Vi muita gente boa, não faz tanto tempo, dizer que o perfil
de louco rompedor, de irresponsável trombador, era o necessário — finalmente o
gatilho — para dar um tranco no Brasil e fazer o país avançar para as reformas
liberais de que o Estado precisaria. Nunca acreditei nisso. Reformas
estruturais dependem de estabilidade, de um chão de previsibilidade. Condições
impossíveis se é — se sempre foi — o próprio presidente da República, de resto
um líder sindical da ativa, com histórico golpista, a principal usina de
traumas, de cismas.
Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Sempre foi. Por três
décadas expôs sua natureza no Parlamento, não raro se comportando como um
sociopata. Ai está. Ninguém se pode dizer surpreso.
De toda maneira, o tempo — a chance — de reformar o Estado
passou. O perfil do presidente, no entanto, continua o mesmo. E não é o de um
mero maluco beleza que abriria caminhos ao liberalismo econômico; mas o de um
populista autoritário, centralizador, cujo reacionarismo tem por ar a forja
artificial de conflitos, e cuja a natureza rompedora, inegável, só abre picadas
para desguarnecer progressivamente a democracia liberal. Repito: um golpista em
busca da (de fazer a) ocasião. Uma real ameaça em tempos excepcionais.
Aqueles românticos que acreditaram que esse sujeito — alguém
que reage, tanto mais se acuado, cindindo e radicalizando — poderia liderar o
país num amplo e profundo programa reformista agora decerto são os que creem
que esse elemento poderá dirigir os esforços brasileiros de enfrentamento de uma
crise mundial sem precedentes. Este sujeito: o que há três semanas — atacando a
Justiça Eleitoral —afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de
2018 fora fraudada.
Chega de ilusão. Bolsonaro é parte — grande — do problema;
um agente para o agravamento do drama. Jamais será solução. Dá mostras disso
diariamente, como quando ameaça a ordem pública — investindo num choque de
desobediências civis — ao aventar um decreto que desmobilizaria trabalhadores
da quarentena determinada por governadores e recomendada pelo seu Ministério da
Saúde. Choque de desobediências civis — resultando em caos social: uma possível
ocasião para o golpista.
Atenção ao jogo de Bolsonaro. O que temos hoje mais
proximamente do que se esperaria de um estadista no comando da empreitada
contra a Covid-19 senão o ministro Mandetta? E o que faz o presidente ante a
gestão técnica segura — referencial — do auxiliar senão desqualificá-lo e
desautorizá-lo pública e seguidamente? É investimento na confusão absoluta, em
estímulos de comunicação contraditórios — que geram insegurança.
Coisa alguma exemplifica melhor a mentalidade bolsonarista
do que, num momento de crise, o presidente fabricar uma oposição dentro do
próprio gabinete de crise. Ou alguém tem dúvida de que é isso que Bolsonaro
faz? É um jogo, assim ele crê, de ganha-ganha: faz de seu ministro — que prega
o distanciamento social — um oponente, uma escada para que possa apontar
histerias e mostrar sua preocupação com a economia popular; mas o mantém no
governo de modo a capitalizar-lhe os feitos caso a atuação do Ministério da
Saúde, em parceria com os governadores, resulte no controle da epidemia.
O presidente da República é um — a palavra é esta — covarde:
enquanto desdenha da gravidade da doença e dinamita todos os indicativos de
responsabilidade sanitária, empurrando os desprovidos de plano de saúde às ruas
justamente para respirarem o pico de contágio, aposta em que as ações
restritivas dos governadores deem certo para que então possa bradar que estava
correto e que a Covid-19 fora mesmo superdimensionada. Isso é Jair Bolsonaro; e
esse, o seu ganha-ganha caso a epidemia seja domada.
Para dar vazão à guerra cultural absoluta que lhe dá
discurso, conseguiu plantar entre nós — num triunfo da linguagem populista — a
existência da oposição saúde pública (que seria valor elitista) versus saúde
econômica (valor popular).É a armadilha à qual nos atraiu. A vida das pessoas
contra, ora, a vida das pessoas. Um novo confronto artificial, nova arapuca
para colisão institucional, que estabelece como antagônicas demandas
complementares. De um lado, os alarmistas da prevenção que evitaria o colapso
dos SUS, representados pelos governadores. De outro, ele, Bolsonaro, preocupado
com o sustentodo pobre. Tudo somente narrativa — para o fim autocrático.
O presidente se move mesmo, se espalha, em todas as direções
— e assim se move a favor do estado de anomia. O jogo de ganha-ganha na versão
em que a tragédia se impõe. Muitos mortos. Muitos desempregados. Corpos
empilhados. Falta de alimentos. Saques. Ingovernabilidade. Radicalização. O
acirramento de uma crise — para cujo agravamento concorreu —como justificativa
para medidas de exceção.
Bolsonaro foi para o all-in. As fichas somos nós. O vírus
não joga.
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