid-19, enquanto os outros adotam as recomendações de quarentena da OMS.
O presidente está sem suporte interno unânime. Ministros do governo, a começar por Luiz Henrique Mandetta (Saúde), mas também o popular Sergio Moro (Justiça), defendem o isolamento social. Paulo Guedes (Economia) falou que preferia ficar em casa “como cidadão”.
Com isso, Bolsonaro se voltou para o seu meio de origem, o militar, cuja ala no governo havia sido reforçada no começo do ano após ter sido escanteada pelo chamado núcleo ideológico centrado nos filhos do presidente.
Devolveu protagonismo ao chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, numa tentativa de unificar o discurso sobre a crise. O fez sob olhares desconfiados, dado que usualmente a palavra final é dele e dos filhos.
O resultado, de todo modo, foi desastroso do ponto de vista público. Em entrevista coletiva na segunda (30), Braga Netto comportou-se como um tutor de Mandetta e ainda especulou sua demissão.
Líderes no Congresso, a começar pelas cúpulas das duas Casas, ficaram horrorizados com a cena —reação que conta com alguma solidariedade partidária, já que Mandetta é deputado do DEM de Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado).
Em trocas de ligações e mensagens durante a manhã desta terça (31), políticos se mostravam intrigados com o simbolismo da ação de Braga Netto.
Isso porque, também na véspera, havia chamado a atenção uma postagem no Twitter do ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas.
Nela, o homem a quem Bolsonaro uma vez disse dever a eleição em 2018 defendeu sua “postura de coragem” na crise, justamente quando o presidente estava sob uma saraivada de críticas por ter ido ao comércio popular do entorno de Brasília no domingo.
Ainda na segunda, o Ministério da Defesa divulgou ordem do dia acerca dos 56 anos do golpe de 1964, chamando o movimento militar de “marco para a democracia”.
O ministro da pasta, general Fernando Azevedo, é considerado um moderado negociador. Hoje, é o ponto de ligação entre a ativa sob seu comando, a ala militar na qual tem em Braga Netto um ex-subordinado e o Judiciário, no qual atuou ao lado do presidente do Supremo, Dias Toffoli.
Na manhã deste 31 de março, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também enalteceu o golpe no Twitter, ainda que deixando uma hashtag dizendo que ele pertencia “à história”. O vice já havia se diferenciado do presidente ao defender o isolamento social.
Líderes partidários se perguntaram se havia alguma conexão entre os eventos envolvendo os fardados.
O que é possível dizer a esta altura é que há preocupação com o risco de instabilidade social devido aos impactos econômicos da pandemia, além daquilo que já era identificado como o perigo de os militares serem usados na disputa entre o presidente e os estados.
Associado a tudo isso, existe o temor de que a beligerância de Bolsonaro leve a crise a outro patamar, já que ele não conta mais nem com apoio no Congresso, nem com a boa vontade do Supremo desde que apoiou ato pedindo o fechamento das instituições.
Isso o diferencia, por exemplo, do premiê húngaro, Viktor Orbán, que ganhou poderes ditatoriais em meio à emergência sanitária.
Os militares têm sua imagem associada à do presidente e à sua ascensão ao poder. Como ele é considerado incontrolável, orientado pelo núcleo familiar, restaria uma contenção de danos para a própria classe.
Um general muito próximo de Villas Bôas ressalta outro aspecto. Apesar de muito respeitado e influente, o ex-comandante não representa mais a ativa e tem papel simbólico na ala militar empregada pelo governo.
Quando falou, o atual comandante do Exército, Edson Leal Pujol, asseverou a gravidade do problema, no momento em que Bolsonaro só chamava a Covid-19 de "gripezinha".
Logo, sua fala pode apenas ser mais um registro de lealdade em momento difícil, cuja erosão da estabilidade emocional é tema de conversas no meio militar, além de externar a preocupação conhecida com radicalização nas ruas.
Em relação a 1964, militares ouvidos foram unânimes em destacar mais a parte benigna da ordem do dia, que insiste na submissão constitucional das Forças.
Já alguns políticos viram um recado acerca da prontidão dos militares caso a situação desande.
Um presidente de partido centrista brincou nervosamente que nem seria preciso um golpe, de resto uma virtual impossibilidade, bastaria ver Bolsonaro afastado para os militares de fato voltarem ao poder.
Para um político com trânsito intenso entre os fardados, é preciso olhar para a história. Está no DNA militar brasileiro a ideia de tutela sobre o poder civil, vide a sucessão de intervenções e golpes.
A erosão da credibilidade dos Poderes após a redemocratização, período no qual os militares ficaram quase sob mordaça pública, culminou com a eleição de um capitão reformado do Exército.
A liberação de energias seria inevitável, sustenta o político, porque ao longo dos anos o oficialato sempre viu sua versão para 1964 sub-representada após deixarem o poder em 1985.
Quando Azevedo assumiu, ele combinou com os comandantes que tudo o que dissesse respeito à ativa para público externo seria de sua responsabilidade, cabendo aos outros controlar as demandas internas. Assinar a nota, subscrita pelas três Forças, é um modo de fazer isso e ainda prestar contas ao generalato.
O risco maior, crê esse político, é a volta da ideia de tutela, e qual seria o papel de Bolsonaro no arranjo.
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CAPITÃO CORONA CONTRA O MINISTRO EQUILIBRISTA

Bernardo Mello Franco, O GLOBO
Jair Bolsonaro é um chefe inseguro. Perde o controle quando um subordinado não se dobra totalmente à sua vontade. O capitão já fritou e demitiu diversos auxiliares que ousaram contrariá-lo. Agora sua mira está apontada para o ministro da Saúde, Henrique Mandetta.
No meio da pandemia, o presidente resolveu torpedear o principal responsável pelo combate ao vírus. A cruzada tem dois motivos: o ministro ganhou luz própria e se recusa a endossar seu discurso populista contra as medidas de isolamento social.
No domingo, Bolsonaro partiu para a provocação explícita. Numa afronta a Mandetta, deixou o palácio para fazer corpo a corpo nas cidades-satélites. Cumprimentou eleitores, estimulou aglomerações e conclamou o povo a abandonar a quarentena. Tudo na contramão do que o ministro prega diariamente na TV.
Mandetta está longe de ser um ícone da coerência. Político profissional, já modulou o discurso para amaciar o chefe e fazer aliados. No sábado, tentou agradar Bolsonaro com um ataque gratuito à imprensa. Apesar das oscilações, mantém-se firme na defesa da quarentena.
Ontem Brasília amanheceu na expectativa de que ele pediria o boné ou seria posto para fora. Os militares temeram pela estabilidade do governo. A essa altura, a saída abrupta do ministro da Saúde poderia deixar o mandato presidencial por um fio.
Seguiu-se uma operação pouco sutil para abafar a crise. Uma entrevista marcada para o Ministério da Saúde foi transferida para o Planalto, onde Mandetta foi acomodado entre um general de paletó e um brigadeiro de farda. Só faltou colarem um esparadrapo em sua boca para impedi-lo de criticar o chefe.
Num dos momentos mais constrangedores, o general Braga Netto disse que a demissão de Mandetta “está fora de cogitação… no momento”. Na política, esse tipo de frase indica que o auxiliar está prestes a cair, devolveu o ministro, sem alterar a voz.
Mandetta evitou confrontar Bolsonaro, mas reafirmou a defesa do isolamento social e avisou que só sai se for demitido. Pelo visto, o duelo entre o Capitão Corona e o ministro equilibrista ainda está longe de acabar.
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O 'VÍRUS CHINÊS'

Pablo Ortellado, Folha de S.Paulo
A postura do governo federal de se contrapor à política de isolamento social preconizada pela ciência e por autoridades sanitárias gera justificada indignação, mas, às vezes, a indignação nos indispõe a entender a motivação dos agentes.
O que o governo Bolsonaro quer, afinal?
Acredito que devemos olhar para o que os círculos bolsonaristas e olavistas estão discutindo para encontrar a resposta. E a resposta que se encontra ali é a do “vírus chinês”.
O vírus chinês é uma teoria da conspiração segundo a qual o coronavírus seria relativamente inócuo, tão grave quanto uma gripe comum. Apesar disso, o partido comunista chinês teria montado um circo e falsificado dados de letalidade, com a intenção de gerar pânico, parar a economia global e dar assim uma vantagem competitiva à economia chinesa, que, à despeito do teatro, seguiria em plena atividade.
Há algumas variantes dessa teoria conspiratória: o vírus teria sido desenvolvido em laboratório como arma biológica; agentes chineses estariam se infiltrando em aglomerações urbanas para espalhar o vírus; empresas chinesas estariam suspendendo o pagamento por produtos já adquiridos para ferir as economias locais.
Frente a esse cenário, diz o argumento, o melhor que o Brasil poderia fazer é não aderir ao pânico, adotar medidas preventivas moderadas e explorar a vantagem competitiva que os chineses vislumbraram para si.
Essa estratégia, no entanto, estaria enfrentando a oposição de governadores ignorantes e corruptos que aderiram à histeria global e vão afundar a economia e enterrar a oportunidade única de o Brasil dar um salto de desenvolvimento enquanto o resto do mundo está com a economia paralisada.
Nada disso faz o menor sentido: pressupõe que apenas Bolsonaro, e nenhuma potência global, conseguiu desvelar o complô chinês; pressupõe que os modelos epidemiológicos com dados de contaminação na Europa e nos Estados Unidos não têm validade. É tão absurdo que em circunstâncias normais não mereceria nossa atenção.
Mesmo assim, é isso o que está sendo discutido nos canais de YouTube e nos áudios de WhatsApp —e acredito que temos motivos para acreditar que é isso o que move o presidente e o seu entorno.
Se esse é mesmo o raciocínio que move o presidente, devemos esperar não apenas pressão pela adoção do isolamento vertical, contra toda a evidência científica, como um atraso ainda maior na adoção de medidas econômicas efetivas, com o intuito de pressionar empresas, comerciantes e trabalhadores a regressarem ao trabalho.
Estamos fodidos.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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BOLSONARICES

Merval Pereira, O GLOBO
A tentativa de tirar o protagonismo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta no combate ao Covid-19 não passa de mais uma bolsonarice, entre muitas que o presidente comete cotidianamente com palavras, gestos e hábitos.
Bolsonarice ainda não existe na língua portuguesa oficial, mas caminha para tornar-se um neologismo similar a tolice, burrice, asnice, todos derivados de substantivos com o sufixo “ice”, que tem em certos casos, como nesses, uma carga pejorativa indelével.
É uma característica da língua portuguesa a criação de palavras como essa, que primeiro dominam o português falado informalmente e acabam, pela frequência do uso, se imiscuindo na língua oficial, sendo reconhecidas pelos dicionários. Talvez, portanto, estejamos vendo o surgimento de uma nova palavra, pela necessidade de classificar as atitudes de um presidente da República colocado no Palácio do Planalto por circunstâncias políticas, como um jabuti em cima de uma árvore.
Boa parte das mãos que o colocaram lá, no caso do nosso jabuti, já não o aparam. A ideia propagada de que representa mais de 57 milhões de eleitores que votaram nele é uma falácia, pois como dizia Tancredo Neves, voto você não tem, você teve.
A cada bolsonarice que faz, mais eleitores se descolam de seu compromisso eleitoral, como demonstram os panelaços diários. Uma característica de sua personalidade é a paranóia, e Mandetta caiu na sua malha fina.
Todo ministro que se destaca popularmente, e pode ter objetivos políticos, Bolsonaro trata de cortar-lhe as asas. Mandetta já foi deputado federal, tem ligações políticas importantes, e a aparição diária para dar informações sobre a atividade do ministério da Saúde no combate ao Covid-19 tornou-o figura popular e simpática.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, continua na mira de Bolsonaro pelo mesmo motivo. Ontem, vazaram comentários do presidente de que estava se considerando desamparado juridicamente por Moro. Sintomaticamente, quem foi falar sobre os aspectos jurídicos do combate ao Covid-19 foi o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Luis Mendonça, “tremendamente evangélico” e também candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF).
Também ontem, o Palácio do Planalto estabeleceu nova sistemática para as coletivas sobre a pandemia, reduzindo o ministro da Saúde a mais um dos muitos ministros que estão cuidando do assunto, a partir da coordenação do chefe do Gabinete Civil, General Braga Neto.
O ministro Mandetta, o último a falar, não deixou dúvidas sobre a manutenção da política de controle sanitário adotada desde o início da crise. O afastamento social continua sendo o comportamento recomendado por critérios técnicos, até que se tenha informações necessárias para organizar uma distensão gradual, até que a vida volte ao normal.
O mês de abril já está reservado, na visão técnica, para a quarentena de todos que não exerçam funções essenciais. Com habilidade, Mandetta passou as orientações sem aparentar que estava desautorizando a atitude do presidente ao visitar o comércio de algumas cidades satélites de Brasília. Mas ficou claro que o presidente exorbita, até quando defende o confinamento vertical de idosos e doentes.
O auge da demonstração de força do Planalto foi acabar com a entrevista, através da locutora oficial, no exato momento em que o ministro Mandetta teria que responder a uma pergunta direta sobre o que achou do passeio de Bolsonaro.
O adendo de que o ministro da Saúde continuaria na sala para fazer uma apresentação técnica sobre o panorama do Covid-19, mas não responderia a perguntas, foi a cereja do bolo.
Recado
O ministro Paulo Guedes manda um recado informando que, ao contrário do que escrevi, o presidente Bolsonaro o consultou sobre o Aumento do valor de R$ 600 do voucher para os informais, cabendo ao líder do governo na Câmara Vitor Hugo , após confirmação com ele, anunciar a decisão do Presidente.
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O FIM DE 88

Pedro Fernando Nery, O Estado de S.Paulo
“Instituir uma renda mínima para todas as famílias brasileiras.” O leitor pode se surpreender, mas uma renda universal era uma das propostas do plano de governo oficial do candidato Jair Bolsonaro. Com adeptos em diversas ideologias, o debate sobre renda universal ganhou força nos últimos dias, na esteira da aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 pelo Congresso – destinado a trabalhadores informais prejudicados pela crise.
Ela é conhecida à direita pela proposta de “imposto de renda negativo” do ícone liberal Milton Friedman, que advogava que famílias abaixo de um nível de renda não deveriam pagar imposto, mas receber transferências até alcançar o nível determinado. E é conhecida da esquerda pela Renda Básica de Cidadania, proposta histórica de Eduardo Suplicy aprovada no Congresso em 2004 – o “direito de todos os brasileiros receberem anualmente um benefício monetário”. Jamais foi implementada.
Nos Estados Unidos, chamou a atenção quando Hillary Clinton, fazendo a autópsia da sua candidatura presidencial, alegou que quase anunciou a renda universal como sua plataforma eleitoral contra Trump. Teria desistido por não conseguir desenhar a implementação. Nas primárias democratas deste ano, o tema não animou os candidatos mais progressistas, mais focados em políticas de mercado de trabalho.
A renda universal ainda não foi adotada em país algum, pelo seu custo proibitivo. Como alternativa, muitos prescrevem algo mais viável e focalizado: a renda garantida. Trata-se de um benefício só para quem vive abaixo de um limite de renda, em valor suficiente para que esse mesmo limite seja superado.”
Esse é o caso do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso: R$ 600 para quem vive com menos de meio salário mínimo. Rigorosamente, ele não seria então uma “renda universal” ou uma “renda básica”, porque não é destinado a todos. É mais próximo do imposto negativo do que do benefício de Suplicy. É como um Super Bolsa Família, embora a nova roupagem ajude a superar o estigma que essa transferência de renda aos muito pobres têm.
Propostas de fato universais foram discutidas pelo Congresso recentemente, para grupos específicos da população: o benefício universal infantil, aprovado pelo Senado, é voltado às crianças. Já na Câmara, o deputado Pedro Paulo, no âmbito da reforma da Previdência, apresentou proposta da “renda básica universal” para o idoso e pessoas com deficiência.
O debate expõe uma fragilidade da Constituição de 1988. Se ela conseguiu ampliar a proteção à saúde, que deixou de ser direito somente dos trabalhadores com emprego formal e carteira assinada, não fez o mesmo com a proteção à renda. Os benefícios aos formais custam na ordem de R$ 800 bilhões por ano, e a crise da covid-19 evidencia como larga parcela da população vive vulnerável e sem contar com esses recursos.
O modelo constitucional deixa tanta gente às margens que se estima que mais da metade da população brasileira pode ser beneficiada direta ou indiretamente pelo auxílio emergencial aprovado ontem – voltado a informais e desempregados sem seguro-desemprego.
Mesmo no melhor momento do mercado de trabalho no fim de 2014, o emprego formal era escasso para jovens, nordestinos, mulheres, negros e brasileiros com ensino médio incompleto. Mesmo então, esses grupos ficavam às margens da proteção da Carta Cidadã e da festejada legislação trabalhista. A carteira de trabalho é um homem branco paulista.
Para além da realidade desnudada pela pandemia, esse arcabouço também é desafiado pela tendência estrutural trazida pela transformação tecnológica. A CLT e a proteção trabalhista e previdenciária são baseadas ainda em um modelo industrial, de vínculos estáveis e homogêneos, com jornadas fixas e voltado para um único provedor no domicílio – o homem pai de família. O novo modelo, mais heterogêneo, exigiria um arcabouço mais amigável à formalização e proteção dos grupos mais vulneráveis: talvez com uma reforma do instituto do microempreendedor individual (MEI).
O MEI foi criado no governo Lula e expandido no governo Dilma e pode acabar fazendo mais pela inclusão no mercado de trabalho e proteção à renda do que a própria reforma trabalhista. Afinal, a erradicação da pobreza e da marginalização é talvez o principal fim da Constituição de 88. O auxílio emergencial da pandemia durará três meses: ao seu término, a sociedade ainda terá um encontro marcado com essa questão.
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CHACOALHADA

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
A crise do coronavírus acabou dando uma chacoalhada no governo, com mudanças de posições, ministros em alta, ministros em baixa e um consenso constrangido entre todos eles: é preciso agir e atacar a doença em conjunto, isolando o presidente Jair Bolsonaro. Não por ser do grupo de risco, ter mais de 60 anos e estar cercado de contaminados por todos os lados, mas porque é urgente que ele pare de atrapalhar.
Em alta no próprio governo e na opinião pública está o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sistematicamente desautorizado pelo presidente, mas reconhecido pelos colegas ministros, que temem a força do coronavírus e a demissão do personagem-chave do combate à epidemia. Demitir Mandetta seria esfacelar, no momento decisivo, toda a estrutura do Ministério da Saúde, que tem o controle da operação e o reconhecimento popular.
Além de Mandetta, dois generais estão em alta: Braga Netto, da Casa Civil e com sala próxima do gabinete presidencial, e Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, que despacha em outro prédio, mas é personagem assíduo no Planalto. Os dois têm duas características comuns: relacionam-se há anos com Bolsonaro e são respeitados pela cúpula do poder, que recorre a eles quando é preciso “dar um jeito no capitão”. Carioca jeitoso, Fernando foi colega de turma do insubordinado Bolsonaro no Exército.
Na balança, Braga Netto e Fernando Azevedo sobem, dois outros generais descem: Augusto Heleno, do GSI, sobre quem repousavam as melhores expectativas no início do governo, e Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, que chegou ao governo para cobrir o vácuo de Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil que acabou trocado por Braga Netto. Heleno, que pegou coronavírus, parece estar se cansando do jogo. Ramos sofre pelas virtudes, não pelos defeitos: a personalidade contemporizadora, oposta à dos Bolsonaro.
Também em baixa o verdadeiro mito do governo, Sérgio Moro, alvo do mesmo ciúme que o presidente dedica agora a Mandetta e já despejou sobre Gustavo Bebianno, general Santos Cruz e até sobre Regina Duarte, logo na largada. Moro foi desautorizado inúmeras vezes, a última delas quando assinou o decreto suspendendo a entrada de estrangeiros de vários países. Bravo, Bolsonaro riscou sem pestanejar os cidadãos dos EUA – hoje, campeão de casos confirmados.
Depois das sucessivas desautorizações, Moro se recolheu e Bolsonaro passou a cobrar o contrário. Antes, condenava os “excessos” do ministro, que aparecia demais na mídia e lhe ofuscava a popularidade. Hoje, critica a “omissão” dele, reclamando que a área jurídica do governo está “acéfala”, o governo perde uma atrás da outra no Supremo e em todas as instâncias.
Na segunda-feira, 30, aliás, o ministro Dias Toffoli disse que não se combate o vírus com “achismos” e outros ministros do STF avisaram que vão derrubar medidas contrárias à saúde e à ciência. E, se Bolsonaro havia conclamado os políticos a saírem às ruas, como ele próprio fez no domingo, todos os líderes do Senado responderam com um sonoro “não”, em forma de manifesto a favor do isolamento social.
Assim, Bolsonaro está isolado dentro e fora do Brasil. Seguindo os líderes que prudentemente decretaram o isolamento social contra o coronavírus desde o início, também os teimosos Trump (EUA), Boris Johnson (Inglaterra) e Giuseppe Conte (Itália) se renderam às evidências. Ou seria à realidade?
Há poucos dias, Bolsonaro disse, todo orgulhoso, que Trump seguia “uma linha semelhante à nossa”. Mas, com quase 140 mil infectados e 2.500 mortes nas suas barbas (ou cabeleira), até Trump acaba de recuar e estender o isolamento para 30 de abril. O presidente brasileiro vai esperar tanto para cair na real?
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'VÃO MORRER, UÉ, LAMENTO'

José Casado, O GLOBO
A sociedade se move. De Manaus a Porto Alegre, incontáveis voluntários, líderes religiosos, comunitários e empresariais multiplicam a coleta de alimentos e de kits de higiene para áreas onde o poder público não alcança, porque delas sempre se manteve distante — salvo nas ações de repressão policial.
São 74 milhões (37%) de brasileiros sem saneamento, parte abrigada em imóveis com mais de três por quarto, e a maioria agrupada em famílias cuja renda oscila no salário mínimo. Estão mais expostos ao vírus.
“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento” — disse Jair Bolsonaro, semana passada, com a naturalidade de quem lava as mãos e o distanciamento, talvez consciente, de possíveis cenas de comboios de caixões, com vítimas da “gripezinha”. A lógica de Bolsonaro é a da campanha pela reeleição mesmo num cenário devastado pelo medo coletivo: “Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”
A maioria reage, mostram pesquisas recebidas no Planalto. Indicam um presidente em derretimento na própria base. O Datafolha (20/3) confirma: entre aqueles que assumem ter votado em Bolsonaro, 15% declararam-se arrependidos.
Não é irreversível, mas é a fotografia eleitoral mais recente. Isso equivale à perda potencial de 8 milhões de votos sobre os 57 milhões de 2018. A corrosão é visível nos estados, onde governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente.
Na raiz está a imprevidência. Um mês atrás (20/2), Bolsonaro insuflava protestos contra o Congresso e o Supremo, atacava governadores ameaçados por motins de PMs e calculava eventuais prejuízos à reeleição com avanço do PIB a 2% no ano.
Enquanto isso, na Alemanha, a conservadora Angela Merkel organizava um plano emergencial de saúde pública, aumentava gastos e garantias às dívidas. Na época, o Brasil tinha 14 casos suspeitos, nenhum confirmado. Hoje, as projeções para o PIB são de -1,7% (Citi), – 2,8% (Safra) e – 3,4% (Goldman Sachs). Bolsonaro persevera na campanha. Agora caça culpados pelos próprios erros.
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O GANHA-GANHA DE BOLSONARO

Carlos andreazza, O GLOBO
Vi muita gente boa, não faz tanto tempo, dizer que o perfil de louco rompedor, de irresponsável trombador, era o necessário — finalmente o gatilho — para dar um tranco no Brasil e fazer o país avançar para as reformas liberais de que o Estado precisaria. Nunca acreditei nisso. Reformas estruturais dependem de estabilidade, de um chão de previsibilidade. Condições impossíveis se é — se sempre foi — o próprio presidente da República, de resto um líder sindical da ativa, com histórico golpista, a principal usina de traumas, de cismas.
Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Sempre foi. Por três décadas expôs sua natureza no Parlamento, não raro se comportando como um sociopata. Ai está. Ninguém se pode dizer surpreso.
De toda maneira, o tempo — a chance — de reformar o Estado passou. O perfil do presidente, no entanto, continua o mesmo. E não é o de um mero maluco beleza que abriria caminhos ao liberalismo econômico; mas o de um populista autoritário, centralizador, cujo reacionarismo tem por ar a forja artificial de conflitos, e cuja a natureza rompedora, inegável, só abre picadas para desguarnecer progressivamente a democracia liberal. Repito: um golpista em busca da (de fazer a) ocasião. Uma real ameaça em tempos excepcionais.
Aqueles românticos que acreditaram que esse sujeito — alguém que reage, tanto mais se acuado, cindindo e radicalizando — poderia liderar o país num amplo e profundo programa reformista agora decerto são os que creem que esse elemento poderá dirigir os esforços brasileiros de enfrentamento de uma crise mundial sem precedentes. Este sujeito: o que há três semanas — atacando a Justiça Eleitoral —afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada.
Chega de ilusão. Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama. Jamais será solução. Dá mostras disso diariamente, como quando ameaça a ordem pública — investindo num choque de desobediências civis — ao aventar um decreto que desmobilizaria trabalhadores da quarentena determinada por governadores e recomendada pelo seu Ministério da Saúde. Choque de desobediências civis — resultando em caos social: uma possível ocasião para o golpista.
Atenção ao jogo de Bolsonaro. O que temos hoje mais proximamente do que se esperaria de um estadista no comando da empreitada contra a Covid-19 senão o ministro Mandetta? E o que faz o presidente ante a gestão técnica segura — referencial — do auxiliar senão desqualificá-lo e desautorizá-lo pública e seguidamente? É investimento na confusão absoluta, em estímulos de comunicação contraditórios — que geram insegurança.
Coisa alguma exemplifica melhor a mentalidade bolsonarista do que, num momento de crise, o presidente fabricar uma oposição dentro do próprio gabinete de crise. Ou alguém tem dúvida de que é isso que Bolsonaro faz? É um jogo, assim ele crê, de ganha-ganha: faz de seu ministro — que prega o distanciamento social — um oponente, uma escada para que possa apontar histerias e mostrar sua preocupação com a economia popular; mas o mantém no governo de modo a capitalizar-lhe os feitos caso a atuação do Ministério da Saúde, em parceria com os governadores, resulte no controle da epidemia.
O presidente da República é um — a palavra é esta — covarde: enquanto desdenha da gravidade da doença e dinamita todos os indicativos de responsabilidade sanitária, empurrando os desprovidos de plano de saúde às ruas justamente para respirarem o pico de contágio, aposta em que as ações restritivas dos governadores deem certo para que então possa bradar que estava correto e que a Covid-19 fora mesmo superdimensionada. Isso é Jair Bolsonaro; e esse, o seu ganha-ganha caso a epidemia seja domada.
Para dar vazão à guerra cultural absoluta que lhe dá discurso, conseguiu plantar entre nós — num triunfo da linguagem populista — a existência da oposição saúde pública (que seria valor elitista) versus saúde econômica (valor popular).É a armadilha à qual nos atraiu. A vida das pessoas contra, ora, a vida das pessoas. Um novo confronto artificial, nova arapuca para colisão institucional, que estabelece como antagônicas demandas complementares. De um lado, os alarmistas da prevenção que evitaria o colapso dos SUS, representados pelos governadores. De outro, ele, Bolsonaro, preocupado com o sustentodo pobre. Tudo somente narrativa — para o fim autocrático.
O presidente se move mesmo, se espalha, em todas as direções — e assim se move a favor do estado de anomia. O jogo de ganha-ganha na versão em que a tragédia se impõe. Muitos mortos. Muitos desempregados. Corpos empilhados. Falta de alimentos. Saques. Ingovernabilidade. Radicalização. O acirramento de uma crise — para cujo agravamento concorreu —como justificativa para medidas de exceção.
Bolsonaro foi para o all-in. As fichas somos nós. O vírus não joga.
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UMA DATA PARA SER LEMBRADA COMO A DO ESTUPRO DA DEMOCRACIA

Do Blog do Noblat, VEJA
31 de março de 1964, nunca mais
A ditadura militar de 1964 durou 21 longos anos – parte deles tenebrosos, com a morte e o desaparecimento de 434 pessoas e o envolvimento de 377 outras, direta ou indiretamente, em práticas de tortura e assassinato. A tortura a presos políticos e a eventuais inocentes foi adotada como política de Estado.
A liberdade e o respeito aos direitos humanos foram suprimidos no país por largo tempo. As garantias individuais, também. A Constituição foi rasgada e deu lugar a periódicos atos institucionais, o mais célebre deles o AI-5, que garantiram a continuidade do regime autoritário até ele se desmanchar.
Há dois dias, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o golpe de 64, que ele não chama de golpe, é um fato que “pertence à História”. Se o reconhecesse como um fato positivo o teria dito com todas as letras, como no passado já disse. Mas seus ex-colegas de farda insistem em exaltar o feito.
Ordem do dia assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica a propósito do 56 anos do golpe completados hoje, confirma que os militares nunca engoliram e talvez jamais venham a engolir o fato de terem rompido com a legalidade e implantado no país uma ditadura.
Custa a crer, mas a ordem que será lida e distribuídas em todos os quarteis afirma que o golpe foi um movimento que representou “um marco para a democracia”. Como um marco? Marco de quê? Da destruição dos princípios e valores que distinguem entre um país democrático e outro que não é? Nesse caso faria sentido.
Faltou um bom redator para dar um trato à nota? Ou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas querem mesmo dizer que um dos marcos da democracia entre nós foi a intervenção armada que depôs um presidente eleito pelo povo, substituindo-o por sucessivos generais “eleitos” por um Congresso emasculado?
Diz a nota que “o Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”. Uma das utilidades do papel é que ele serve para que se escreva qualquer coisa… Que Brasil reagiu? As chamadas “forças produtoras”, a imprensa e parte da classe média assustada, como de hábito, apoiaram o golpe.
Mas daí generalizar e apresentá-las como se falassem pelo país… O povo, como em outras ocasiões históricas, uma delas a da Proclamação da República, a tudo assistiu bestificado. Povo! Como se usa seu santo nome em vão. Como a palavra povo serve para legitimar medidas que seriam para o seu próprio bem.
Não há um só líder político, em democracia ou ditadura, que não encha a boca para dizer que fala em nome do povo. Os mais modestos, se há algum modesto, diz que fala em nome dos seus eleitores. O presidente Jair Bolsonaro usa as duas formas de acordo com as conveniências do momento. Pura enganação.
O ex-presidente Tancredo Neves ensinava que político depois de eleições não tem mais voto – teve. Passou. A cada dia deveria se lembrar disso. Se lembrasse, cuidaria melhor do povo para reconquistar os votos que perdeu desde que o resultado da eleição foi proclamado. Bolsonaro parece não se dar conta disso.
Da ordem do dia sobre o golpe que inventou o falso “milagre econômico brasileiro”, um período que na verdade beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres, só é aproveitável o trecho que reafirma que as Forças Armadas estão “submetidas ao regramento democrático”. No que não fazem nenhum favor.
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O TSUNAMI

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense
A epidemia de coronavírus é um tsunami invisível que varre o mundo. No momento, seu epicentro é Nova York, nos Estados Unidos, o que obrigou o presidente Donald Trump a mudar completamente o discurso no domingo, quando pediu para a população ficar em casa até 30 de abril. Trump vinha defendendo o afrouxamento das medidas de isolamento e chegou a declarar no sábado que uma quarentena não seria necessária em Nova York, New Jersey e Connecticut. Mudou de ideia no dia seguinte, quando admitiu que o pico da epidemia será daqui a 15 dias. Já são mais de 2 mil mortos e mais de 100 mil casos confirmados, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins, na economia mais poderosa do mundo. O sistema de saúde de Nova York está à beira do colapso.
Ao contrário de Trump, aqui, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para contestar a política de isolamento social e deu um rolé pelo comércio do Sudoeste, de Ceilândia e de Taguatinga, defendendo que as pessoas precisam trabalhar para sobreviver. Depois do périplo, devidamente registrado no Twitter — que apagou duas de suas postagens por colidirem com a orientação das autoridades de saúde pública —, Bolsonaro disse que era preciso enfrentar a situaçao como homem e não como moleque, porque as pessoas um dia vão mesmo morrer. Não se sabe a quem ele se referia, mas o fato é que desautorizou a orientaçao do seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o que aumentou as especulações de que ele seria demitido.
Não foi o que aconteceu, porém, apesar de Mandetta estar visivelmente constrangido na entrevista coletiva concedida no final da tarde de ontem pelo comitê de crise do Palácio do Planalto, que coordena as ações do governo contra a epidemia, sob comando do ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto. Quando Mandetta foi indagado pelos jornalistas sobre as divergências com Bolsonaro e se sairia do governo, foi interrompiodo por Braga Netto, que matou a pergunta no peito e respondeu: “Está fora de cogitação”, “Não existe essa ideia”. Também participaram da entrevista os ministros Tarcísio Gomes (Infraestrutura), Onyx Lorenzoni (Cidadania) e André Mendonça (Advocacia Geral da União), além de um representante do Ministério da Defesa.
Na sua entrevista, Mandetta desconversou sobre o assunto e reiterou que a orientaçao do Ministério é focada no combate à epidemia, em termos técnicos e científicos. Justificou a decisão de mudar o formato das avaliaçoes diárias, que agora serão feitas por todos os ministros, não sob seu comando, mas o de Braga Netto, com o argumento de que a pandemia transbordou a esfera de sua pasta e exige engajamento de todo o governo, o que é verdadeiro. Bolsonaro vem defendendo o relaxamento das medidas de isolamento adotadas nos estados e a retomada da atividade econômica, com a reabertura do comércio e volta dos estudantes às escolas. As recomendações de especialistas, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do próprio Mandetta são de que o isolamento é necessário para evitar a expansão da pandemia.
Tensões
Ontem, o diretor executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS), Michael Ryan, fez nova advertência quanto à expansão da pandemia. Disse que o coronavírus ultrapassou as ruas e está sendo levada para “dentro das famílias”, o que reforça a necessidade de isolamento social, sobretudo onde há transmissão comunitária e faltam testes, como é o caso do Brasil. “O ideal é que a quarentena ocorra em um lugar que não seja a casa [do infectado], porque esse doente pode infectar sua família. Mas isso não é sempre possível”, disse. No Brasil, já houve 159 mortes, com 4.579 casos confirmados, uma taxa de letalidade de 3,5%. A epidemia ainda está concentrada no Sudeste, com 2.507 casos, 55% do total. São Paulo é o epicentro, com 1.451 casos. O aumento do número de mortos de ontem para hoje no estado foi de 17%, sendo 7,9% o de casos.
Mesmo que a pandemia avance, Bolsonaro mantém seu litígio aberto com os governadores, prefeitos e autoridades de saúde pública, que defendem a permanência de Mandetta no cargo. O ex-ministro da Cidadania Osmar Terra(MDB-RS), que é deputado federal e médico, se movimenta para substituir Mandetta e faz coro com as teses de Bolsonaro. As relações de Mandetta com Bolsonaro vão de mal a pior e somente não houve uma ruptura porque o ministro já avisou que não pede demissão. Demiti-lo agora seria a implosão da equipe de sanitaristas do ministério e uma porta aberta para a articulação do impeachment do Bolsonaro, por crimes de responsabilidade. O Congresso está fazendo seu dever de casa, mas cobra um comportamento mais responsável do presidente da República.
Ontem, o Senado aprovou o chamado “corona voucher”, a ajuda de R$ 600,00 para os trabalhadores informais sem atividade, que se soma ao pacote de medidas econômicas anunciadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. É fundamental para garantir uma renda básica aos que ficaram sem nenhuma outra fonte e evitar uma situação de caos social. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, articula a aprovação do que está sendo chamado de “orçamento de guerra”, as medidas necessárias para o país atravessar a pandemia sem um cenário de tragédia social e reativar a economia logo depois. De certa forma, o foco na pandemia e nessas medidas econômicas é um elemento estabilizador do processo, em meio às tensões criadas por Bolsonaro, que ameçam transformar a pandemia num tsunami político.
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FIM DE UM MITO DA DITADURA

Míriam Leitão, O GLOBO
Um estudo inédito desmonta o maior argumento econômico da ditadura de 1964: o de que houve um milagre. Não houve. Dois grandes estudiosos mostram que 82% do crescimento da renda dos salários, nos primeiros anos do chamado “milagre”, foi apropriado pelos 10% mais ricos. O estudo chega no momento exato dos arremedos autoritários do presidente Bolsonaro exibidos no meio de uma pandemia. Ele se comporta como se tivesse poderes ilimitados. Na democracia não tem, felizmente. É bom que se desmonte mais um mito da ditadura: o de que ela foi boa na economia durante os anos em que houve crescimento do PIB.
Crescimento para quem? Foi isso que se perguntaram os economistas Marcelo Medeiros, professor visitante da Princeton University, e Rogério Barbosa, pós-doutorando da Universidade de São Paulo. A nota técnica a que esta coluna teve acesso com exclusividade desmonta todo o mérito econômico da ditadura. “Nossa principal conclusão até o momento é de que o crescimento de 1960 a 1970 foi altamente pró-ricos, com grandes parcelas da população tendo perdas ou permanecendo praticamente estagnadas.”
Os militares insistiram ontem em reescrever a história. A ordem do dia elogia a ditadura militar e repete o delirante argumento de que os militares defendiam a democracia quando a golpearam. É cansativo, 56 anos depois, ver as Forças Armadas se prestando a esse papel.
No domingo, depois do temerário passeio de Bolsonaro para mostrar que não seguia orientações das autoridades sanitárias do planeta, ele chegou ao Palácio e disse: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, de baixar um decreto amanhã…” O decreto seria para determinar a volta de todo mundo ao trabalho contra as ordens dos governadores.
Perguntei ao ministro do STF Luiz Roberto Barroso se Bolsonaro poderia baixar esse decreto. O ministro disse que “formalmente ele pode”, mas que talvez o texto não prevaleça:
– A resposta à sua pergunta é: o presidente pode. O decreto vai subsistir? Vai depender do que o Supremo decidir.
Isso porque a Constituição diz que quem planeja as ações numa calamidade é o governo federal, mas em outro ponto diz que a saúde é um direito. Em outro artigo diz que em saúde pública o poder é compartilhado entre União, estados e municípios.
– As circunstâncias atuais do poder executivo federal reavivaram dois princípios constitucionais que estavam esmaecidos: a federação e a separação dos poderes, e deu protagonismo ao poder legislativo – disse o ministro.
Essa é a beleza da democracia. Ela, contudo, é minada diariamente pelo presidente da República, quando manda que se comemore essa data funesta ou quando faz ameaças implícitas. Por isso é sempre bom derrubar os mitos criados pelas mentiras sempre repetidas.
Cruzando mais dados do que os estudos anteriores, Medeiros e Barbosa chegaram às seguintes conclusões até o momento: “1- O crescimento foi altamente concentrado. Cerca de 82% de todo o crescimento foi apropriado por apenas 10% dos trabalhadores. 2- O crescimento econômico entre 1960 e 1970 foi pró-ricos. A economia os favoreceu desproporcionalmente e deixou os pobres para trás. 3- Houve grande aumento da desigualdade de renda”. Esse último ponto já havia sido registrado em pesquisas anteriores.
Na verdade, segundo o estudo, houve “recessão” para pelo menos um terço dos trabalhadores e houve estagnação para 40% outros. “Somados, 70% dos trabalhadores não tiveram qualquer ganho.”
Por esse motivo, dizem os professores, “não é correto chamar o período de ‘fase do milagre econômico da ditadura’. Uma expressão que descreva melhor o período seria ‘fase do crescimento pró-ricos da ditadura”. Os professores aprofundarão as análises dos períodos posteriores antes de concluir o estudo.
Nos dias dolorosos que vivemos, a população tenta se proteger de um inimigo mortal e perigoso, enquanto o presidente, um admirador da ditadura, ensaia baixar decretos para tirar poderes de governadores e diz sem qualquer simpatia à vida humana e em péssimo português: “Vocês acham que morrerão gente com o passar do tempo? Morrerão”. Para mostrar que fala sério, o governo fez ontem um teatro para mostrar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fica no cargo, mas tutelado.
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PESQUISA CAPENGA

Editorial Folha de S.Paulo
Duas decisões recentes, tomadas no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Capes, órgão de fomento ligado à pasta da Educação, aprofundam equívocos da administração Jair Bolsonaro a respeito da pesquisa científica.
A primeira, publicada em portaria do ministério, estabelece as áreas que deverão ser priorizadas, de 2020 a 2023, no que tange à alocação de recursos para projetos.
A listagem contempla apenas campos tecnológicos e aplicados, deixando de lado as ciências humanas e sociais, bem como as ciências básicas. Se, no primeiro caso, o documento apenas reafirma a notória repulsa ideológica do governo às humanidades, no segundo revela-se uma visão estreita e mal informada do fazer científico.
A ciência organiza-se numa espécie de linha contínua que vai das áreas puramente teóricas àquelas voltadas estritamente à resolução de problemas concretos. Ao privilegiar apenas as últimas, o ministério parece ignorar a relação inextricável entre estas e as primeiras.
Tome-se a decifração da estrutura de dupla hélice do DNA, ocorrida em 1953. Seria, à primeira vista, um típico caso de busca do conhecimento pelo conhecimento. A descoberta, porém, tornou-se uma das bases da biotecnologia moderna, com aplicações nas áreas de saúde e energia e nas indústrias química e alimentar, entre outras.
As falhas da portaria se devem, talvez, à maneira como foi elaborada, sem consulta à comunidade científica, como apontaram entidades em carta ao ministério.
O mesmo expediente foi seguido nas mudanças efetuadas pela Capes nos critérios de distribuição de bolsas de pesquisa. Um mês após introduzir um novo sistema, a agência, de forma inexplicável, alterou novamente as regras.
Agora, os programas podem perder até 50% das bolsas que possuíam, ante o limite de 10% no regramento anterior. De um dia para o outro, milhares de pós-graduações se viram com um número menor de bolsas do que o esperado, com prejuízo não apenas para o planejamento anual como para os estudantes que iriam recebê-las.
A iniciativa mereceu amplo rechaço, que incluiu o dos 49 coordenadores de área da própria Capes, bem como as associações universitárias e as entidades científicas.
Somadas, ambas as medidas têm o potencial de desestabilizar o sistema de pesquisa e pós-graduação erigido nas últimas décadas. Devem ser revistas o quanto antes.
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A PEDRA NO CAMINHO

Editorial O Estado de S.Paulo
O presidente Jair Bolsonaro foi reconhecido pela revista norte-americana The Atlantic como “o líder mundial do movimento de negação do coronavírus”. Já a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de “BolsoNero”, numa alusão à lenda de que o imperador Nero tocava harpa enquanto Roma ardia em chamas. E o presidente brasileiro foi o único chefe de Estado citado nominalmente pela The Lancet, uma das principais publicações científicas do mundo, em editorial crítico às respostas de muitos governos à pandemia, especialmente aqueles que “ainda precisam levar a ameaça da covid-19 a sério”.
Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.
Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.
O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.
Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.
Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.
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COLABORANDO COM EDUARDO BANANINHA

Maria Helena RR de Sousa, Blog do Noblat – VEJA
O vice Hamilton Mourão, querendo defender Eduardo Bolsonaro, foi engraçado, mas não foi verdadeiro. Como assim o Zero-Zero não representa o governo? Ele, além de ser filho do presidente da República, não é um parlamentar brasileiro, não é, segundo consta, o deputado mais votado do Brasil nas últimas eleições?
Não é, além disso, o eterno candidato a embaixador do Brasil junto ao governo Trump?
Não fez parte das viagens de Bolsonaro aos States, sempre ali sentadinho, calado e mudo, ao lado do pai e do presidente americano?
Pois é.
E como seu pai ele adora Donald Trump, é seu fervoroso admirador. Portanto, achou que devia imitar o “cenoura” que se refere ao coronavirus como “o vírus chinês”.
Mas como sua cultura é microscópica, esqueceu que quem pode, pode e quem não pode se sacode e saiu dizendo muitas bobagens, inclusive que a China é a culpada pela disseminação do vírus pelo mundo afora.
Acontece que os Estados Unidos dão-se muito bem com a China, são bons parceiros comerciais e econômicos, são duas super potências que unidas, controlam o mundo. Já o Brasil, tadinho, mal sabe onde fica a China…
Eduardo Bananinha, como seu querido pai, não é de muitas leituras. Mas talvez, com algum sacrifício, pudesse ler o excelente “On China”, do Dr. Henry Kissinger, e descobrir como pensa, respira e vive o gigante asiático.
São 560 páginas na edição da editora Objetiva cujo título é “Sobre a China”, na tradução de Cássio de Arantes Leite. Deixo aqui a sinopse oferecida pela editora para dar água na boca de nosso futuro embaixador Bananinha (quem sabe embaixador na China?):
“Em ‘Sobre a China’, Henry Kissinger escreve a respeito de um país que conhece intimamente e cujas relações modernas com o Ocidente ajudou a moldar. Lançando mão de relatos históricos e de suas conversas com diversos líderes chineses durante um período de quarenta anos, o autor examina como a China abordou a diplomacia, a estratégia e a negociação através de sua História, e busca refletir sobre as consequências do seu crescimento acelerado para a balança do poder no século XXI”.
Espero ter ajudado. E quem sabe assim colaborar para a cura de Eduardo Bolsonaro do terrível vírus mental amarelo?
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa é professora e tradutora, escreve semanalmente para o Blog do Noblat desde agosto de 2005.
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DIÁRIO DA CRISE X

Artigo de Fernando Gabeira
Embora tenha sempre escrito artigos onde afirmava a importância da segurança biológica, sou ignorante em vírus.
Cada um que aparece me obriga a um intenso esforço para entendê-lo e contribuir com sua neutralização.
Foi assim com a AIDS que farejei nos seus primeiros sinais. Antes mesmo de se expandir no Brasil, procurei advertir as autoridades. Era deputado e, mais tarde, apresentei o projeto do coquetel gratuito. O então Senador José Sarney havia apresentado um projeto idêntico. Eu o procurei para somarmos força.
Naquele época houve uma breve discussão com o setor econômico do governo. Valia a pena gastar tanto dinheiro? Prevaleceu a ideia de salvar vidas.
No caso do corona, desde o surgimento em Wuhan, acompanho também com interesse, as vezes mencionando- o em artigos possivelmente considerados monótonos: era um perigo distante.
Passei o carnaval fixado nos dados da Itália onde os primeiros casos fatais se apresentavam. Não queria passar por um velho agourento mas ainda assim ao invés de me fixar na festa popular, escrevi sobre o corona.
Mas o que pode mais um ignorante fazer? Não tenho ânimo para participar do coro que ensina as pessoas a cuidarem de seu cotidiano, o que comer, como fazer ginástica, que tipo de comportamento é mais saudável na quarentena?
A única forma que tenho de contribuir é estimular o conhecimento do problema. Desde o princípio me limitei a algumas teses elementares: a primeira delas foi sugerir a do uso dos milhões de smartphones para manter as pessoas informadas e ajudá-las nas suas dificuldades.
A segunda, ainda sem conhecer bem o vírus, expressei assim: testes, testes, testes. Repeti três vezes por uma questão de retórica.
Apesar da ignorância, aquela tríplice menção ao teste acaba tendo uma certa relação com a realidade.
São importantes os testes para definir se a pessoa está contaminada. Mas há também um segundo tipo de teste que avalia o nível de anticorpos em cada organismo: isso permite prever quem está potencialmente imunizado.
Leio agora que a Universidade de Campinas está desenvolvendo um terceiro teste que possivelmente poderá determinar se o corona vírus já detetado num organismo pode avançar ou se tornar menos ofensivo.
Cita-se hoje, graças a Bolsonaro, a frase de Obama: a ignorância na vida ou na política não é uma virtude.
Mas se você transforma a própria ignorância num desejo de saber até que pode ser uma ajuda. O mundo inteiro corre para conhecer e derrotar o corona vírus.
Isto é tarefa para os cientistas. Mas um dos ensinamentos de Camus na Peste é reconhecer que cada um ajuda realizando o seu trabalho.

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DIÁRIO DA CRISE IX

Artigo de Fernando Gabeira
O governo parece que deu um novo passo. A entrevista coletiva sobre o coronavírus não é apenas do Ministério da Saúde. Foi criado um comitê para gerir a crise, dirigido pelo general Walter Braga.
Esse comitê até hoje não tinha dado as caras. Zero entrevistas. Como gerir uma crise, sem se comunicar?
O Ministério da Saúde dava as entrevistas diárias. Aparentemente bastava, afinal o corona vírus é um problema de saúde.
Mas a verdade é que se trata de um problema tão vasto que envolve várias dimensões do governo. Uma delas, obviamente, é o de infraestrutura que precisa garantir o fluxo de alimentos e remédios e equipamentos médicos. O outro é a da economia que precisa proteger os trabalhadores e empresas para que não sucumbam.
A grande lacuna é a presidência. Bolsonaro tornou-se uma figura decorativa. Ele subestima a pandemia, é um símbolo internacional do negacionacionismo.
A luta contra o vírus pede unidade. Não tem sentido brigar agora. No entanto, a unidade só pode se fazer em torno de uma posição ditada pela ciência, aceita e aplicada internacionalmente por todos os países.
O Twitter apagou dois posts de Bolsonaro, assim como tinha feito com Maduro que andou propaganda poções mágicas contra o vírus.
Mesmo sem brigas, a luta será difícil. Vi um vídeo mostrando como os profissionais de saúde se protegem na Coreia do Sul: um superequipamento.
Será o que temos aqui em quantidade? Mandetta garante que está tudo sendo comprado. Leio notícias inquietantes na imprensa: ora sobre a contaminação de médicos em Volta Redonda, ora sobre escassez de equipamentos de proteção pessoal no Albert Einstein.
Porisso, de todas as inúmeras campanhas voluntárias que surgiram no Brasil, destaco a importância das que visam proteger os profissionais de saúde, com equipamentos e infraestutura de repouso.
Estamos em guerra contra o corona vírus, dizem todos. Mas quem vai para trincheiras são os médicos e profissionais de saúde.
Quem por acaso comprou máscaras  N95 deveria doar para eles e se virar com máscaras caseiras.
Todos nos concentramos nos leitos de UTI. São vitais, assim como os respiradores. Mas se os médicos e profissionais de saúde adoecerem?
No artigo do Globo de hoje, está disponível na página, esbocei apenas um problema que pretendo discutir no futuro, embora se fale nele nos EUA hoje e esteve presente na Itália: quem dever morrer primeiro?
Antes dele, talvez valha a pena conversar sobre morte digna, o que significa isto, que protocolo deve ser seguido nesse caso? Velórios já foram suprimidos, enterros possivelmente o serao.
O caso do consul do Suriname que morreu à mingua no Hospital Rio Mar não pode ser esquecido. A polícia abriu um inquérito, mas é necessário mais: um protocolo rígido sobre como tratar as pessoas nos seus últimos momentos.
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O BRASIL TEM QUE PARAR BOLSONARO

Mary Zaidan, Blog do Noblat – VEJA
Por insanidade, egocentrismo, cálculo político, má-fé ou tudo isso junto, na semana passada o presidente Jair Bolsonaro iniciou mais uma guerra. Disparou tiros para todo lado, alguns fatais, como o afrouxamento do isolamento social, outros nos seus próprios pés. Na tentativa de destruir desafetos, acertou a culatra ao dar palanque nacional aos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, pré-candidatos à Presidência em 2022.
Com atuações determinadas, transparência de dados e entrevistas diárias, ambos passaram a ser vistos como dirigentes lúcidos e preocupados com a população de seus estados, em contraponto a um presidente egoísta, incapaz de perceber que a vida vale mais do que a bolsa.
Embora cuidar da saúde e costurar saídas econômicas para evitar o caos não sejam temas excludentes, o embate da semana insistiu em antagonizá-los. Com ganhos expressivos para os 24 governadores que mantiveram a decisão de obedecer às instruções da OMS de isolamento social (apenas três deles – Mato Grosso, Rondônia e Roraima voltaram atrás).
Colheram ainda o endosso da Frente Nacional de Prefeitos, que na sexta-feira enviou carta ao presidente Bolsonaro questionando as dubiedades das recomendações do governo central. Os quase 500 prefeitos de cidades onde vivem mais de 60% dos brasileiros querem saber se devem ou não suspender as restrições ao convívio social, quais as bases científicas e os instrumentos legais para fazê-lo, e se Bolsonaro assumirá o colapso do SUS depois de uma eventual suspensão do isolamento. Afirmam ainda que, a depender da resposta do governo, não restará alternativa senão recorrer à Justiça com “pedido de transferência ao presidente da República das responsabilidades cíveis e criminais pelas ações locais de saúde e suas consequências".
A manifestação dos prefeitos caiu no Planalto no mesmo dia em que bolsonaristas comemoravam as várias carreatas realizadas em seis estados e outras programadas para este domingo, em favor da reabertura do comércio. Embora os carrões demonstrassem ser um ato de patrões, isso animou Bolsonaro a dizer que são os próprios trabalhadores que querem voltar ao trabalho. “Esse negócio de confinamento aí tem de acabar...Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar.”
Como faltou explicar ao entrevistador José Luiz Datena e ao público do popular Brasil Urgente de que maneira os mais novos podem ir trabalhar sem correr o risco de se infectar e transmitir o vírus para os pais, os velhinhos e os avós, a insensibilidade do presidente mais uma vez se escancarou.
Nem em sonhos Witzel e Doria contavam com tamanho impulso vindo de tantos desatinos.
Sem concordâncias e maioria em seu próprio governo – Bolsonaro admite que tem tentado convencer seus ministros a acabar com o isolamento social –, o presidente dobrou a aposta. Dispôs de cerca de R$ 5 milhões para contratar, sem licitação, a IComunicação, para, entre outras tarefas não explicitadas, divulgar a campanha “O Brasil não pode parar”. O vídeo, derrubado ontem pela Justiça, rodou no Instagram, YouTube, Facebook e Twitter.
Antes de virar slogan oficial contra o isolamento social, a frase já havia provocado engulhos ao ser dita pelo empresário bolsonarista Junior Durski: “O Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. O conceito imita a campanha #MilãoNãoPara (Milano non si ferma), lançada há um mês, quando a cidade italiana registrava 12 mortos e seu prefeito culpava o alarmismo da mídia pelo baque na economia local. Mais de 4,4 mil mortes depois, Giuseppe Sala fez seu mea culpa.
Voz isolada no mundo, por aqui Bolsonaro metralha no sentido inverso e, como o dono do Madero, desdenha da vida: “Infelizmente algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”.
Nessa altura, até os que politicamente lucram com as sandices diárias do presidente concordam com a urgência: o Brasil tem que parar Bolsonaro.
Mary Zaidan é jornalista
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EM DIA DE PANELAÇO...

Charge do Amarildo
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RAZÕES DA DESORDEM

Marcus André Melo, Folha de S.Paulo
A crise sanitária move as placas tectônicas da política no país, afetando tanto seu conteúdo substantivo (a agenda) quanto a forma (estilo de governança). A pandemia vertebra a disputa política em torno de uma nova dimensão: como lidar com a emergência sanitária e suas consequências econômicas. A agenda pública torna-se monotemática. Saem de cena as questões que levaram à ascensão de Bolsonaro: corrupção, segurança pública e guerras culturais.
A forma também muda: já não há lugar para o estilo adversarial de governar. A retórica não desaparecerá, mas sua eficácia se reduzirá brutalmente. Estratégias de culpabilização e confronto terão claros retornos decrescentes. O senso de emergência produzido por uma ameaça avassaladora aumenta a demanda por lideranças que tenham capital moral e capacidade para coordenar ações e construir consensos na sociedade em geral e na comunidade de especialistas. A popularidade das lideranças políticas tende a crescer em toda parte em situações de guerra ou ameaças externas —fenômeno conhecido no jargão como "rally round the flag" (união pela pátria). Bolsonaro, no entanto, passou a ser visto ele próprio como ameaça.
Isso não significa que o estilo adversarial desaparecerá. Identifico três fatores que combinados explicam sua adoção no momento. O primeiro é o mimetismo institucional em relação a iniciativas tomadas por Donald Trump —uma das marcas de seu governo e de sua entourage familiar, que já se manisfestara na semana anterior no episódio envolvendo a China. Ele aparece na importação da disjuntiva saúde versus economia que dominou a agenda pública americana nas semanas anteriores.
O segundo é o cálculo por parte de setores estratégicos do governo de que o fator sistemicamente desestabilizador não seria a escalada da crise sanitária per se, mas uma recessão profunda e colapso da ordem social.
O terceiro é uma estratégia de deslocamento da culpa em relação aos custos políticos da profunda recessão que se avizinha para governadores e prefeitos. Curiosamente, estes não são os únicos sujeitos da transferência de responsabilidade: o presidente dirige pedidos ao seu ministro da Saúde, a quem buscaria sensibilizar, em mais um exemplo de "presidencialismo de delegação". (O resultado é profunda dissonância: quem está no comando? Qual a mensagem?)
Essa transferência de responsabilidade é instrumental: se as medidas de quarentena forem bem-sucedidas, o presidente ganha: poderá alegar que a crise não era tão grande quanto propalado. Se forem mal sucedidas --em quadro de profunda crise econômica e sanitária-- sustentará que contribuíram para a instauração do caos.
Marcus André Melo
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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